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terça-feira, 26 de agosto de 2025

A permeabilidade intestinal na interação dos transtornos cérebro-trato digestivo: desde a escrivaninha até a beira do leito (Parte 2)

 Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista Gastroenterology publicou um artigo de revisão, em março de 2025, intitulado “Intestinal Permeability in Disorders of Gut–Brain Interaction:  From Bench to Bedside”, de Madhusudan Grover e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

Tratamentos disponíveis com o objetivo de fortalecer a barreira de permeabilidade intestinal nos transtornos da interação cérebro-trato digestivo (TI TDC)

Há uma série de medidas terapêuticas, tais como: dietas, farmacológicas, e comportamental que se admite exercerem efeitos benéficos sobre os sintomas dos pacientes portadores de TI TDC, por meio do fortalecimento da permeabilidade intestinal e da função da barreira mucosa. (Tabela 1 – Figura 3).

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DIETA:

Uma grande proporção de pacientes portadores de TI TDC, incluindo, a Síndrome do Intestino Irritável (SII), dispepsia funcional (DF) e constipação, tratam seus sintomas relacionados aos alimentos por meio de modificações da dieta. O tratamento dietético, como por exemplo, utilizando dietas ricas em fibra, baixos teores de gordura e baixas concentrações em FODMAPs, podem trazer alívio dos sintomas por meio de múltiplos mecanismos inclusive por uma melhoria da função da barreira mucosa.  

FIBRA:

Seres humanos produzem apenas um limitado número de enzimas para digerir principalmente amido, porém, a microbiota intestinal produz milhares de diversas enzimas que podem despolimerizar e fermentar os polissacarídeos da dieta transformando-os em ácidos graxos de cadeia curta, os quais os seres humanos podem absorver e utilizar porque eles fornecem energia para as células epiteliais, regulam a produção de muco, melhoram a função da barreira intestinal e reduzem a inflamação intestinal. Fibra solúvel, tal como, Psyllium, demonstrou-se ser eficaz na SII e na constipação idiopática. A fibra solúvel aumenta o conteúdo de água nas fezes pela fermentação da massa bacteriana e reduz o tempo de trânsito. A fibra solúvel exerce seu efeito positivo nos pacientes portadores TI TDC fortalecendo a integridade da camada de muco pelo aumento da produção dos ácidos graxos de cadeia curta em consequência da fermentação da fibra pela microbiota intestinal. Os ácidos graxos de cadeia curta fortalecem o metabolismo celular e regulam a função neuro imune, a qual produz efeitos protetivos para a barreira intestinal e aumentam a permeabilidade paracelular.

GORDURA ALIMENTAR:

O aumento da ingestão de gordura tem sido associado com o aumento dos sintomas na SII. Uma dieta de longo prazo com alto teor de gordura, contendo ambas as gorduras, saturadas e insaturadas, correspondendo a pelo menos a 35% das calorias, pode prejudicar a integridade da barreira intestinal por vários mecanismos. O consumo em excesso de gordura na dieta provoca uma alteração na expressão das proteínas das junções firmes dos enterócitos. Uma dieta elevada em gordura aumenta a síntese de sal biliar e reduz sua reabsorção, o que pode aumentar a permeabilidade intestinal por meio do aumento do estresse oxidativo da célula epitelial, apoptose e inflamação com alteração da estrutura da microbiota intestinal. Além disso, uma dieta rica em gordura induz o desequilíbrio entre as citocinas pro- inflamatórias e anti-inflamatórias, a qual aumenta as taxas das citocinas que destroem a barreira intestinal, diminui os níveis das citocinas formadoras da barreira intestinal e provocam inflamação.

FODMAPs:

Uma série de estudos têm demostrado alta eficácia de uma dieta com baixo teor de FODMAPs na SII e na DF. Os FODMAPs são constituídos por carboidratos de cadeia curta, pouco digerível e pouco absorvível, que podem desencadear sintomas em pacientes com TI TDC. Admite-se que o aumento dos sintomas digestivos provocados pelos FODMAPs ocorre devido ao aumento do conteúdo de água, gás colônico e distensão colônica provocados pela fermentação bacteriana. Estes fenômenos desencadeiam respostas alteradas na região do cérebro envolvida com os estímulos viscero-sensoriais.

