terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Transtornos Gastrointestinais Funcionais: Critérios de Roma IV – lactentes, escolares e adolescentes (Parte 3)


Isabela T. Mazzei e Ulysses Fagundes Neto




    5-  Transtornos Funcionais da Evacuação

5A- Constipação Funcional (CF)

Uma revisão sistemática comprovou que a prevalência média e a mediana da CF em crianças é de 14% e 12%, respectivamente. O pico da incidência da constipação ocorre por ocasião do treinamento esfincteriano, não há diferenças entre os sexos, e está demonstrado que os meninos com constipação apresentam taxas mais elevadas de incontinência fecal do que as meninas.

Em virtude da retenção das fezes, a mucosa colônica absorve a água e as fezes remanescentes tornam-se progressivamente mais difíceis de serem eliminadas. Este processo acarreta um ciclo vicioso de retenção de fezes no qual o reto torna-se elevadamente distendido, resultando em um fluxo fecal incontinente (escape fecal), perda da sensação fecal e por fim, perda da urgência para evacuar. O aumento do acúmulo fecal no reto também provoca uma diminuição da motilidade intestinal a montante, acarretando anorexia, distensão abdominal e dor.

No Quadro 11 abaixo, estão descritos os critérios diagnósticos da CF.

O diagnóstico da CF baseia-se na história clínica e no exame físico, sinais de alarme dos sintomas devem ser utilizados para identificar uma doença de base responsável pela constipação (Tabela 3). Caso apenas um critério de Roma estiver presente e o diagnóstico de CF mostrar-se incerto, um exame de toque retal é recomendado para confirmar o diagnóstico e excluir alguma outra condição médica. Não há uma razão especial para a realização rotineira de raio-x abdominal para o diagnóstico da CF. Teste rotineiro para a alergia à proteína do leite de vaca não é recomendado naquelas crianças com constipação, e que não apresentam sintomas de alarme. Testes laboratoriais para pesquisa de hipotireoidismo, doença celíaca e hipercalcemia não são recomendáveis nas crianças com constipação, na ausência de sintomas de alarme. A principal indicação para a realização da manometria anorretal, na investigação da constipação intratável, refere-se à avaliação da presença do reflexo do inibidor anorretal. A biópsia retal é o padrão ouro para o diagnóstico da Doença de Hirshsprung. Enema de bário não deve ser utilizado como uma ferramenta inicial na avaliação diagnóstica da CF.

Quanto ao tratamento, uma revisão sistemática demonstrou que somente 50% das crianças referidas a um centro terciário de atenção, e acompanhadas de 6 a 12 meses, se curaram e foram desmamadas do uso de laxativos com sucesso. Educação é tão importante quanto a terapia medicamentosa e deve incluir aconselhamento familiar para reconhecer o comportamento de retenção e também para fazer uso de intervenções comportamentais, tais como: o uso rotineiro do vaso sanitário e sistema de recompensa quando as evacuações são exitosas. Uma dieta contendo concentração normal de fibras e ingestão normal de líquidos é recomendada, enquanto que a complementação com pré ou pro-bióticos não parece oferecer vantagens para o paciente.

A abordagem farmacológica compreende duas etapas, a saber: 1- desimpactação retal ou oral para aquelas crianças que apresentam impactação fecal; e 2- terapia de manutenção para prevenir reacúmulo de fezes utilizando uma variedade de agentes laxantes. Polietilenoglicol deve ser considerada a primeira linha terapêutica, muito embora, a lactulose também possua eficácia significativa.
  
5B-Incontinência Fecal Não Retentora (IFNR)

Pacientes que apresentam IFNR apresentam frequência de evacuação e parâmetros de motilidade colônica e anorretal normais, o que diferencia essa condição da CF. Os tempos de trânsito colônico total e segmentar mostram-se significantemente prolongados nas crianças portadoras de CF, em comparação com aquelas portadoras de IFNR.  O diagnóstico da IFNR deve-se basear nos sintomas clínicos, tais como, frequência de defecação normal e ausência de massa palpável no abdome ou reto, em combinação com trânsito intestinal normal, comprovado em estudos realizados com marcadores específicos. A IFNR pode ser uma manifestação de distúrbios emocionais na criança em idade escolar e representa uma ação impulsiva desencadeada por uma mágoa inconsciente. A IFNR também tem sido descrita como resultado de abuso sexual na infância.

