sexta-feira, 30 de maio de 2014

Sensibilidade ao Glúten sem Doença Celíaca

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Diretor Médico do Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo (IGastroped) 


Introdução

A Sensibilidade ao Glúten sem Doença Celíaca (SGSDC) foi originalmente descrita por Cooper e cols., em 1980 (1), em um grupo de 8 mulheres adultas que sofriam de dor abdominal e diarreia crônica as quais eram geralmente incapacitantes e frequentemente noturnas, que apresentavam alivio significativo com a utilização de dieta isenta de glúten, e cujos sintomas recidivavam com a reintrodução do glúten na dieta. Múltiplas biópsias de jejuno não revelaram alterações significativas compatíveis com aquelas descritas na Doença Celíaca (DC). Os autores concluíram que estas pacientes apresentavam diarreia sensível ao glúten, mas que não demonstravam quaisquer evidências de DC. Desde então, esta entidade clínica permaneceu no esquecimento até que Sapone e cols., em 2010 (2), redescobriram esta enfermidade, a qual se caracterizava pela presença de sintomas intestinais e extra intestinais relacionados com a ingestão de alimentos contendo glúten em indivíduos que não sofriam de DC ou Alergia ao Trigo (AT). A partir deste novo relato da SGSDC, rapidamente um número cada vez maior de artigos tem sido publicados por inúmeros grupos independentes, confirmando que a SGSDC deve ser definitivamente incluída no espectro dos transtornos relacionados ao glúten (3-4-5-6). Entretanto, os mais diversos aspectos da epidemiologia, fisiopatologia, espectro clínico e tratamento da SG ainda permanecem obscuros. Os esclarecimentos destes aspectos até o momento não elucidados deverão ser alcançados através de investigações clínicas e laboratoriais utilizando metodologia científica reconhecidamente válida, através de estudos multicêntricos e prospectivos envolvendo a SGSDC.

Doença Celíaca versus Sensibilidade ao Glúten Sem Doença Celíaca

Existe um acordo global de que o termo “transtornos relacionados ao glúten” é uma denominação “guarda-chuva” que deve ser utilizado para descrever todas as condições clínicas relacionadas à ingestão de alimentos que contém glúten.

A DC é uma enfermidade autoimune sistêmica causada por uma intolerância permanente ao glúten – principal fonte proteica presente no trigo, centeio e cevada – que afeta indivíduos geneticamente predispostos (7). Trata-se de uma enfermidade com característica peculiar, pois necessariamente envolve a associação de um fator da dieta (glúten) com uma particularidade genética, a presença do Antígeno Leucocitário Humano (HLA) DQ2/DQ8.    

A DC pode se apresentar em qualquer grupo etário e determinar uma multiplicidade de manifestações clínicas, isto é, abrange um amplo espectro de sintomas que podem ser tanto digestivos quanto extra digestivos, circunstâncias estas que provavelmente possam explicar um retardo no diagnóstico.

As formas de apresentação da DC são: 1) Clássica - predomínio dos sintomas digestivos: diarreia crônica, perda de peso, parada do crescimento, distensão abdominal, edema; 2) Atípica - sintomas digestivos mínimos ou ausentes: anemia, baixa estatura, anorexia, osteoporose, alterações do esmalte dentário, alopecia, epilepsia, atraso da puberdade; 3) Silente – ausência de quaisquer sintomas, porém com sorologia positiva e atrofia vilositária duodenal. Nesta circunstância, a DC é detectada em estudos populacionais, em familiares de pacientes portadores de DC, em indivíduos de alto risco para DC, ou ainda, naqueles pacientes que foram submetidos à endoscopia digestiva alta por motivos não relacionados à DC, mas que vieram a apresentar atrofia vilositária da mucosa duodenal; 4) Latente – sintomático ou assintomático, sorologia positiva, marcadores genéticos susceptíveis, porém, com biópsia duodenal normal ou discreto número de linfócitos intra-epiteliais.

Recentemente, em Munique, em dezembro de 2012, foi realizado o Segundo Encontro de Experts sobre SGSDC (8) para avaliar e discutir os maiores avanços e as atuais tendências da SGSDC, cujas conclusões estão descritas a seguir.