GLUTAMINA:

A glutamina é um aminoácido essencial que possui um importante efeito sobre a sinalização celular, detoxificação da amônia e homeostase básica. Uma série de estudos demonstraram que deficiência de glutamina pode acarretar aumento da permeabilidade da membrana e sua suplementação pode restaurar a permeabilidade intestinal após uma lesão intestinal, como pode ocorrer na SII-D pós gastroenterite.

FÁRMACOS

Antagonistas dos receptores de histamina 1 (H-1)

O aumento do número de mastócitos e sua ativação tem sido estudados em pacientes com SII e DF. Este achado acarreta aumento da permeabilidade colônica e agrava os sintomas da diarreia. Os mastócitos também contribuem para o aumento da sensibilidade visceral periférica e da dor abdominal pela liberação de histamina. Terapêuticas tendo como alvo a redução da ativação dos mastócitos têm demonstrado a capacidade de diminuir os sintomas do TI TDC. Cetotifeno é um fármaco estabilizador dos mastócitos com propriedades antagonistas a H-1, que inibe a degranulação dos mastócitos e a liberação da triptase, histamina e citocina.

LUBIPROSTONE

É um derivativo da prostaglandina E1 que ativa os canais de cloro tipo 2 dando como resultado o aumento da passagem de água e cloro para o lúmen intestinal. LUBIPROSTONE, portanto, é uma droga eficaz para o tratamento da SII-C e da constipação idiopática crônica.

TENAPANOR

Essa droga tem sido demonstrada capaz de reduzir a dor abdominal e a constipação em pacientes portadores da SII-C. Além disso, previne a resposta de hipersensibilidade visceral, normaliza a excitabilidade neuronal sensorial colônica, e reduz a excitabilidade dos neurônios sensoriais do gânglio da raiz dorsal colônica.

Diagrama

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Conclusões

As evidências das acumulações fisiopatológicas sugerem que a permeabilidade intestinal contribui para os sintomas dos TI CTD, tais como a SII e a DF. Entretanto, os resultados dos testes de permeabilidade devem ser interpretados com precaução porque diferentes aspectos da função da barreira intestinal são acessados, porém não a totalidade deles – especialmente os biomarcadores não invasivos – estão apropriadamente validados. Atualmente, nenhum teste disponível desempenha um papel relevante na prática clínica. Para se designar um teste de permeabilidade intestinal como um biomarcador clínico, um número maior de estudos é necessário para desenvolver valores normativos. Além disso, estudos da fisiopatologia em seres humanos são necessários para determinar de que maneira as alterações na barreira contribuem para outros mecanismos, tais como: alterações na sensibilidade visceral, função motora, respostas imunes e a sinalização trato digestivo-cérebro. Uma série de atitudes, tais como, dietéticas, farmacológicas e comportamentais podem trazer efeitos benéficos sobre os sintomas da TI CTD, pelo menos em parte fortalecendo a permeabilidade intestinal e a função de barreira da mucosa. Portanto, a inclusão de investigações sobre a função da barreira intestinal em novos estudos no tratamento da TI CTD, trarão melhores compreensões do papel da função da barreira intestinal. Além disso, novas drogas com efeito mais direto sobre a barreira intestinal poderão propiciar novas esperanças para os pacientes portadores de TI CTD e outras patologias relacionais com a barreira intestinal.

Referências Bibliográficas

1-   Mars RAT e cols. - Cell 2020;182:1460-1473

2-   Zuo L. e cols.- Cell Mol Gastroenterol Hepatol 2020;10:327-3430

3-   Vanuytsel T. e cols. – Front Nutr 2021;8:71-79

4-   Edwinson AL. e cols. – Nat Microbiol 2022;7:680-694

 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Mecanismos moleculares da perda da integridade infra vascular e epitelial na Síndrome do Intestino Irritável (SII)


Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista Gastroenterology publicou um artigo, em novembro de 2024, intitulado “Molecular Mechanisms Underlying Loss of Vascular and Epithelial Integrity in Irritable Bowel Syndrome”, de Maria Raffaella Barbaro e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos. 