No Quadro 12 abaixo, estão descritos os critérios diagnósticos da IFNR.

Em geral, as crianças portadoras de IFNR apresentam uma evacuação completa do conteúdo colônico, não apenas um escape fecal, em contraste com aquela manifestação verificada nas crianças com CF. A investigação deve ser realizada para avaliar a possível história de coexistência de constipação notando-se o padrão das fezes (tamanho, consistência, retenção), idade de início, tipo e quantidade de material evacuado, história dietética, medicações, sintomas urinários coexistentes, comorbidade psicossocial e fatores estressantes, familiares e pessoal. O exame físico deve focalizar os parâmetros de crescimento, exame abdominal, exame retal e um profundo exame neurológico.
Quanto ao tratamento, os pais devem compreender que distúrbios psicológicos, dificuldades de aprendizado, e problemas comportamentais, usualmente representam fatores significativos contribuidores para os sintomas da defecação. As vítimas de abuso sexual devem ser identificadas e referidas a aconselhamento apropriado. A abordagem mais exitosa no manejo da IFNR envolve a terapia comportamental. O uso rotineiro do treinamento para evacuar, associado à premiação e à diminuição da fobia ao vaso sanitário contribui para diminuir o estresse, restaura hábitos intestinais normais e restabelece o auto respeito. Um estudo de seguimento de longo prazo demostrou que após dois anos de tratamento intensivo e comportamental somente 29% das crianças encontravam-se completamente livres da incontinência fecal. Aos 18 anos de idade, 15% dos adolescentes portadores da IFRN ainda apresentavam o transtorno. Nenhum fator prognóstico de sucesso foi identificado.

Conclusões

Os membros do comitê fazem algumas recomendações para a necessidade de serem realizadas pesquisas comuns que se aplicam a todas os TGFs, os quais incluem:
1-   Estudos epidemiológicos com diferentes culturas;
2-   História natural;
3-   Estudos da fisiopatologia, como por exemplo o microbioma e o eixo cérebro-trato digestivo;
4- Inclusão precoce das crianças em ensaios clínicos terapêuticos com medicamentos emergentes. 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Transtornos Gastrointestinais Funcionais: Critérios de Roma IV – lactentes, escolares e adolescentes (Parte 2)


    Isabela T. Mazzei e Ulysses Fagundes Neto



     2-  Regurgitação do Lactente

A regurgitação se caracteriza pelo retorno involuntário do alimento previamente deglutido para a boca ou para o meio externo, e que não deve ser confundido com vômito.

Vômito é definido como um reflexo do sistema nervoso central que envolve a musculatura autonômica e esquelética, no qual o conteúdo do estômago é expelido para a boca em um movimento coordenado de intestino delgado, estômago, esôfago e diafragma.

Quando a regurgitação causa ou contribui para alguma lesão ou inflamação, tais como: esofagite, apnéia, hiperreatividade da via aérea, aspiração pulmonar, dificuldade de deglutição ou déficit ponderal, caracteriza-se a Doença do Refluxo Gastroesofágico.

No Quadro 5 abaixo estão discriminados os critérios diagnósticos da Regurgitação.

    3-  Cólica do Lactente

A cólica do lactente se caracteriza por choro inconsolável, prolongado, após a alimentação, distensão abdominal, flatulência, flexão das pernas, sintomas que não são necessariamente indicativos de dor ou doença, pois menos de 10% são de causa orgânica.

O diagnóstico pode ser suspeitado em lactentes de até 4-5 meses de idade sem sinais de alteração do sistema nervoso central ou do desenvolvimento, com exame físico normal e bom ganho pôndero-estatural.

No Quadro 6 abaixo estão discriminados os critérios diagnósticos da Cólica do Lactente.

O tratamento deve-se basear no embalo rítmico e massagem na região abdominal em ambiente calmo. Caso não ocorra resolução dos sintomas após 48 horas de tratamento deve-se pensar em alergia alimentar.