A SGSDC é uma entidade clínica na qual os sintomas são desencadeados pela ingestão do glúten, na ausência de anticorpos celíacos específicos e da clássica atrofia vilositária do intestino delgado observada na DC, com condição variável do HLA e possível positividade da primeira geração de anticorpos antigliadina IgG (AGA) (56,4%). Por outro lado, a prevalência de IgA AGA nos pacientes com SGSDC tem se revelado muito baixa (7,7%). É importante salientar que os melhores marcadores sorológicos (anticorpo antitransglutaminase e antiendomisio) para DC tem sempre se revelado negativos nos pacientes com SGSDC. Vale ressaltar que o painel de experts concordou que esta nomenclatura seja provisória e que deverá haver refinamento da mesma em um breve futuro.

Manifestações Clínicas, Diagnóstico e Tratamento da SGSDC

A SGSDC caracteriza-se por sintomas que usualmente aparecem logo após a ingestão de glúten, desaparecem com a retirada do glúten da dieta e reaparecem nas próximas horas ou poucos dias subsequentes, após um teste de provocação com glúten. A manifestação clássica da SGSDC é uma combinação de sintomas similares aos observados na Síndrome do Intestino Irritável (SII) incluindo dor abdominal, flatulência, alterações do hábito intestinal (diarreia ou constipação), e manifestações sistêmicas tais como, confusão mental, cefaleia, cansaço, dores musculares e nas articulações, dermatite, depressão e anemia. Quando os pacientes são atendidos em uma clínica especializada, muitos deles espontaneamente relatam uma relação causal entre a ingestão de alimentos contendo glúten e o agravamento dos sintomas. Nas crianças, a SGSDC manifesta-se tipicamente por meio de sintomas gastrointestinais, tais como, dor abdominal e diarreia crônica; manifestações extra intestinais parecem ser menos frequentes nas crianças, e nestas últimas o sintoma mais comum tem sido cansaço. Sapone e cols. (9), realizaram biópsia de intestino delgado em pacientes com SGSDC e demonstraram mínimas alterações da mucosa jejunal (Marsh 0-1), enquanto que nos celíacos ocorreu atrofia vilositária subtotal e hiperplasia críptica. Vale ressaltar que até o presente momento não se tem conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese desta entidade e nem tampouco encontra-se disponível um marcador bioquímico que possibilite caracterizar seu diagnóstico laboratorial. O diagnóstico deste transtorno nutricional se estabelece por meio do teste de provocação que preferentemente deve ser realizado pela técnica duplo-cego, placebo-controlada. O tratamento preconizado é a eliminação do glúten da dieta do paciente.

SGSDC E SII: uma relação complexa

Vasquez-Roque e cols. (10), em 2013, demonstraram que pacientes não celíacos portadores da SII com predominância da variante diarreia, podem desenvolver sintomas gastrointestinais após a ingestão de glúten. Estes pacientes ao receberem uma dieta contendo glúten apresentavam maior número de evacuações por dia, particularmente aqueles cujo genótipo era HLA-DQ2 e/ou DQ8. A dieta contendo glúten mostrou-se associada com um aumento da permeabilidade do intestino delgado e uma significativa diminuição na expressão da zonula ocludens 1 da mucosa colônica. Estes efeitos foram significativamente maiores nos pacientes HLA-DQ2 e DQ8 positivos. Por outro lado, pacientes que receberam dieta contendo glúten versus aqueles que receberam dieta isenta de glúten, não apresentaram alterações significativas sobre o trânsito gastrointestinal ou na morfologia do intestino delgado. Os autores concluíram que o glúten provoca ruptura da barreira de permeabilidade intestinal nos pacientes com SII com diarreia, particularmente naqueles HLA-DQ2 e DQ8 positivos. As alterações na barreira de permeabilidade intestinal permitiram oferecer explanações mecânicas a respeito das observações de que a retirada do glúten da dieta pode provocar alivio dos sintomas nos pacientes portadores de SII com diarreia.

SGSDC, SII e os carboidratos fermentáveis não absorvíveis, em especial os Frutanos