INTRODUÇÃO 

A Síndrome do Intestino Irritável (SII) trata-se de um transtorno da interação do eixo cérebro-trato digestivo, caracterizada por dor abdominal recorrente associada a alterações nos hábitos intestinais. Ainda que a SII não seja uma enfermidade de risco para a vida, está associada a uma redução na qualidade de vida, com prevalência universal de 4,1%, e importante prejuízo econômico para a sociedade. De acordo com os critérios de Roma IV, a SII pode ser subdividida em: SII com predominância de diarreia (SII-D); SII com predominância de constipação (SII-C); SII com hábito intestinal misto (SII-M) e SII não classificada (SII-N). A fisiopatologia da SII é multifatorial e inclui uma combinação de disfunções que englobam o eixo cérebro-trato digestivo, incluindo a motilidade intestinal, a sensibilidade visceral, o sistema imune da mucosa, a barreira epitelial e a microbiota intestinal.

A barreira da mucosa intestinal é a mais vasta interface entre o meio ambiente e o corpo humano, envolvendo papéis primários da microbiota intestinal, muco e o epitélio. A barreira epitelial contribui para a homeostase humana permitindo a absorção dos nutrientes, água e eletrólitos, porém, ao mesmo tempo, limita a passagem de antígenos e microrganismos prejudiciais à saúde. O aumento da permeabilidade intestinal tem sido descrito entre 37% e 62% dos pacientes portadores de SII-D, ainda que também possa estar presente nos outros subgrupos. Predisposição genética, estresse e reações adversas aos alimentos, como também má absorção dos ácidos biliares e excessiva liberação de mediadores proteolíticos, podem também participar nas alterações da permeabilidade.

Há uma considerável implicação potencial do aumento da permeabilidade intestinal, na geração dos sintomas, nos pacientes portadores de SII. Na verdade, o aumento da permeabilidade intestinal expõe a mucosa a provocações anormais dos antígenos intraluminais e da microbiota e dos seus metabolitos, causando e mantendo uma ativação imune da mucosa e hipersensibilidade visceral, um conceito posteriormente corroborado pela evidência de que na SII o aumento da permeabilidade intestinal se correlaciona com a intensidade da dor abdominal. Por outro lado, ao se corrigir a disfunção da barreira intestinal ocorre diminuição da dor abdominal e da hipersensibilidade visceral. 

Ainda que o defeito da barreira epitelial possa ser suficiente para determinar a disfunção e a lesão tecidual local, efeitos em órgãos distantes requerem a ocorrência da ruptura da barreira endotelial vascular, acarretando a disseminação sistêmica de antígenos luminais nocivos, metabolitos, citocinas, quimosinas e metabolitos da microbiota. Capilares sanguíneos encontram-se estrategicamente localizados imediatamente abaixo da barreira epitelial de modo a receber de forma eficiente os nutrientes e distribui-los em todo o organismo. A manutenção da integridade do epitélio bem como a Barreira Vascular Intestinal (BVI) é essencial para impedir a disseminação sistêmica de antígenos nocivos e partículas bacterianas.  A Caderina Vascular Endotelial (CVE) tem um papel principal na manutenção da integridade da barreira endotelial. Um dos mecanismos envolvidos na disfunção da barreira endotelial e epitelial está relacionada com a ativação do Receptor da Atividade da Protease 2 (RAP2). A RAP2 está largamente expressa na mucosa colônica e nas células epiteliais. RAP2 é ativada por proteases incluindo triptase e tripsina3 que estão significantemente aumentadas na mucosa colônica dos pacientes portadores da SII. Esse fenômeno ocorre por meio da clivagem do domínio extracelular N-terminal, e a subsequente interação da liberação deste novo domínio que age como uma ligação atada a segunda alça extracelular do receptor, desta forma dando início a sinalização de transdução. 

A presente investigação tem por objetivo caracterizar as barreiras epitelial intestinal e endotelial vascular na SII usando análises in vitro e in vivo; investigar os subjacentes mecanismos moleculares causadores das disfunções das barreiras nos pacientes portadores de SII, em comparação com controles assintomáticos; e avaliar a relação entre os dados experimentais e os sintomas clínicos. 