4-          Transtornos da Dor Abdominal Funcional

A Tabela 2, apresenta os aspectos de potencial alarme nas crianças portadoras de dor abdominal crônica


4A- Dispepsia Funcional (DF)

A Dispepsia Funcional (DF) é um transtorno heterogêneo comumente associado a diferentes distúrbios fisiopatológicos de base com padrões sintomáticos específicos. Neste grupo, estão incluídas anormalidades da função gástrica motora, hipersensibilidade visceral devido a sensibilização central ou periférica. Tem sido demonstrada uma acomodação gástrica prejudicada, determinada pela diminuição da capacidade de relaxamento do estômago, em resposta ao alimento.

No Quadro 7 abaixo, estão discriminados os critérios diagnósticos para DF. 

Quanto ao tratamento, alguns alimentos podem agravar os sintomas, tais como: cafeína, pimenta e gordura, e agentes anti-inflamatórios não esteroides, os quais devem ser evitados. Fatores psicológicos que podem contribuir para a intensidade dos problemas, devem ser levados em consideração.  O uso de medicamentos, tais como, bloqueadores de ácido associados a antagonistas dos receptores de histamina e inibidores da bomba de próton, podem ser indicados quando a dor for o sintoma predominante. Náusea, flatulência e saciedade precoce são mais difíceis de serem tratados, e nestas circunstâncias pro-cinéticos, tais como a domperidona, podem ser indicados.

4B- Síndrome do Intestino Irritável (SII)

A SII é considerada um transtorno do eixo cérebro/trato digestivo. Os sintomas, quer sejam diarreia ou constipação com dor intensa e estresse psicossocial, em um determinado paciente, refletem quais componentes do eixo cérebro/trato digestivo estão afetados e qual a intensidade desde problema. A hipersensibilidade visceral pode estar relacionada com o nível de estresse da criança (ansiedade, depressão, impulsividade e irritabilidade). Tem sido demonstrado um aumento das citocinas pro-inflamatórias na mucosa digestiva, e este aumento pode ser induzido como consequência de um episódio de gastroenterite infecciosa aguda (SII pós-infecciosa). Alterações do microbioma intestinal tem sido demonstrada, embora não esteja claro se estas alterações são a causa ou o resultado da SII e seu sintomas. Têm sido observados aumento dos auto-relatos de estresse, ansiedade, depressão e problemas emocionais pelos próprios pacientes com SII (Figura 1).
  

Figura 1- Fisiopatologia dos transtornos da dor abdominal funcional. A hiperalgia visceral levando a incapacitação é demonstrada como o desfecho final dos fatores de sensibilidade clínica que estão superpostos a antecedentes genéticos, os quais predispõem aos eventos precoces na vida.

No Quadro 8 abaixo estão descritos os critérios diagnósticos da SII.


A obtenção de uma histórica clínica cuidadosa e a realização do exame físico criterioso podem sugerir uma diferenciação diagnóstica com a CF, quando a manifestação clínica exuberante é constipação. Por outro lado, no caso de uma possível SII com diarreia, deve-se dar particular atenção para o diagnóstico diferencial com infecção, doença celíaca, má absorção dos carboidratos e doença inflamatória intestinal. Deve-se levar em consideração que quanto maior o número de sinais de alarme presentes, maior será a possibilidade da existência de uma enfermidade orgânica (Tabela 2).

Quanto ao tratamento, tem sido sugerido com eficácia uma dieta de eliminação que reduz a ingestão de oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e pólios fermentáveis. Tratamento comportamental também pode ser recomendado para os pacientes com SII e o foco primário deste tratamento deve ser voltado para desenvolver uma habilidade de otimização para superar os sintomas.

4C- Enxaqueca Abdominal (EA)

A EA, a SVC e a enxaqueca tradicional compartilham o mesmo mecanismo fisiopatológico, sendo da mesma forma episódica, auto-limitada e estereotípica, apresentando intervalos livres de sintomas entre as crises. Crianças portadoras de EA e enxaqueca tradicional relatam os mesmos mecanismos deflagradores (por exemplo: estresse, fadiga e viagem), associados a sintomas tais como, anorexia, náuseas e vômitos, bem como a fatores de alívio, a saber, repouso e sono. Um aumento da atividade de amino-ácidos excitadores foi encontrado em pacientes portadores da enxaqueca tradicional, o que possivelmente explica a eficácia do uso de certos medicamentos que aumentam a concentração sérica do ácido gama-aminobutírico.