Recentemente, Biesiekierski e cols. (11), em 2013, investigando pacientes portadores de SII com diarreia demonstraram que as alterações do hábito intestinal se deviam principalmente à presença de carboidratos fermentáveis não absorvíveis na dieta. Ao eliminar essas substâncias, porém, ainda que mantivessem alimentos contendo glúten ocorria um alívio dos sintomas digestivos. Esses autores passaram a utilizar a sigla FODMAPs (fermentable oligosaccharides, disaccharides, monossaccharides and polyols), que significa carboidratos fermentáveis não absorvíveis, em especial os frutanos. Frutanos são polímeros da frutose sintetizados a partir da sacarose e que ocorrem na natureza no mundo vegetal em inúmeros alimentos comumente utilizados na dieta ocidental. Essas substâncias não são digeridas e consequentemente não são absorvidas pelo trato digestivo do ser humano. Alcançam o intestino grosso e aí são fermentadas pelas bactérias da flora colônica, sendo transformadas em ácidos graxos de cadeia média com alto poder osmótico. A presença destas substâncias no lúmen intestinal provoca flatulência, dor abdominal e diarreia, em especial nos pacientes portadores de SII. O trigo é a maior fonte dietética de frutano, e este, além do glúten, é um aspecto que deve ser levado em consideração como mais um fator potencial causador de sintomas, posto que o trigo está presente em praticamente todas as refeições tradicionais do mundo ocidental, tais como: pães, cereais, macarrão, bolos, biscoitos e etc. Vale salientar que, além do trigo os frutanos estão presentes em inúmeros outros alimentos de uso comum em nossas dietas, tais como: feijão, feijão branco, grão de bico, ervilha, lentilha, banana, cebola, alho, repolho, alho poró e etc.  Por esta razão, Biesiekierski e cols. (11) propõem que nos pacientes portadores de SII com diarreia e intolerantes ao glúten e aos frutanos seja utilizada uma dieta restritiva destes alimentos.

Conclusões

Considerando que a SGSDC se trata de uma entidade clínica recentemente redescoberta e com limitado número de publicações, até o presente momento disponíveis na literatura científica, inúmeras questões a respeito deste transtorno digestivo ainda necessitam ser respondidas com maior precisão. Seria a SGSDC um transtorno permanente ou transitório? Seria o limiar de sensibilidade o mesmo para todos os pacientes, ou haveria um limiar variável de indivíduo para indivíduo, e no mesmo indivíduo haveria variação com o decorrer do tempo? Seria apenas o glúten o causador dos sintomas ou haveria também uma associação com os carboidratos fermentáveis e não digeridos? Qual é a verdadeira prevalência da SGSDC? Atualmente a prevalência relatada na literatura varia de 0,5 a 6%, números estes baseados em estudos realizados em diversos centros médicos, mas desprovidos de uma uniformidade científica no desenho dos projetos de pesquisa. Portanto, tornam-se cada vez mais urgentes investigações clínicas e laboratoriais de reconhecido valor científico que possam vir elucidar um sem inúmero de dúvidas ainda existentes a respeito de tão importante, intrigante e atual problema, que afeta um número cada vez mais crescente de indivíduos em todo o universo.


Referências Bibliográficas

1)   Cooper BT e cols. Gastroenterology 1980;79:801-6.
2)   Sapone  A e cols. Int Arch Allergy Immunol 2010;152:75-80.
3)   Matuchansky C. Gastroenterology 2013;145:692-95.
4)   Shepherd SJ e cols. J Am Diet Assoc 2006;106:1631-39.
5)   Staudacher HM e cols. J Nutr 2012;142:1510-18.
6)   Gibson PR e cols. Am J Gastroenterol 2012;107:657-66.
7)   Fasano A e cols. Gastroenterology 2001;120:636-51.
8)   Catassi C e cols. Nutrients 2013;5:3839-53.
9)   Sapone A e cols. BMC Med 2012;10:1741-50.
10)    Vasquez-Roque MI e cols. Gastroenterology 2013;144:903-11.
11)    Biesiekierski J e cols. Gastroenterology 2013;145:320-8.



segunda-feira, 19 de maio de 2014

Prevalência de Má Absorção à Frutose utilizando o teste do Hidrogênio no ar expirado (2)

Resultados

A idade dos 43 pacientes investigados variou de 3 meses a 16 anos, a mediana foi de 2,6 anos, sendo que 24 deles eram do sexo masculino. Neste grupo de pacientes foram estabelecidos os seguintes diagnósticos: SII 16, BE 10, DAF 8, Alergia à proteína do leite de vaca 4 , Intolerância à lactose 3, DC 1 e Giardíase 1.


Má absorção à frutose foi caracterizada em 13 (30,2%) pacientes, sendo que 1 (2,3%) paciente, além de má absorção, também apresentou sintomas de intolerância à frutose dentro das 8 horas após a realização do teste. A Figura 1 exemplifica um teste característico de má absorção à frutose evidenciando pico de elevação do Hidrogênio no ar expirado acima de 20 ppm sobre o valor de jejum e, para comparação dos traçados gráficos, está também representado um teste normal. 


