quarta-feira, 8 de junho de 2011

Um Consenso Global Baseado em Evidências a respeito da Definição da Doença do Refluxo Esofágico na população Pediátrica (2)

RESULTADOS


Visão geral sobre as votações
Para a primeira votação, foram apresentadas 62 afirmações, com base nas 50 afirmações da definição de Montreal (1) e em 12 afirmações adicionais com particular relevância para a população pediátrica, conforme proposto pela Presidência. Foi alcançado consenso sobre 47 (76%) das 62 afirmações apresentadas na primeira votação. Para a segunda votação, o número de afirmações aumentou substancialmente para 117, principalmente por causa da decisão do grupo de votar em muitas das afirmações separadamente para cada um dos três grupos de idade pediátricos (recém-nascidos e lactentes, crianças e adolescentes). Consenso foi alcançado em 78 das 117 afirmações (67%).


Para a terceira rodada de votação, foram consideradas 86 afirmações, com o grupo chegando a um consenso em 57 (66%) delas. Na votação final, houve 59 afirmações, tendo ocorrido consenso em 98% (58) delas, e uma concordância por mais de 87% do grupo votante foi alcançado em 95% (56) delas. A força de concordância na votação final está especificada na tabela 1.

UMA DEFINIÇÃO GLOBAL DA DRGE NA POPULAÇÃO PEDIÁTRICA:
1. DRGE em pacientes pediátricos está presente quando o refluxo do conteúdo gástrico é a causa dos sintomas incômodos e/ou de complicações.
Concordância: 100% (A+, 87,5%; A, 12,5%. Grau de evidência: não aplicável).

A abordagem, adotada na Definição de Montreal para a DRGE em adultos, foi baseada na definição dos sintomas descritos pelos pacientes na medida em que o refluxo começava a provocar problemas com impacto mensurável sobre a qualidade de vida do paciente (1). Esta abordagem também se aplica às crianças, mas com várias advertências. O desenvolvimento das crianças e suas habilidades comunicativas são impositivos para uma abordagem no sentido de estabelecer definições específicas para cada grupo etário. Nas crianças, a definição de quando os sintomas se tornam incômodos — e quem define que os sintomas são incômodos — é de mais difícil confiabilidade por diversos fatores. Embora a criança que já aprendeu a se expressar verbalmente possa comunicar a dor, descrições da intensidade, localização e gravidade, das mesmas, podem não ser confiáveis até pelo menos os 8 anos de idade e às vezes até mais tarde (6,7).

As crianças pré-escolares são geralmente mais sugestionáveis. Consultas aos pais ou cuidadores sobre um sintoma específico são geralmente feitas para obter respostas do tipo SIM ou Não, o que pode diminuir, assim, a confiabilidade do sintoma relatado pela criança com suspeita da DRGE. Assim sendo, para se poder levar em consideração de forma confiável a queixa de um sintoma incômodo para firmar o diagnóstico da DRGE a criança deve ter mais de 8 anos de idade. Em pacientes mais jovens, a confiabilidade nos pais ou cuidadores é geralmente necessária, mas o relato dos sintomas por substitutos (pais ou cuidadores) pode diminuir a validade do diagnóstico. Portanto, a questão do que é "incômodo" é mais complicada na faixa etária pediátrica do que nos adultos. O FDA americano (Food and Drug Administration) recomenda que o relato do paciente forme a base dos ensaios clínicos (http://www.fda.gov/cder/guidance/5460dF. htm).

Dadas as limitações dos relatos das crianças que são menores de 8 anos, a informação do paciente deve ser complementada ou substituída por relatos dos pais ou cuidadores. Questionários adaptados para cada faixa etária são necessários para se alcançar a confiabilidade, bem como a avaliação e o diagnóstico do referido sintoma na Pediatria (8,9).

2. Sintomas da DRGE variam com a idade.
Concordância: 100% (A+, 87,5%; A−, 12,5%; Grau: Alto).

Em adultos, pirose e regurgitação são sintomas característicos da DRGE (1). O mesmo ocorre nas crianças escolares e adolescentes (10,11). Nos lactentes e crianças pré-escolares é mais complicado. Durante a validação do escore para o diagnóstico da DRGE, diferenças significativas foram identificadas na prevalência de regurgitação, recusa alimentar e choro entre uma coorte de lactentes saudáveis com estudos de pHmetria esofágica anormal e/ou biópsias anormais (12). No entanto, a falta de resposta destes sintomas à terapia com inibidor da bomba de prótons (IBP) contrasta com suas respostas à terapia com agentes não-farmacológicos, o que levanta questionamentos sobre a eficácia da medicação antiácida para estes sintomas, e se no caso da medicação ainda estiver vigente, permanece a dúvida se estes episódios seriam mesmo de refluxo ácido (13,14). Nesse sentido, o diagnóstico com base nos sintomas da DRGE em lactentes continua a ser um problema.