No Quadro 9 abaixo encontram-se discriminados os critérios diagnósticos da EA.

A associação de sintomas prodrômicos inespecíficos, tais como, alterações do comportamento e do humor (14%), fotofobia e sintomas vasomotores similares a aqueles vivenciados pelas crianças com enxaqueca tradicional, e uma história de alivio dos sintomas com drogas anti-enxaqueca dão suporte ao diagnóstico. A avaliação pode requerer a exclusão de determinadas enfermidades, quando os sintomas episódicos são intensos, tais como, obstrução intermitente do intestino delgado ou urológica, pancreatite recorrente, enfermidade do trato biliar, febre familiar do Mediterrâneo, transtornos metabólicos, tais como, porfiria e transtornos psiquiátricos.

O tratamento deve ser determinado pela frequência, intensidade e o impacto dos episódios de EA sobre a vida diária da criança e da família.  O uso oral de pizotifen uma droga com efeitos anti-serotonina e anti-histamina tem produzido benefício profilático. O uso profilático com drogas, tais como, amitriptilina, propranolol e ciproheptadina tem sido exitoso.

4D- Dor abdominal funcional inespecífica (DAFI)

Estudos separando a DAFI da SII sugerem que estas crianças, em geral, não apresentam hipersensibilidade retal, em contraste com as crianças portadoras da SII. Tem sido descrito que os pacientes portadores de DAFI apresentam ritmo de contração antral e esvaziamento gástrico mais lentos quando ingerem alimentos líquidos em comparação com controles sadios, mas o significado clínico deste achado não está totalmente definido. Há evidências de associação entre estresse psicológico e dor abdominal crônica em crianças e adolescentes. Dor abdominal crônica está associada com eventos estressantes da vida, divórcio dos pais, hospitalização, bullying e abuso sexual. A maneira pela qual a criança e seus pais enfrentam a dor, influência o desfecho da DAFI (Figura 2).

Figura 2 – A abordagem de qualquer episódio de dor abdominal sofrido por uma criança pode ter impacto significativo na sua habilidade de superação do problema e acomodar a dor, e, consequentemente sua função normal e seu desenvolvimento. Na presença de fatores de risco ou quando fatores de proteção são menos eficazes, a criança pode desenvolver uma resposta de má adaptação que leva a um estado de dor crônica.

No Quadro 10 abaixo estão descriminados os critérios diagnósticos da DAFI. 

As crianças portadoras da DAFI frequentemente relatam sintomas somáticos inespecíficos e extra intestinais que necessariamente não requerem investigação laboratorial ou radiológica. Na Tabela 2, estão apresentados os sinais de alarme que sugerem uma investigação diagnóstica adicional. Com relação ao tratamento a citalopran mostrou-se com uma tendência efetiva em ensaios clínicos realizados. A terapia comportamental cognitiva tem proporcionado benefício de curto e longo prazo para os pacientes portadores de DAFI.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Transtornos Gastrointestinais Funcionais: Critérios de Roma IV – lactentes, escolares e adolescentes (Parte 1)


Isabela T. Mazzei e Ulysses Fagundes Neto

Introdução

Em geral, admite-se que o modelo biomédico da prática clínica baseia-se na teoria de que os sintomas são, potencialmente, causados por enfermidades orgânicas, as quais, por sua vez, são definidas como anormalidades anatômicas, inflamatórias, neoplásicas e/ou bioquímicas. Por esta razão, a responsabilidade do clínico traduz-se na busca do diagnóstico e, quando possível, proporcionar a cura para determinados sinais e/ou sintomas apresentados pelos pacientes. Entretanto, no caso desta pesquisa resultar infrutífera, o diagnóstico proposto passa a ser um transtorno funcional. De qualquer forma, este tipo de abordagem, durante muito tempo, foi desprovido de um critério universalmente consensuado, o que caracterizava uma lacuna que necessitava ser devidamente preenchida, era, portanto, recomendável estabelecer uma validação apropriada. Para tal fim, em 1989, um grupo de investigadores se reuniram em Roma, e desenvolveram um consenso para auxiliar no diagnóstico dos transtornos gastrointestinais funcionais (TGF) para os indivíduos adultos.