MATERIAL e MÉTODOS 

O desenho do estudo encontra-se materializado na Figura 1.

Figura 1- Desenho do estudo. Todos os indivíduos participantes do estudo foram submetidos à fenotipagem por meio da utilização de questionários devidamente validados. Análises experimentais foram realizadas na urina (teste de permeabilidade in vivo), biópsias (experimentos translacionais e análises morfológicas), testes sorológicos para avaliar translocação bacteriana, ativação imune, e função hepática. EM – microscopia eletrônica; IF – imunofluorescência; IHC imunohistoquímica; WB – Western blot.   

Foram envolvidos no estudo 78 indivíduos assintomáticos (controles) e 223 pacientes portadores de SII. A Avaliação da permeabilidade gastrointestinal foi realizada por meio do teste multissacarídeo. A barreira vascular foi avaliada por meio da imuno histoquímica e da microscopia eletrônica. A permeabilidade vascular foi avaliada por meio da expressão do plasmalema da mucosa e da caderina endotelial vascular. A alteração da permeabilidade endotelial foi realizada por meio da incubação de biópsias da mucosa intestinal em células Caco2.

RESULTADOS

A barreira epitelial intestinal mostrou-se alterada nos pacientes portadores de SII ao longo de todo trato intestinal. Mediadores solúveis da SII revelaram aumento da permeabilidade da Caco2 e por meio da disfunção da expressão das junções firmes. A densidade dos vasos sanguíneos e a permeabilidade vascular mostraram-se aumentadas na mucosa colônica dos portadores de SII. Os mediadores da mucosa dos pacientes portadores de SII apresentaram aumento da permeabilidade das células endoteliais de monocamadas de veias umbilicais humanas por meio da ativação do receptor-2 e da deacetilase 11, resultando em uma regulação anormalmente alterada da caderina do endotélio vascular. Aa alterações da permeabilidade se correlacionam com os sintomas intestinais e comportamentais, e, na baixa qualidade de vida dos pacientes portadores da SII.   

CONCLUSÕES 

Neste estudo, ficou demonstrado o comprometimento da integridade da barreira epitelial ao longo de todo o trato gastrointestinal, particularmente nos pacientes portadores de SII-D. A barreira vascular intestinal está afetada pela via da ativação do receptor 2 da protease ativada, que potencialmente acarreta a disseminação sistêmica de substâncias luminais potencialmente prejudiciais, incluindo elementos bacterianos, como demonstrado pelo aumento sanguíneo do ribossomo bacteriano RNA e o aumento dos níveis de um marcador de ativação do sistema imune inato. Um aumento moderado do nível das transaminases também pode sugerir um aumento do fluxo portal do fígado por meio de substâncias intestinais que escaparam do filtro da barreira intestinal. Um dos achados mais interessantes foi a correlação dos marcadores de disfunção epitelial e vascular com a intensidade da dor abdominal, flatulência, ansiedade e depressão, e o rebaixamento da qualidade de vida. Levando-se em consideração o conjunto dos achados, esses dados sugerem que o defeito das barreiras epitelial e vascular podem participar na disfunção do eixo cérebro-trato digestivo na SII. 

REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS 

  1. MR Barbaro e cols. – Gastroenterology 2024;167:1152-1166
  2. Sperber AD e cols. – Gastroenterology 2021;160:99-114
  3. Sharygin D e cols. – Immunology 2023;169:260-270
  4. Le Berre C e cols. – Lancet 2023;402:571-584

quarta-feira, 18 de junho de 2025

A permeabilidade intestinal na interação dos transtornos cérebro-trato digestivo: desde a escrivaninha até a beira do leito

 Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista Gastroenterology publicou um artigo de revisão, em março de 2025, intitulado “Intestinal Permeability in Disorders of Gut–Brain Interaction:  From Bench to Bedside”, de Madhusudan Grover e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