Em um estudo envolvendo crianças de 1 a 17 anos de idade, tosse, anorexia/ recusa alimentar e regurgitação/vômito foram mais graves em crianças que tinham entre 1 e 5 anos de idade, em comparação com os sintomas presentes nas crianças de maior idade (10). Neste estudo, lactentes e crianças pré-escolares (1–6 anos) tendiam a apresentar recusa alimentar, regurgitação e dor abdominal. Em contraste, nas crianças maiores (6-17 anos) os sintomas predominantes são regurgitação ou vômito, tosse e dor epigástrica ou pirose (10,15).

Quanto maior a criança, mais a pirose e a regurgitação tornam-se predominantes (10,11). Em geral, de 1 a 11 anos de idade, há relativamente poucos dados sobre sintomas de apresentação e não há definições padronizadas nos estudos realizados (10). Por exemplo, alguns estudos permitem a inclusão de dor abdominal, dor epigástrica ou ambos (10,15,16). A variabilidade dos sintomas e sinais da DRGE nos grupos etários pediátricos exige maior desenvolvimento de definições com base na idade, padrão-ouro e a validação de questionários baseados nos sintomas.

3. Sintomas devido à DRGE são incômodos quando eles apresentam efeitos adversos sobre a qualidade de vida do paciente pediátrico.
Concordância: 100% (A+, 12,5%; A, 75%; A−, 12,5%; Grau: não aplicável).


4. Para os recém-nascidos saudáveis e (idade: 1–28 dias) e lactentes (idade: >28 dias a <1 ano) com sintomas de refluxo e que não apresentam complicações não devem ser diagnosticadas como DRGE.
Concordância: 87,5% (A+, 62,5%; A, 12,5%; A−, 12,5%; D−, 12,5%; Grau: não aplicável).



5. Sintomas de refluxo que não são incômodos em lactentes e crianças (idade: 1–10 anos) não devem ser diagnosticados como DRGE.
Concordância: 75% (A+, 37,5%; A, 37,5%; D−, 12,5%; D, 12,5%; Grau: não aplicável).


6. Sintomas de refluxo que não são incômodos em adolescentes (idade: 11-18 anos) não devem ser diagnosticados como DRGE.
Concordância: 87.5% (A+, 50%; A, 37,5%; D−, 12,5%; Grau: não aplicável).


Quanto à afirmação 4, até 70% dos recém-nascidos saudáveis e lactentes apresentam regurgitação e este sintoma é considerado fisiológico, o qual desaparece sem intervenções em 95% dos indivíduos até os 12 a 14 meses de idade (17-19). Em um estudo baseado em questionário, aplicado em lactentes saudáveis atendidos em visitas de rotina (17), regurgitação diária atingiu um pico de 67% nas crianças de até 4 meses de idade e diminuiu para 21% nas crianças até os 7 meses de idade e 5% entre 10 e 12 meses. Regurgitação no subgrupo das crianças mais afetadas — aquelas com regurgitações mais freqüentes (mais de quatro episódios diários) — atingiu o pico em uma idade semelhante e desapareceu da mesma forma. Regurgitação descrita como "um problema" (possivelmente semelhante a "incômodo") pela mãe apareceu aos 6 meses em 23% e diminuiu para 14% aos 7 meses de idade. Choro é também comum em recém-nascidos não selecionados; a média diária de duração do choro no segundo mês de vida é em torno de 2 a 2,5 horas, diminuindo posteriormente (20). Entre as crianças de 1 a 3 meses de idade, a duração média do choro é de 3 horas por dia (mediana: <1,5 horas por dia), o que sugere que existe um subgrupo que apresenta choro prolongado. De 4 a 12 meses de idade, a duração do choro permanece relativamente constante, na média de 1hora por dia (mediana: aproximadamente 0,5 hora). Com respeito ao subgrupo dos lactentes não selecionados com histórico de choro prolongado por mais de 3 horas ao dia, isto ocorreu em 29% dos recém-nascidos durante os primeiros 3 meses de vida, mas houve uma diminuição do mesmo, passando a vigorar em <10% das crianças de 3 a 12 meses de idade (21). O mesmo estudo a respeito do choro revelou que 11% das mães procuraram o pediatra nos 3 primeiros meses de vida, e, menos de 4% delas nos meses restantes do primeiro ano de vida. A questão do choro inexplicado é complicada e também deve ser avaliada de acordo com os modelos de choro e pela forma como o choro é percebido pelos pais (21). Consequentemente, em lactentes, regurgitação e choro “normal” ou “anormal” decorrente de outra causa que não a DRGE podem ser confundidos com a DRGE (22,23).