Figura 1: Representação gráfica do teste de sobrecarga oral com frutose evidenciando pico de elevação do Hidrogênio no ar expirado acima de 20 ppm sobre o valor de jejum caracterizando má absorção à frutose   em comparação com teste normal      .

No gráfico 2 estão relacionados os 13 pacientes que apresentaram má absorção à frutose com seus respectivos diagnósticos, a saber: SII 7, DAF 4, BE 1 e DC 1 paciente.

Gráfico 2- Representação gráfica dos diagnósticos dos pacientes que apresentaram má absorção à frutose.

       A análise dos testes com sobrecarga oral utilizando os demais carboidratos (lactose, glicose e lactulose) apresentou os seguintes resultados: em 3 pacientes ocorreu má absorção isolada à lactose e em 1 paciente foi detectado sobrecrescimento bacteriano. Todos os testes com sobrecarga de glicose resultaram normais.

      Nos 4 pacientes (3 com intolerância à lactose e 1 com sobrecrescimento bacteriano) que apresentaram alguma alteração nos testes com outros carboidratos o teste com sobrecarga de frutose foi considerado normal e também não ocorreram sintomas de intolerância.

Discussão

Historicamente sucos de frutas têm sido recomendados pelos Pediatras como uma fonte de vitamina C e uma fonte extra de água para lactentes e pré-escolares, à medida que em suas dietas são incluídos novos alimentos sólidos com sobrecargas renais de solutos mais altas.  Em 1997 os consumidores norte-americanos gastaram cerca de US$ 5 bilhões em sucos de frutas. O consumo médio de suco de frutas nos EUA alcançou o valor de 40 bilhões de litros/ano ou 200 litros/ano por pessoa. As crianças constituiram-se no maior grupo de consumidores, e aquelas menores de 12 anos de idade ingeriram 28% do volume total consumido (10). Embora estes dados não estejam disponíveis no Brasil, pode-se presumir que por similaridade dos hábitos culturais atualmente praticados no mundo ocidental, neste aspecto nutricional, estes valores devem ser bastante próximos. Em passado recente o principal suco utilizado era o de laranja, porém, com a imensa diversificação da indústria alimentícia, suco de outras frutas, tais como uva, maçã e pêra passaram a fazer parte da dieta habitual das crianças brasileiras. A água é o componente predominante nos sucos de frutas, porém, os carboidratos, incluindo sacarose, frutose, glicose e sorbitol constituem-se nos seus principais nutrientes. A concentração de carboidratos nos sucos de frutas varia desde 11g% (0,44 kcal/ml) até cerca de 16g% (0,64 kcal/ml) (5). A sacarose é um dissacarídeo que é hidrolisada em seus componentes monossacarídeos, glicose e frutose, pela ação da sacarase, presente nas microvilosidades dos enterócitos. A glicose é rapidamente absorvida por um processo de transporte ativo, enquanto que a frutose é absorvida por um mecanismo de transporte facilitado que não ocorre contra um gradiente de concentração. Além disso, a frutose pode ser absorvida de forma mais eficiente quando a glicose se encontra presente em concentrações equimolares. No entanto, investigações clínicas têm demonstrado que quando a concentração de frutose excede a de glicose pode ocorrer má absorção da frutose (11 -12). É fato reconhecido que a capacidade absortiva da frutose no intestino delgado é limitada, e que, por outro lado, a adição de glicose facilita a absorção da frutose pelo mecanismo da draga do solvente e por difusão passiva (13). Portanto, alimentos que contém concentrações equimolares de frutose e glicose podem proporcionar melhor absorção deste monossacarídeo do que alimentos em que a concentração da frutose excede a de glicose. Sucos de maçã, pêra e uva apresentam uma concentração de frutose que excede em mais do que o dobro a da glicose, enquanto que no suco de laranja as concentrações de glicose e frutose se equivalem (4). Má absorção à frutose tem sido relatada com crescente frequencia como uma causa a mais para ser agregada nos pacientes que apresentam sintomas gastrointestinais. Estudos prévios que demonstram uma relação causal entre má absorção à frutose e sintomas gastrointestinais foram inicialmente descritos em pacientes adultos. Choi e cols. (14) estudaram 183 pacientes utilizando o teste do hidrogênio no ar expirado com a oferta de 50 gramas de frutose em uma solução aquosa a 33%, e observaram um resultado positivo em 73% deste grupo. Estes pacientes também relataram uma série de sintomas, tais como, dor abdominal, flatulência, flatus e diarréia. Pacientes adultos com SII e má absorção à frutose apresentaram um agravo adicional dos sintomas em comparação com aqueles que apresentaram absorção normal à frutose (15). Estudos recentes com população de adultos demonstraram que um número significativo de pacientes com má absorção à frutose relatou alívio da dor abdominal, flatus, flatulência e diarréia quando foi introduzida uma dieta restrita de frutose (16 -17).