Os objetivos dos critérios de Roma foram desenvolver um sistema de classificação baseado em sintomas, estabelecer critérios diagnósticos para pesquisa e assistência, fazer uma revisão sistemática rigorosa da literatura com respeito a essas condições e, finalmente, validar e/ou modificar esses critérios de acordo com um processo baseado em evidências.

Os critérios para crianças e adolescentes, entretanto, somente foram discutidos em 1997, e foram publicados em 1999 sob a denominação de critérios Roma II. Estes critérios forneceram um guia de conduta baseado em sintomas por meio do qual crianças em idade escolar e adolescentes portadores de um TGF podem ter o diagnóstico estabelecido. As experiências baseadas em evidências nestes últimos 10 anos forneceram a base para a maioria das recomendações para o advendo dos critérios de Roma IV. Para aqueles transtornos que ainda apresentam uma falta de dados científicos, o comitê utilizou a experiência clínica e o devido consenso entre os membros do respectivo comitê.

A descrição dos TGFs Roma IV estão apresentados na Tabela 1. Os critérios de Roma III enfatizavam que os sintomas deveriam apresentar uma “não evidencia” de enfermidade orgânica. No Roma IV a frase, “não evidência de um processo inflamatório, anatômico,  metabólico ou neoplásico, para explicar os sintomas apresentados por um determinado paciente”, foi suprimida dos critérios diagnósticos. Ao invés disto, foi incluída a frase “após criteriosa avaliação médica, os sintomas não podem ser atribuídos a qualquer outra condição médica”. Esta alteração permite dar a devida validade, para se estabelecer um diagnóstico de TGF em um determinado paciente, mesmo na ausência de uma investigação laboratorial específica. Além disso, vale enfatizar que um determinado transtorno funcional pode coexistir associado a uma outra condição médica, e, da mesma forma diferentes TGFs frequentemente estão presentes em um mesmo paciente.   


Descrição dos Transtornos Funcionais Gastrointestinais

1-          Náuseas e Vômitos funcionais

1A- Síndrome dos Vômitos Cíclicos (SVC)

Os dados conhecidos sugerem que a prevalência da SVC varia de 0,2% a 1%, a idade mediana dos sintomas varia dos 3,5 aos 7 anos, porém a SVC também pode ocorrer desde os primeiros anos de vida até a idade adulta, sendo que 46% dos sintomas se iniciam aos 3 anos de idade ou mesmo antes. 

No quadro abaixo estão discriminados os critérios diagnósticos da SVC.


Na avaliação clínica há uma alta probabilidade da existência de enfermidades neurometabólicas associadas com essa síndrome particularmente nas crianças que apresentam os sintomas da SVC em idades precoces da vida. Por esta razão, testes metabólicos devem ser realizados durante os episódios de vômitos e antes da administração de fluidos intravenosos para maximizar a detecção das potenciais anormalidades. O uso crônico de cannabis pode estar associado com episódios repetidos de vômitos intensos, náuseas e dores abdominais, e deve ser levada em consideração essas possibilidades em pacientes adolescentes. 

O tratamento recomendado para crianças menores de 5 anos é a ciproheptadina e para os maiores de 5 anos a amitriptilina. Um tratamento de segunda linha inclui a profilaxia com propranolol. Tratamento abortivo pode ser tentado com hidratação e ondansetrona.

1B- Náusea Funcional e Vômito Funcional

Não existem dados disponíveis na literatura para a prevalência destas síndromes, isoladas ou conjuntamente. No quadro abaixo estão discriminados os critérios diagnósticos desta síndrome.


Alguns pacientes com esses transtornos também apresentam sintomas autonômicos, tais como: transpiração, tonturas, palidez e taquicardia. A síndrome da taquicardia postural ortostática pode incluir náusea e vômitos como parte deste complexo sintomatológico, e deve ser diferenciado da náusea funcional e do vômito funcional. Algumas crianças somente apresentam náusea pela manhã e observam que quando elas “dormem tarde”, ou seja, ultrapassam o horário usual de dormir, é quando elas deveriam apresentar náusea, mas isto, na realidade, não ocorre.