Os dados disponíveis a respeito da prevalência dos sintomas de refluxo que deveriam ser classificados como “incômodos” na infância são limitados. Sugestões de limiares quantitativos disponíveis em base de dados para regurgitação "incômoda" e choro foram descritos acima, mas estes dados apresentam baixas sensibilidade e especificidade. Além disso, "incômodo" é um conceito subjetivo. Outros dados sugerem que a combinação de parâmetros quantitativos dos sintomas com o conjunto de diferentes sintomas pode melhor definir o conceito de "incômodo" e, assim, ajudar a distinguir a DRGE do RGE (12). Conforme relatado por Nelson e cols. (17), “A percepção dos pais de que a regurgitação era um problema esteve associada com a freqüência e o volume da regurgitação, choro aumentado ou irritabilidade, desconforto associado à regurgitação e arqueamento da coluna vertebral”. Esta sugestão é também sustentada por uma maior capacidade de resposta da regurgitação ou choro ao manejo não-farmacológico quando estes sintomas são isolados (24). No entanto, apesar de até 23% dos pais (pico para crianças de 5 meses de idade) considerarem estes sintomas proeminentes e em conjunto como "incômodos" (17), o tratamento (que consiste principalmente de alteração da fórmula ou espessamento dos alimentos) foi administrado em menos de 10% dos casos e medicação em apenas 0,2%. Assim, a identificação dos sintomas e conjuntos de sintomas que servem como marcadores válidos para a DRGE é bastante complexa, e mais ainda por causa da inexistência de padrões-ouro confiáveis, limitações da capacidade de expressão verbal e a necessidade de interpretar os relatos dos pais e/ou cuidadores. Portanto, a definição de “incômodo” torna-se particularmente desafiadora na infância, porque a maioria das crianças não manifesta complicações clinicamente objetivas da DRGE.

A maioria dos adolescentes é suficientemente consciente e comunicativa para ser capaz de determinar se os sintomas são incômodos enquanto que lactentes e crianças pré-escolares terão estas informações relatadas pelos pais ou cuidadores.

No entanto, a questão da comunicação não é determinada apenas pelaidade cronológica. Por exemplo, a história de um pai atento de um menino de 7 ou 8 anos de idade poderia ser pelo menos tão confiável quanto ode um adolescente birrento ou alguém que por uma questãode princípio, insiste em contrariar os pais. Para ser definida como a DRGE, os sintomas de refluxo devem ser incômodos para o lactente, para a criança e para o adolescente, e não simplesmente ser incômodo para o cuidador. Ademais, existem pacientes assintomáticos ou incapazes de relatar sintomas incômodos (lactentes ou crianças com alterações neurológicas) que também apresentam complicações do refluxo, e, portanto, devem ser incluidos nos critérios para a definição da DRGE.

7. Regurgitação em Pediatria é definida como a passagem do conteúdo refluido pela faringe, boca ou através da boca.

Concordância: 100% (A +, 12,5%; A, 87,5 %; Grau: não aplicável).


8. Vômito bilioso não deve ser diagnosticado como DRGE.
Concordância: 100% (A+, 75%; A, 12,5%; A-, 12,5%; Grau: alto).

Regurgitação ocorre quando o relaxamento do esfíncter esofágico inferior permite o movimento retrógrado do conteúdo gástrico para o esôfago e para o exterior. Regurgitação é fisiologicamente diferenciada de vômito pela ausência de: (i) reflexo emético do sistema nervoso central, (ii) contrações retrógradas do intestino delgado, (iii) náusea, e (iv) ânsia de vômito (25). A regurgitação em geral é caracterizada por não ser acompanhada por esforço ou projeção do conteúdo refluído, apesar de que nos lactentes às vezes parece ser forçada (26). Por esta razão, a definição de Montreal foi alterada para, em Pediatria, incluir a ejeção do refluído pela boca. Cuidadores e pais usam outros termos como derramar, golfar, cuspir, os quais, todos eles, englobam a definição de regurgitação. Vômito bilioso é um sinal de alarme que sugere maiores investigações no sentido de pesquisar anormalidades anatômicas, como má rotação intestinal ou doença aguda com sinais de processo obstrutivo intestinal.