Está bem estabelecido que o teste do hidrogênio no ar expirado apresenta elevada confiabilidade no que diz respeito à sensibilidade e especificidade  (18). No passado acreditava-se que o pulmão fosse um órgão apenas responsável pela respiração, e, portanto, tinha-se o conceito de que somente o oxigênio e o dióxido de carbono pudessem ser dosados no ar expirado. Atualmente, sabe-se que o ar expirado dos pulmões contém mais de 2000 substâncias distintas, e que, além da respiração, os pulmões apresentam uma função adicional, qual seja a excreção de substâncias voláteis, e o hidrogênio é uma delas. É sabido que o ser humano sadio em jejum e em repouso não elimina hidrogênio porque o seu metabolismo não produz este gás, o qual somente é gerado quase que exclusivamente pelo metabolismo anaeróbio exercido pelas bactérias da flora colônica normal. As bactérias anaeróbias têm preferência para metabolizar os carboidratos, os quais são fermentados dando formação a ácidos graxos de cadeia pequena, CO2 e H2. O H2 é produzido no intestino atravessa a parede intestinal cai na circulação sistêmica, é transportado até os pulmões e, finalmente, é eliminado pela respiração como parte do ar expirado. A concentração de H2 pode ser mensurada em partes por milhão no ar expirado por técnica não invasiva com alto índice de precisão (19).
A proporção de má absorção de frutose utilizando-se o teste do hidrogênio no ar expirado é dependente da dose oferecida e este efeito tem sido mais profundamente estudado em adultos do que em crianças. Em adultos sadios 58% a 87% resultaram em teste positivo para má absorção de frutose quando foram oferecidos 50g do carboidrato, 10% a 25% resultaram em teste positivo com dose de 25g, e 0% a 10% com dose de 15g (20). Em crianças sadias o efeito da dose sobre a má absorção da frutose foi demonstrado entre 0,1 e 6 anos de idade; o teste resultou positivo em 100% das crianças quando a dose foi de 2 g/kg/peso, o qual foi reduzido para 40% com a dose de 1 g/kg/peso (21). No presente estudo utilizamos a dose padronizada de 1 g/kg até o máximo de 12 gramas, a qual pode ser considerada relativamente baixa em comparação com o volume potencialmente ingerido na dieta diária, posto que um copo de maçã (200ml) contém aproximadamente 15,5 gramas de frutose (6,8 gramas de glicose e 3 gramas de sacarose) (22). Por esta razão é possível que embora tenhamos detectado má absorção à frutose em 13 dos 43 pacientes, apenas 1 deles apresentou notória intolerância com distensão abdominal e diarréia.

Recentemente, Jones e cols. (23) descreveram a ocorrência de má absorção à frutose em crianças que apresentavam sintomas gastrointestinais, principalmente diarréia e dor abdominal. Jones e cols. enfatizam que o baixo limiar para a absorção da frutose apresenta significativas implicações para o consumo dietético da frutose nas crianças que manifestam queixas gastrointestinais. Os resultados do presente estudo coincidem com os de Jones e cols. posto que a maioria dos 13 pacientes que apresentaram má absorção à frutose, 7 eram portadores de SII com diarréia e 4 com DAF. Vale ressaltar que Gomara e cols. também puderam caracterizar má absorção à frutose em um grupo de pacientes com queixa de dor abdominal recorrente sem causa determinada, os quais evidenciaram alívio da dor abdominal com a utilização de uma dieta de restrição de frutose. Gomara e cols. (24) demonstraram que 11 de 33 pacientes com diagnóstico prévio de DAF apresentaram teste positivo para má absorção à frutose, e, além disso, conseguiram reproduzir os sintomas gastrointestinais de má absorção à frutose em 9 dos 11 pacientes. A restrição da frutose na dieta destes pacientes resultou em evidente alívio dos sintomas durante os 2 meses subsequentes de seguimento dos mesmos. Gomara e cols. enfatizam que a má absorção à frutose pode ser um significativo problema para este grupo de crianças e que o manuseio dietético apropriado torna-se eficaz no alívio dos sintomas gastrointestinais.