1.   Introdução

Os transtornos da interação trato digestivo-cérebro (TI TDC) são guiados por mecanismos periféricos e fisiopatológicos centrais complexos. Os mecanismos fisiológicos periféricos incluem alterações na motilidade, sensibilidade e permeabilidade gastrointestinal. Há provavelmente uma significativa conversação cruzada entre estes mecanismos, os quais podem guiar a sinalização para o sistema nervoso central (SNC). Além disso, fatores mediados centralmente podem também influenciar a função periférica. A barreira intestinal repousa sobre uma interface crítica entre os mediadores luminais e os compartimentos da submucosa, neuromuscular e sistêmico. A manutenção desta barreira é considerada crítica para o funcionamento regulador homeostático do trato gastrointestinal. Consequentemente, está implícito que uma disfunção da barreira é provavelmente a mediadora da translocação de fatores nocivos, os quais, podem desta forma, induzir disfunção epitelial, imune e neuromuscular. O conceito do aumento da permeabilidade intestinal é um fator relevante na fisiopatologia dos transtornos da interação cérebro-trato digestivo, e, ganhou notoriedade entre os Gastroenterologistas, tendo recebido impropriamente o rótulo de “Síndrome do Intestino Vazado”. A despeito da falta relativa de evidências mecanísticas plausíveis, há considerações para a significância da disfunção da barreira de permeabilidade nos pacientes portadores dos transtornos da interação trato digestivo-cérebro. (Figura 1)

2.   Uma revisão da Barreira de Permeabilidade Intestinal

Com uma área total de aproximadamente 30m2, a mucosa intestinal forma a maior superfície de contato entre o meio ambiente, que nos circunda, e o meio interno. Diferentemente da sólida barreira da epiderme, a barreira intestinal é semipermeável para permitir a absorção dos nutrientes e água, e, ao mesmo tempo, prevenir a penetração descontrolada de antígenos luminais não processados e microrganismos. O intestino é também um local crítico para dirigir e educar o sistema imunológico inato e adaptativo, por meio de uma continua troca entre o alimento no lúmen intestinal e os antígenos derivados da microbiota. Este processo, é conhecido como Tolerância Oral, serve para prevenir alergias alimentares e estabelecer uma relação simbiótica com a microbiota comensal. O termo “função da barreira intestinal” se refere a este delicado equilíbrio entre duas funções opostas de absorção (permeabilidade) e de defesa (barreira). A função da barreira intestinal é executada por múltiplos atores (Figura 2A) que incluem o conteúdo luminal contendo a microbiota, e substâncias antimicrobianas e a camada de muco.


O componente mais importante e fator limitante da absorção da barreira é o epitélio intestinal. A passagem de compostos do lúmen através do epitélio pode ocorrer pelas rotas transcelular ou paracelular (Figura 2B)

A via paracelular é a rota final para cruzar o epitélio, tem sido extensamente estudada em situações de enfermidade. O acesso pelo espaço paracelular é controlado pelas junções firmes (Figura 2B), enquanto os subjacentes complexos intercelulares juncionais – junções aderentes e desmosomas – são principalmente relevantes na manutenção estrutural do epitélio. Originalmente, entendidas como estruturas estáticas para prover a vedação intercelular, as junções firmes são atualmente reconhecidas como portões adaptáveis para regular o fluxo através do epitélio.

3.   Função da Barreira prejudicada e os Transtornos da interação cérebro-trato digestivo (TI CTD)

A SII e a Dispepsia Funcional (DF) são dois protótipos do (TI CTD) onde a barreira gastrointestinal pode estar prejudicada, e, admite-se que o aumento da permeabilidade favorece a penetração de antígenos luminares, no espaço sub-epitelial onde eles podem ativar o sistema imunológico. Em realidade, várias investigações têm descrito baixo grau de ativação imunológica na SII e da DF, especialmente com infiltração e ativação dos mastócitos e eosinófilos. Além disso, em ambas as condições clínicas, os mastócitos encontravam-se muito próximos das terminações nervosas da mucosa, sugerindo um papel na geração de sintomas, e, tratamentos dirigidos contra os mastócitos têm sido demonstrados serem bem-sucedidos na SII. Entretanto, permanece uma controvérsia quanto ao defeito da barreira ser a causa da ativação imunológica observada em interações neuro imunes, ou, por outro lado, uma consequência da ativação dos mastócitos e eosinófilos levando a liberação de mediadores tais como: a triptase, e, a principal proteína básica, a qual pode aumentar a permeabilidade intestinal.