9. Regurgitação é um sintoma característico de refluxo em lactentes, mas não é necessário nem suficiente para o diagnóstico da DRGE, porque não é sensível nem específico.
Concordância: 100% (A+, 62,5%; A, 37,5%; Grau: alto).

A especificidade da regurgitação para o diagnóstico da DRGE é dificultada pela freqüência de sua ocorrência em condições normais (vide comentário 4) (17,18), e pelas dificuldades em distinguir de vômito e de uma miríadede condições que causam vômitos em crianças.

Quantitativamente regurgitações mais freqüentes podem prever a existência futura da DRGE em algumas crianças. Em um estudo de coorte prospectivo (18), lactentes regurgitando 90 dias ou mais durante os dois primeiros anos de vida (“regurgitadores frequentes”) foram mais susceptíveis de apresentar sintomas de refluxo, tais como pirose, vômito ou regurgitação ácida, quando seguidos até os 9 anos de idade, do que aqueles que não regurgitavam. Outro estudo, envolvendo lactentes, mostrou diferenças quantitativas no que se refere aos episódios de regurgitação e entre biópsias esofágicas e estudo de pHmetria, positivas e negativas (12). Da mesma forma, o diagnóstico da DRGE tornou-se mais específico em crianças com regurgitação associada a choro excessivo, quando o monitoramento da pHmetria de 24 horas foi usado como padrão-ouro (27-29). Embora tais parâmetros isolados sejam insuficientes tanto para estabelecer quanto para excluir o diagnóstico da DRGE em um paciente, a quantificação e a correspondência da regurgitação com outros sintomas tem se mostrado importantes para aumentar a sensibilidade e a especificidade, como é refletido pelos scores do I-GERQ (Questionário para crianças com refluxo gastro-esofágico) (12). Revisões e validações posteriores deste instrumento mostraram uma boa performance avaliativa por meio de traduções validadas em diversos idiomas para os I-GREQ-R (I-GERQ revisto) (30).

Questões persistentes a respeito do diagnóstico baseado em sintomas em crianças incluem a replicação da validade do diagnóstico a partir de estudos adicionais usando padrões-ouro objetivos com a participação de grupos controle sintomáticos mas desprovidos da DRGE.

Um determinado estudo foi incapaz de confirmar a validade diagnóstica original utilizando o escore do I-GERQ, porém deve-se fazer a ressalva de que o questionário havia sido modificado e traduzido de forma livre antes de ser aplicado. Além disto, a histologia foi empregada somente em uma minoria dos casos e os métodos usados não foram validados para sua necessária confiabilidade (31). A aplicação de padrões-ouro invasivos em crianças, particularmente aquelas do grupo controle torna-se um desafio, aumentando a indefinição do diagnóstico baseado em sintomas para a DRGE em crianças.

10. Sintomas da DRGE, particularmente em lactentes, podem ser indistinguíveis daqueles de alergia alimentar.
Concordância: 100% (A+, 62,5%; A, 25%; A-, 12,5%; Grau: alto).

Em crianças, a DRGE e alergia às proteínas do leite de vaca e da soja podem ambas se manifestar através de regurgitações e/ou vômitos, choro, agitação ou irritabilidade relacionados à alimentação, ou pelo baixo ganho ponderal (32). Consequentemente, distinguir a DRGE da alergia alimentar é difícil levando-se em conta apenas o quadro clínico (33, 34). Alergia à proteína do leite de vaca e a DRGE podem coexistir e a instituição de uma dieta baseada em hidrolisados protéicos pode extinguir os sintomas sugestivos da DRGE (13, 34, 35).

11. Na prática clínica, adolescentes são, em geral, capazes de descrever sintomas típicos da DRGE e determinar se estes sintomas são um problema.
Concordância: 100% (A+, 62,5%; A, 37,5%; Grau: baixo).
Crianças escolares e adolescentes, neurologicamente saudáveis, são geralmente capazes de descrever seu quadro clínico e determinar se estes sintomas de refluxo representam um problema. Uma ressalva quanto a adolescentes birrentos é mencionada no comentário relacionado às afirmações de 3 a 6. Em uma pesquisa comparando os sintomas de refluxo relatados por adolescentes com os relatados por seus pais, 5,2% dos adolescentes de 10 a 17 anos descreveram pirose, e 8,2% relataram regurgitação ácida (36). Em contraste, os pais relataram taxas menores dos mesmos sintomas (3,5 e 1,4%, respectivamente). Esta discrepância mostra a importância da auto descrição dos sintomas nesta faixa etária, embora também possa indicar algum grau de auto-sugestão.

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