Gijsbers e cols. (25) investigaram um grupo de crianças portadoras de DAF utilizando o teste do hidrogênio no ar expirado após sobrecargas com lactose (210 pacientes) e frutose (121 pacientes), e demonstraram a prevalência de má absorção de lactose em 27% e de frutose em 65% dos pacientes, respectivamente. A DAF desapareceu em 24/38 pacientes após a eliminação da lactose da dieta e em 32/49 após a eliminação da frutose da dieta. Um teste de provocação oral aberto foi positivo em 7/23 pacientes com lactose e em 13/31 pacientes com frutose. Vale ressaltar que esta elevada prevalência de má absorção à frutose neste grupo de pacientes pode ser devida a uma excessiva dose de frutose utilizada no teste de sobrecarga, posto que a concentração da solução oferecida aos pacientes foi de 16,7% à dose de 2 gramas/kg de peso, portanto, acima do padrão internacionalmente estabelecido e também daquele utilizado no nosso estudo, a qual foi de 1 grama/kg de peso. Está bem estabelecido que não há uma relação fixa entre má absorção e intolerância a um determinado carboidrato, posto que inúmeras variáveis podem atuar simultaneamente, tais como a dose utilizada, a capacidade individual de digestão/absorção, a relação concentração glicose/frutose e a capacidade de compensação colônica (25).

No caso do paciente portador de DC a má absorção à frutose provavelmente ocorreu em virtude da atrofia vilositária da mucosa do intestino delgado característica desta enfermidade (9).
Em conclusão, no presente estudo foi possível caracterizar má absorção à frutose em 30,2% dos pacientes portadores de variados transtornos digestivos e/ou nutricionais, sendo que 1 deles apresentou intolerância à frutose (2,3%). A SII mostrou-se como a principal causa da elevada prevalência de má absorção à frutose, seguida da DAF; porém, na quase totalidade dos pacientes não houve a correspondente intolerância, e isto provavelmente foi devido a um mecanismo de compensação colônica.

Referências Bibliográficas

10- Agriculture Research Service. Food and Nutrient Intakes by Individuals in the United States by Sex and Age, 1994-96. Washington DC. US Department of Agriculture; 1998. NFS Report n 96-2.
11- Smith MM, Davis M, Chasalow FI, Lifshitz F. Carbohydrate absorption from fruit juice in young children. Pediatrics 1995; 95: 340-44.
12- Nobigot T, Chasalow FI, Lifshitz F. Carbohydrate absorption from one serving of fruit juice in young children: age and carbohydrate composition effects. J Am Coll Nutr 1997; 16:152-58.
13- Riby JE, Fujisaswa T, Kretchmer N. Fructose absorption. Am J Clin Nutr 1993; 58: S748-53.
14- Choi YK, Johlin FC, Summers RW et al. Fructose intolerance: an under-recognized problem. Am J Gastroenterol 2003; 98: 1348-53.
15- Rumissen JJ, Gudmannd-Hoyer E. Functional bowel disease; malabsorption and abdminal distress after ingestion of fructose, sorbitol and fructose-sorbitol mixtures. Gastroenterology 1988; 95: 694-700.
16- Johlin FC, Panther M, Kraft N. Dietary fructose intolerance: diet modification can impact self-rated health and symptom control. Nutr Clin Care 2004; 7: 92-7
17- Ledochowsky M, Widner B, Bair H et al. Fructose and sorbitol reduced diet improves mood and gastrointestinal disturbances in fructose malabsorbers. Scand J Gastroentrol 2000; 35: 1048-52. 
18-
Romagnnuolo J, Schiller D, Bailey RJ. Using breath tests wisely in a gastroenterology practice: na evidence-based reviewof indications and pitfalls in interpretation. Am J Gastroenterology 2002;97:1113-26.
19- Eisenmann A, Amann A, Said M et al. Implemetaiton and interpretation of Hydrogen breath tests. J Breath Res 2008; 2: 1-9.
20- Doma S, Gaddipati K, Fernandez A et al. Results of fructose breath test in healthy controls using different doses of fructose: which dose is best? Am J Gastroenterol 2003; 98: s265-6.
21- Hoekstra JH, Van Kempen AA, Bijl SB et al. Fructose breath Hydrogen tests. Arch Dis Child 1993; 68: 136-8.
22- Hyams JS, Etienne NL, Leichtner AM. Carbohydrate malabsorption following fruit juice ingestion in young children. Pediatrics 1988;82:64-8.
23- Jones HF, Burt E, Dowling K, Davidson G, Brooks D, Butler RN. Effect of age on fructose malabsorption in children presenting with gastrointestinal symptoms. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2011;52:581-84.
24- Gomara RE, Halata MS, Newman LJ, Bostwick HE et al. Fructose intolerance in children presenting with abdominal pain. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2008; 47: 303-8.
25- Gijsbers CFM, Kneepkens CMF, Buller HA. Lactose and frutose malabsorption in children with recurrent abdominal pain: results of double-blinded testing Acta Paediatrica 2012;101:411-15.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Prevalência de Má Absorção à Frutose utilizando o teste do Hidrogênio no ar expirado (1)