4.   Tratamentos tendo como alvo a Barreira Intestinal nos Transtornos da Interação Cérebro-Trato Digestivo (TI CTD)

Há tratamentos dietéticos, farmacológicos, probióticos e comportamentais cérebro-trato digestivo que são considerados capazes de exercer efeitos benéficos sobre os sintomas nos pacientes portadores de TI CTD, através de uma diminuição da permeabilidade intestinal e da função da barreira mucosa. (Tabela 1, Figura 3).



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5.   Conclusões

A evidência das acumulações mecanísticas sugere que a permeabilidade intestinal contribui para a fisiopatologia dos TI CTD, tais como a SII e a DF. Entretanto, os resultados dos testes de permeabilidade devem ser interpretados com precaução porque diferentes aspectos da função da barreira intestinal são acessados, porém não a totalidade deles – especialmente os biomarcadores não invasivos – estão apropriadamente validados. Atualmente, nenhum teste disponível desempenha um papel relevante na prática clínica. Para se designar um teste de permeabilidade intestinal como um biomarcador clínico, um número maior de estudos é necessário para desenvolver valores normativos. Além disso, estudos mecanísticos em seres humanos são necessários para determinar de que maneira as alterações na barreira contribuem para outros mecanismos, tais como: alterações na sensibilidade visceral, função motora, respostas imunes e a sinalização trato digestivo-cérebro. Uma série de atitudes, tais como, dietéticas, farmacológicas e comportamentais podem trazer efeitos benéficos sobre os sintomas da TI CTD, pelo menos em parte fortalecendo a permeabilidade intestinal e a função de barreira da mucosa. Portanto, a inclusão de investigações sobre a função da barreira intestinal em novos estudos no tratamento da TI CTD, trarão melhores compreensões do papel da função da barreira intestinal. Além disso, novas drogas com efeito mais direto sobre a barreira intestinal poderão propiciar novas esperanças para os pacientes portadores de TI CTD e outras patologias relacionais com a barreira intestinal.

Referências Bibliográficas

1-   Mars RAT e cols. - Cell 2020;182:1460-1473

2-   Zuo L. e cols.- Cell Mol Gastroenterol Hepatol 2020;10:327-3430

3-   Vanuytsel T. e cols. – Front Nutr 2021;8:71-79

4-   Edwinson AL. e cols. – Nat Microbiol 2022;7:680-694

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado (SIBO) associado a sintomas ou entidades clínicas que não apresentam evidências de má digestão/má absorção


Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista Gastroenterology publicou um artigo de revisão, em julho de 2022, intitulado “Small Intestinal Bacterial Overgrowth – Pathophysiology and Its Implications for Definition Management”, de Bushyhead D.  e cols, que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

Este número da Gastroenterology publicou um artigo de revisão sobre as diversas situações clínicas relacionadas com o Sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado (SIBO). Há uma interessante descrição dos fatores reguladores do intestino sobre a microbiota, a qual está representada na Figura 1.

Figura 1

Figura 1

Há também a descrição da prevalência da SIBO em diversos países, publicada na Tabela 1.

Tabela 1

Tabela 1

A Tabela 2 descreve os diversos transtornos clínicos relacionados à SIBO.

Tabela 2

Tabela 2

A Tabela 3 relaciona a fisiopatologia dos sintomas e os achados clínicos na SIBO.

Tabela 3

Tabela 3

A Tabela 4 descreve os testes diagnósticos para SIBO, e, a Tabela 5 propõe uma nova terminologia para se analisar o microbioma intestinal

Tabela 4

Tabela 4

Tabela 5

Tabela 5

Dentre as diversas situações que podem envolver o surgimento da SIBO decidi me ater a um transtorno funcional bastante frequente na atividade clínica diária, a Síndrome do Intestino Irritável (SII), que ainda necessita ter muitos aspectos esclarecidos, e, um deles é a inter-relação SII-SIBO que a seguir abordo em detalhe.

Sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado (SIBO) associado a sintomas ou entidades clínicas que não apresentam evidências de má digestão/má absorção

Sabe-se que SIBO pode causar diarreia na ausência de outros aspectos clínicos de má digestão e/ou má absorção (esteatorréia, desnutrição, deficiências de vitaminas e nutrientes) desde a metade do século 20, com especial prevalência entre os indivíduos idosos. Esta hipótese é plausível e se apoia em vários fatores. Em primeiro lugar, os fatores de risco para SIBO (hipocloridria, dismotilidade intestinal e resposta imunológica prejudicada) tem sido descrita neste grupo populacional. Em segundo lugar, inúmeros mecanismos podem ser levados em consideração para explicar a patogênese da diarreia devido à SIBO, e, a maior parte deles gira ao redor das interações microbiota-sais biliares, mesmo porque, efeitos diretos do microbioma alterado sobre o sistema neuromuscular entérico devem ser levados em consideração.

Uma das maiores alegações controvertidas relativas à SIBO tem sido sua relação com a Síndrome do Intestino Irritável (SII). Qual a possível relação entre SIBO e SII, embora seu nexo seja duvidoso? Tem sido demonstrado que pacientes portadores de SII, ao realizar o teste do Hidrogênio no ar expirado após sobrecarga com Lactulose, estes testes revelaram-se positivos de forma mais prevalente do que em controles sadios. Além disso, comprovou-se a ocorrência da normalização dos testes e o desaparecimento dos sintomas após a realização de um ciclo terapêutico com antibioticoterapia. A eficácia da Rifaximina como atenuante dos sintomas na SII tem sido considerada uma evidência que dá suporte para esta associação SIBO e SII.

Uma ruptura na fisiologia dos sais biliares tem sido considerada para explicar casos de diarreia sem causas conhecidas, bem como, na SII com diarreia. Embora a diarreia relacionada aos sais biliares tenha sido considerada decorrente de problemas da não reabsorção dos sais biliares pelo transportador ileal dos sais biliares, interações entre a microbiota e os sais biliares também têm sido levadas em consideração. Alterações na composição da microbiota fecal, que provavelmente refletem a microbiota colônica, têm sido descritas em associação com alterações da fisiologia dos sais biliares em pacientes com SII-diarreia, porém saber se tais alterações seriam primárias ou secundárias, necessita a realização de investigações mais detalhadas.

Alterações nos padrões motores do intestino delgado poderiam também fornecer alguma base para o conhecimento da interrelação SIBO e SII. Embora ainda pouco explorada nos anos mais recentes, existem evidências que caracterizam uma dismotilidade intestinal na SII, porém essa hipótese ainda requer confirmação. Presume-se que a microbiota presente no intestino delgado em pacientes com SII poderia afetar o sistema neuromuscular entérico, e, por isso ser a responsável pela dismotilidade, posto que a SIBO tem sido sugerida ocorrer em um subtipo de SII, a SII pós-gastroenterite.

SIBO tem ido proposto responsável por impactar um outro fenômeno que poderia ser relevante para a SII, isto é, o envolvimento desde a barreira intestinal juntamente com o sistema imunológico associado ao intestino, e, pela via do eixo microbiota-intestino-cérebro, alcançar o sistema nervoso central, e, desta maneira, tornar-se um hospedeiro de tal cenário, simulando um “transtorno autoimune”.

Diante dos conhecimentos até então disponíveis na literatura, admite-se, portanto, que a interrelação SII-SIBO permanece controvertida, e este debate tem gerado muito calor na literatura da gastroenterologia; somente após ser conhecida uma definição acurada a respeito do que venha a ser um microbioma normal do intestino delgado, se tornará possível a geração de luz sobre tão importante tema para os clínicos, pesquisadores e pacientes.


Referências Bibliográficas

  • Bushyhead D. & Quigley E. – Gastroenterology 2022;163:593-607
  • Pimentel M et al. – Am J Gastroenterol 2003;98:412-19
  • Pyleris E. et al. – Dig Dis Sci 2012;57:1321-29
  • Yu D. et al, – Gut 2011;160:334-340