A náusea funcional e o vômito funcional devem ser consideradas entidades distintas, mas, pacientes que sofrem de náusea crônica frequentemente relatam episódios leves de vômitos com frequência variada. A presença de vômitos intensos associados à náusea representa uma situação diferente na qual devem-se excluir enfermidades do sistema nervoso central, anormalidades anatômicas do trato digestivo (por exemplo, malrotação), gastroparesia e pseudo obstrução intestinal. A avaliação psicológica está indicada neste grupo de pacientes.  

Não há dados disponíveis para o tratamento isolado da náusea funcional e/ou do vômito funcional, porém, há indicação de intervenção da saúde mental naqueles pacientes que apresentam comorbidades psicológicas evidentes.

1C- Síndrome da Ruminação

Ruminação é a regurgitação do conteúdo recém deglutido seguida da re-mastigação e nova deglutição ou não. Apesar de ser um sintoma funcional, é um transtorno psiquiátrico causado principalmente por privação social. A ruminação pode ocorrer em qualquer idade, porém, adolescentes do sexo feminino parecem ser de maior risco para apresentar este transtorno.

No Quadro 3 abaixo estão descritos os critérios diagnósticos da Síndrome da Ruminação.

O ato da ruminação é causado por um aumento da pressão intragástrica devido à contração dos músculos abdominais e está associado com a abertura do esfíncter esofágico inferior, o que causa o retorno do conteúdo gástrico para o esôfago. A motilidade de jejum e pós-prandial usualmente estão normais. Tem sido reconhecido que quando ocorre aumento da pressão abdominal, a junção gastroesofágica é deslocada para o tórax, e, esta alteração anatômica, mais do que o relaxamento do esfíncter esofágico inferior, é o que explica o mecanismo voluntário da regurgitação presente nesta síndrome.

Geralmente um evento deflagrador ocorre antes da instalação dos sintomas de ruminação. A intercorrência de um processo infeccioso pode causar vômitos e náuseas, os quais podem não desaparecer após a infecção ter sido curada. Em outras ocasiões, um evento psicossocial traumático pode ser identificado com o início dos sintomas. Distúrbios psiquiátricos podem incluir depressão, ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo, estresse pós-traumático, transtorno comportamental e transtorno de déficit de atenção-hiperatividade.

Regurgitação repetitiva, desprovida de esforço acompanhada de reingestão e/ou o ato de cuspir o alimento no prazo de alguns minutos após ter iniciado a alimentação, define a ruminação.   Outras queixas comuns incluem dor abdominal, flatulência, náusea, queimação retroesternal, e vários sintomas somáticos tais como, cefaleia, tontura e dificuldades do sono. O diagnóstico diferencial inclui refluxo gastroesofágico, gastroparesia, acalasia, bulimia nervosa e outras enfermidades funcionais ou anatômicas do estômago e do intestino delgado, mas em nenhuma destas entidades a regurgitação ocorre imediatamente após a alimentação.  

Para se alcançar um tratamento bem-sucedido a profunda compreensão da síndrome da ruminação, bem como uma evidente motivação para superá-la, são necessários. Um exitoso modelo terapêutico deve ser composto pela abordagem interdisciplinar envolvendo psicólogo, gastroenterologo e nutrólogo.   

1D- Aerofagia

A aerofagia ao que tudo indica é particularmente comum em pacientes com deficiência neurocognitiva. Quando a ingestão de ar é excessiva o gás preenche o lúmen gastrointestinal, resultando em eructações excessivas, distensão abdominal, eliminação de flatus e dor, presumivelmente como consequência da distensão luminal. É importante assinalar que a distensão abdominal reduz ou desaparece durante o sono.

No Quadro 4 abaixo estão descritos os critérios diagnósticos da Aerofagia.


A aerofagia pode ser confundida com gastroparesia ou outros transtornos de motilidade, tal como, a pseudo-obstrução intestinal crônica. Pode ser realizado o teste do Hidrogênio no ar expirado para excluir distúrbio de absorção e/ou sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado.