Adriana Chebar Lozinsky*, Cristiane Boé*, Ricardo Palmero**, Ulysses Fagundes-Neto***

*Residente de 4º ano da Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo (EPM-UNIFESP).
** Biomédico da Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Pediatria EPM-UNIFESP.
 ***Doutor em Gastroenterologia e Pediatria pela EPM-UNIFESP, Professor Titular da Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Pediatria da EPM-UNIFESP.

Introdução

A frutose é um carboidrato monossacarídeo encontrado na natureza em sua maior parte como constituinte da sacarose. Tem sido cada vez mais utilizada na dieta ocidental na forma de adoçante em produtos industrializados, por ser alternativa mais barata que a sacarose. Sua presença é comumente observada em refrigerantes, doces e principalmente em sucos de frutas naturais e artificiais (1). A frutose é transportada através do epitélio intestinal por um mecanismo facilitador denominado GLUT 5 (transportador facilitador de hexose), o qual apresenta alta afinidade pela frutose, que carrega este monossacarídeo através da membrana apical do enterócito (2). Este mecanismo possui capacidade limitada de absorção deste carboidrato.  A frutose pode também ser absorvida quando ingerida em associação com a glicose, sendo então arrastada pelo mecanismo da draga do solvente, pelas junções firmes dos enterócitos (3). Entretanto, quando a concentração da frutose em um determinado alimento encontra-se em excesso em relação àquela da glicose, condição esta muito frequentemente verificada em sucos de frutas, principalmente nos sabores maçã, uva e pêra, alguns indivíduos podem desenvolver má absorção à frutose (4-5). Estes indivíduos apresentam sintomas que incluem flatulência, diarréia, dor e distensão abdominal. Para se estabelecer o diagnóstico da má absorção/intolerância à frutose a anamnese deve incluir uma detalhada história dietética associada à investigação laboratorial que pode ser realizada por meio do teste do hidrogênio no ar expirado, o qual é realizado após ingestão de sobrecarga de frutose (6). Nesta circunstância, o monossacarídeo não absorvido no intestino delgado, é fermentado pelas bactérias colônicas resultando na produção de gases como metano, dióxido de carbono e hidrogênio, além de ácidos graxos voláteis de cadeia curta, tais como ácido acético, butírico e propiônico. O hidrogênio, por sua vez, atravessa a mucosa colônica, passa para a circulação sistêmica e, finalmente, é eliminado pela expiração. A confirmação diagnóstica se complementa quando ocorre alívio dos sintomas depois da retirada da frutose da dieta.
O objetivo do presente estudo é descrever a prevalência de má absorção à frutose utilizando o teste do hidrogênio no ar expirado em pacientes com transtornos digestivos e/ou nutricionais.

Casuística e Métodos

A)      Pacientes

Foram investigados 43 pacientes de forma consecutiva, de ambos os sexos, atendidos no ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica da EPM-UNIFESP, com queixa de transtornos digestivos e/ou nutricionais, tais como: dor abdominal crônica e recorrente, diarréia, vômitos e baixo ganho pôndero-estatural, no período compreendido de setembro de 2010 a fevereiro de 2012.

 Todos os pacientes foram submetidos ao Teste do Hidrogênio (H2) no ar expirado com sobrecarga oral dos seguintes carboidratos, a saber: glicose, frutose, lactose e lactulose, como parte rotineira da investigação da função digestivo-absortiva.

Além destes testes outros exames laboratoriais pertinentes para cada caso específico foram realizados.

B)      Teste do Hidrogênio no ar expirado com sobrecarga oral de carboidrato

B.1) Procedimento

Os testes foram realizados individualmente para cada carboidrato e em dias subsequentes.

Para a realização do teste os pacientes foram mantidos em jejum de 8 horas, sendo permitida a ingestão de pequenas quantidades de água; para os lactentes o período mínimo de jejum foi de 6 horas. Os testes foram realizados pela manhã, após o jejum noturno e lavagem bucal com antisséptico apropriado.