Quanto ao tratamento até o presente momento não há um guia de conduta bem estabelecido e deve-se levar em consideração uma terapia de suporte emocional e comportamental. Além disso, deve-se explicar a existência dos sintomas, comer devagar e evitar o uso de goma de mascar.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Esofagite Eosinofílica uma atualização: epidemiologia, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento (Parte 2)


Traduzido e Editado por Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto



Diagnóstico e Tratamento da EEo


A EEo é causada por uma resposta às células T-Helper tipo II e a antígenos alimentares em contato com a mucosa esofágica. Embora nenhum aspecto singular possa definir a EEo, uma constelação de achados compatíveis com a demografia, os aspectos clínicos, endoscópicos e histológicos, estabelecem o diagnóstico. As crianças apresentam sintomas e padrões endoscópicos característicos de inflamação, enquanto que adolescentes e adultos tem manifestações de fibrose e estenose esofágicas. Sistemas de pontuação clínica e endoscópica tem auxiliado na padronização diagnóstica. Todavia, ainda há controvérsias nas pesquisas a respeito da EEo quanto ao melhor ponto final no seu tratamento. Embora o objetivo maior a ser alcançado é a redução do número de eosinófilos nas biópsias, alívio dos sintomas e regressões dos aspectos das lesões endoscópicas têm se tornado importantes alvos da terapia. Torna-se necessário uma melhor compreensão da progressão da EEo e a respectiva necessidade de uma eficaz terapia de manutenção. Além disso, deve-se manter a continua busca no desenvolvimento de ferramentas diagnósticas, que possam evitar as repetidas avaliações endoscópicas e suas consequentes biópsias, para se alcançar uma forma mais fácil de monitorar a atividade da enfermidade.


Figure 1. Endoscopic images of EoE. EREFS, endoscopy can detect edema, white exudates, and furrows, which are markers of acute inflammation, whereas rings and strictures indicate remodeling.

Figura 1-Imagens endoscópicas da EEo: a endoscopia pode detectar edema, placas esbranquiçadas e sulcos, os quais são marcadores da inflamação aguda, enquanto que os anéis e as estenoses representam a remodelação esofágica.


Figure 2. Barium esophagram demonstrating small-caliber esophagus.

Figura 2- Esofagograma baritado demonstrando um calibre estreitado do esôfago.

Figure 3. Treatment algorithm for EoE. The algorithm illustrates the treatment strategy for EoE. Treatment should start with an anti-inflammatory agent (swallowed topical corticosteroids), PPIs, or an elimination diet. Treatment selection depends exclusively on the patients and physicians preference, because no comparative studies have shown any of these to be superior to the others. Dilation is indicated if symptoms persist despite successful control of inflammation. After each change of treatment strategy, symptoms, endoscopic, and histologic features should be revaluated, because symptoms do not accurately reflect the inflammatory activity of the disease.

Figura 3- Algorritmo do tratamento da EEo. O tratamento deve ser iniciado com um agente anti-inflamatório (corticoide tópico ingerido), inibidores da bomba de prótons, ou dieta de eliminação. A seleção do tratamento depende exclusivamente da preferência do médico e do paciente, porque nenhum estudo comparativo tem demonstrado que qualquer um deles é superior aos outros. A dilatação esofágica está indicada no caso da persistência dos sintomas a despeito do controle exitoso da inflamação. Aós cada oportunidade da estratégia do tratamento, os sintomas, e os aspectos endoscópicos e histológicos devem ser reavaliados, porque os sintomas não refletem acuradamente a atividade inflamatória da enfermidade.


quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Esofagite Eosinofílica uma atualização: epidemiologia, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento (Parte 1)


Traduzido e Editado por Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A revista Gastroenterology do mês de janeiro de 2018, publicou três artigos independentes de atualização a respeito dos mais importantes aspectos sobre Esofagite Eosinofílica (EEo), cujos resumos e suas respectivas figuras e tabelas, passo a transcrever abaixo.

Epidemiologia e História Natural da EEo


A EEo tem se apresentado ao longo das últimas duas décadas como a maior causa de morbidade do trato gastrointestinal superior. Considerando-se este período de tempo, os conhecimentos sobre a epidemiologia da EEo evoluíram rapidamente. De fato, a EEo transformou-se, em uma enfermidade que até há pouco tempo era considerada uma condição que consistia em tão somente a descrição de raros “Relatos de Casos”, para uma enfermidade que se tornou frequentemente encontrada nas publicações pertinentes à Gastroenterologia clínica e ao Centro endoscópico. A incidência e a prevalência da EEo têm aumentado a taxas que sobrepujam o aumento do reconhecimento da enfermidade. Estimativas da sua incidência atual variam de 5 a 10 casos por 100 mil indivíduos e as estimativas atuais de prevalência variam de 0,5 a 1 caso por mil indivíduos. Nesta revisão, são analisados os dados e as razões potenciais que estão por traz desse aumento, são examinados os fatores de risco e são, também, identificadas as importantes áreas para pesquisa da etiologia da EEo. Além disso, propõe-se a discutir a progressão da EEo, a partir de um fenótipo inicialmente inflamatório, para uma potencial evolução para um fenótipo fibro-estenótico. Uma visão acurada da história natural da EEo torna-se um pilar básico para as discussões com os pacientes, tendo em vista o prognóstico da enfermidade e as decisões de longo prazo a respeito das terapias medicamentosa, endoscópica e dietética. A remodelação progressiva da mucosa esofágica parece ser um processo gradual, mas não necessariamente universal, e a duração da enfermidade não tratada é o melhor fator preditivo para o risco de estenose. Finalmente, estudos prospectivos de desfecho de longo prazo, que devem levar em consideração os múltiplos aspectos da atividade da enfermidade, são necessários para a total compreensão da história natural da EEo.


Figura 1- (A) Tendência do tempo na incidência da EEo a partir de estimativas de estudos baseados na população. (B) Tendência do tempo da prevalência da EEo a partir de estimativas de estudos baseados na população.      



Figura 2- Estimativa da prevalência mundial da EEo em estudos baseados na população.


Figura 3- Prevalência da EEo em populações especiais, incluindo pacientes que foram submetidos à endoscopia por razão não especificada, por disfagia, por impactação alimentar, ou sintomas refratários de refluxo.

Tabela 1- Fatores de risco da EEo e os transtornos associados à EEo.

Potencial da evolução natural da EEo.

 Fisiopatologia da EEo

A EEo distingue-se do Refluxo Gastroesofágico Esofágico (RGE) pela existência de um transcriptoma esofágico exclusivo, bem como pela interrelação de fatores ambientais precoces na vida do indivíduo com elementos específicos de susceptibilidade genética, a saber: 5Q22 e 2P23. Síndromes genéticas raras têm dificultado a contribuição a respeito da ruptura da barreira de permeabilidade esofágica, a qual é parcialmente mediada por desmosomas defeituosos e irregulares, que transformam a produção do fator de crescimento beta e sua sinalização na fisiopatologia da EEo. Modelos experimentais têm definido um papel de cooperação de eosinófilos ativados, mastócitos e citocinas IL-5 e IL-13, mediados por sensibilização alérgica por múltiplos alimentos. A compreensão desses processos tem aberto o caminho para se obter o melhor tratamento, o qual deve ser baseado nas respostas de um processo alérgico-inflamatório e mediado pela citocina tipo II, e que, portanto, deve incluir terapêutica anticitocina e a dietoterapia.



Figura 1- Visão geral da fisiopatologia da EEo. Fatores ambientais, incluindo alimentos e o microbioma, interagem com o epitélio esofágico para provocar a produção de citocinas pró-atopias IL-33 e TSLP. Células T reguladoras e células T helper tipo 2 secretam citocinas bioativas incluindo TGF-b, IL-4, IL-13 e IL-5, as quais provocam ruptura da barreira de permeabilidade, remodelação tecidual e inflamação eosinofílica.


Figura 2- Aspectos clínicos, patológicos e terapêuticos da EEo. Alergenos comandam a EEo: intervenções atuais (corticoides) e futuras poderão tratar a enfermidade. Os sintomas presentes são evidenciados, acarretando inflamação, remodelação rígida e disfunção esofágica.


Figura 3- Fatores que contribuem para o desenvolvimento da EEo.