Os carboidratos foram administrados por via oral em solução aquosa a 10%, nas seguintes doses: Lactose 2g∕Kg (máximo 25g), Glicose 1g∕Kg, (máximo 12g), Frutose 1g/Kg (máximo 12g) e Lactulose 20g.

As amostras de ar expirado foram obtidas em jejum e a cada 15 minutos de intervalo de tempo durante a primeira hora e a cada 30 minutos de intervalo de tempo por 1 hora adicional, após a ingestão da solução contendo o respectivo carboidrato, totalizando 2 horas para cada exame.

B.2) Critérios de avaliação diagnóstica

No caso dos testes terem sido realizados com sobrecarga de frutose, glicose e lactose, considerou-se má absorção quando ocorreu incremento >20 partes por milhão (ppm) de H2 em relação ao jejum; considerou-se intolerância, caso durante o exame e∕ou até 8 horas após o mesmo, o paciente viesse a apresentar distensão abdominal, dor abdominal, diarréia e/ou vômito.

Por outro lado, no caso do teste realizado com sobrecarga de lactulose considerou-se sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado quando houvesse incremento >20 ppm de H2 no ar expirado em relação ao jejum, nos primeiros 60 minutos após a ingestão do carboidrato.

C)      Definições

Os diagnósticos clínicos dos transtornos funcionais foram caracterizados de acordo com os critérios de Roma III (7), a saber:

1-         Síndrome do intestino irrtitável (SII)

Desconforto abdominal ou dor, pelo menos um episódio por semana com duração de 2 meses anterior ao diagnóstico, associados a 2 ou mais dos seguintes sintomas:

- alívio com a evacuação;
- início do quadro associado à mudança na frequência das evacuações;
- início do quadro associado à mudança no formato das fezes;
- nenhuma evidência da coexistência de processo inflamatório, neoplásico, anatômico ou metabólico que pudesse explicar os sintomas.

2-         Dor abdominal funcional (DAF)

Dor abdominal caracterizada por ao menos um episódio por semana ou de forma contínua com duração de 2 meses anterior ao diagnóstico, cuja manifestação não apresentasse qualquer evidência de coexistência de processo inflamatório, neoplásico, anatômico ou metabólico que pudesse explicar os sintomas.

3-         Baixa estatura (BE)

O diagnóstico clínico de baixa-estatura foi caracterizado quando a estatura para a idade encontrava-se abaixo de -2 desvios padrões, utilizando-se como referência o z-score (8).

4-         Doença celíaca (DC)

O diagnóstico de doença celíaca foi caracterizado segundo os critérios da ESPGHAN (9).
Foi obtido consentimento formal dos pais dos pacientes para a realização dos testes diagnósticos.

O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da EPM/UNIFESP.

Referências:
1- Mishkin D, Sabrauskas L, Yalovsky M et al. Fructose and sorbitol malabsorption in ambulatory patients with functional dyspepsia: comparison with lactose maldigestion/malabsorption. Dig Dis Sci 1997; 42; 2591-8.
2- Jones HF, Butler RN, Brooks DA. Intestinal fructose transport and malabsorption in humans. Am J Physiol Gastrointest Liver Physiol 2011; 300: g202-6.
3- Shi X, Schedl HP, Summers RM et al. Fructose transport mechanisms in humans. Gastroenterology 1997; 113: 1171-9.
4- Lifshtz F, Ament ME, Kleinman RE, Klish W, Lebenthal E, Pearman J et al. Role of juice carbohydrate malabsorption in chronic nonspecific diarrhea in children. J Pediatr 1992; 120: 825-9.
5- Baker SS, Cochrane WJ, Greer FR et al. The use and misuse of fruit juice in Pediatrics. Pediatrics 2001; 107: 1210-13.
6- Duro D, Rising R, Cedillo M, Lifshitz F. Association between infantile colic and carbohydrate malabsorption from fruit juice in infancy. Pediatrics 2002; 109: 797-805.
7- Rasquin A, Di Lorenzo C, Forbes D et al. Childhood functional gastrointestinal disorders: child/adolescent. Gastroenterology 2006; 130: 1527-37.
8- World Health Organization. Physical status: the use and interpretation of anthropometry. Geneve: WHO; 1995.
 9- Husby S, Koletzko S, Korponay-Szabo IR et al. Coeliac disease diagnosis: ESPGHAN 1990 criteria or need a change? Results of a questionnaire. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2012; 54: 15-9.