sexta-feira, 29 de maio de 2009

Intolerância à Lactose: Mitos e Realidade (1)

O Leite é a principal fonte alimentar da dieta dos mamíferos durante o período de aleitamento, e, por esta razão, sempre atraiu o interesse dos profissionais da saúde, da indústria alimentícia e das mães. A utilização do Leite como parte constituinte da alimentação após o período de amamentação é recente na história do ser humano, datando aproximadamente de 6.000 anos. O Leite é universalmente reconhecido como um alimento de grande valor nutricional em cuja composição estão presentes todos os macronutrientes essenciais, a saber: proteínas, gorduras e carboidratos. O principal carboidrato do Leite, a LACTOSE, é a maior fonte de carboidratos dos lactentes; naquelas sociedades tradicionais nas quais o período de amamentação é exclusivo e prolongado, a LACTOSE se constitui praticamente na única fonte de carboidrato na dieta do lactente até o início do desmame.

A LACTOSE somente é encontrada na natureza como produto específico da secreção da glândula mamária e desde o ponto de vista evolutivo possui 100.000.000 de anos. A LACTOSE foi descoberta em 1633 por Bartoletus, em Bolonha, mas sua síntese química somente foi obtida em 1927 por Haworth e cols. nos Estados Unidos. A LACTOSE, Saccharum lactis, para ser sintetizada pela glândula mamária requer a participação de duas proteínas, a saber: uma enzima denominada N-galactosil transferase e a α-lactoalbumina (Figura 1).

Figura 1- Esquema gráfico da síntese da lactose.



A concentração de LACTOSE no leite dos mamíferos apresenta uma considerável variabilidade entre as diferentes espécies, e mantém uma relação inversamente proporcional com as concentrações das proteínas e gorduras. Por exemplo, o Leite da foca, Zalphus californianus, não possui nenhum carboidrato e a glicose encontrada no sangue dos filhotes durante o período da amamentação é derivada primariamente do glicerol da gordura do Leite da foca. Com exceção desses animais a LACTOSE é encontrada no Leite de todos os outros mamíferos, sendo que a maior concentração deste carboidrato é verificada no Leite materno (7 gramas%) (Figura 2).

Figura 2- Concentração dos macronutrientes: proteínas, gorduras e lactose nos diferentes mamíferos

Por outro lado, a concentração da LACTOSE em outros mamíferos dos quais se ordenha o Leite para o consumo humano, tais como, vaca, ovelha e cabra encontra-se ao redor de 4 a 5 gramas%.

A LACTOSE é um dissacarídeo constituído pela união de dois monossacarídeos, a saber: glicose e galactose (Figura 3).

Figura 3- Estrutura química da LACTOSE.

Por ser um dissacarídeo, possui uma estrutura química complexa e, portanto, não pode ser absorvida em seu estado natural pelo intestino dos mamíferos. Assim sendo, necessita ser desdobrada em seus monossacarídeos constituintes, glicose e galactose, e, após essa digestão os monossacarídeos são absorvidos pelas células do intestino e alcançam a circulação. A digestão da LACTOSE é executada por uma enzima específica denominada Lactase (β-galactosidase), a qual se encontra nas microvilosidades dos enterócitos (Figuras 4-5).

Figura 4- Ultramicrofotografia do intestino delgado mostrando um enterócito e no polo apical a região das microvilosidades, local de atividade da lactase.

Figura 5- Ultramicrofotografia em maior aumento das microvilosidades de um enterócito, local de atividade da lactase.

Lafayette Mendel, em 1909, demonstrou nitidamente que a Lactase encontrava-se presente no intestino de animais durante o período da amamentação, e que estava ausente ou em concentrações muito baixas nos animais adultos. Entretanto, somente 60 anos mais tarde comprovou-se, por meio de determinação bioquímica, a elevada atividade da Lactase no recém nascido humano, e, ao mesmo tempo, pode-se também demonstrar a curva do desenvolvimento da atividade da lactase em inúmeros animais, tais como, o rato, cachorro, camundongo, coelho, gato e cobaia (Figura 6).

Figura 6- Niveis de atividade da lactase no intestino de animais durante o período de amamentação e na vida adulta. (Johnson JD e cols. - Advances of Pediatrics 1974)

Embora haja pequenas diferenças nos tempos exatos nos quais o desenvolvimento da atividade máxima da Lactase é alcançado entre os diferentes mamíferos, uma configuração geral da curva de atividade máxima da enzima está bem definida durante o período perinatal, a qual é seguida por uma nítida depressão ou mesmo desaparecimento da atividade após o desmame e na vida adulta (Figura 7).
Figura 7- Curva dos niveis de atividade da lactase no intestino do rato desde o nascimento até a vida adulta. (Kretchmer N. Gastroenterology 61:805-13,1971)

Portanto, animais adultos, o ser humano inclusive, perdem a capacidade de digerir a LACTOSE. Este fato sugere que o desaparecimento da atividade da Lactase é uma característica normal entre os mamíferos e aqueles adultos que conservam a capacidade de digerir a LACTOSE representam uma inovação evolutiva “anormal”. Por esta razão, embora o Leite continue a ser utilizado em larga escala no mundo ocidental, na vida adulta, na maior parte do globo terrestre, o Leite nunca mais é servido como alimento depois do período da amamentação. Esta habilidade que alguns grupos étnicos adquiriram para digerir a LACTOSE após o período da amamentação e que se prolonga por toda a vida é explicada por uma mutação genética baseada na hipótese histórico-cultural que adiante será detalhadamente discutida.

Na verdade, após o desmame, cerca de 75% da população mundial sofre um declínio da atividade da Lactase, que é geneticamente determinado, sendo denominado hipolactasia do tipo adulto ou deficiência de Lactase, o qual pode acarretar má digestão e conseqüente má absorção da LACTOSE. Má digestão da LACTOSE pode, embora não necessariamente, provocar sintomas clínicos gastrointestinais desagradáveis. Intolerância à LACTOSE refere-se aos sintomas gastrointestinais associados à digestão incompleta da LACTOSE. Os indivíduos mal absorvedores que apresentam sintomas clínicos após a ingestão de Leite são denominados intolerantes à LACTOSE. Por outro lado, má digestão à LACTOSE nem sempre está correlacionada com intolerância à LACTOSE, posto que, mesmo aqueles indivíduos que apresentam má digestão, mas não desenvolvem sintomas após a ingestão de uma quantidade limitada de LACTOSE (por exemplo, 25 gramas) são considerados tolerantes à LACTOSE. Portanto, aqui já se configuram dois grupos de indivíduos cujas características nem sempre seguem juntas, ou seja, os mal absorvedores e os intolerantes à LACTOSE. Pode-se afirmar, destarte, que nem todo mal absorvedor é intolerante, mas que todo intolerante é mal absorvedor à LACTOSE.

No nosso próximo encontro continuaremos a discutir os aspectos mais interessantes desse tema intrigante e desafiador que tantas discussões suscita.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se transformou em um problema de saúde pública universal (7)

Tratamento

O único tratamento disponível, até o presente momento, para a DC é dietético, consistindo na eliminação do trigo, centeio e cevada, de forma permanente, da dieta do paciente.
É fortemente recomendável que o tratamento com a dieta isenta de glúten apenas se inicie após a confirmação diagnóstica por meio da realização da biópsia do intestino delgado.
É de fundamental importância o cumprimento efetivo da dieta isenta de glúten a fim de assegurar desenvolvimento pôndero-estatural e puberal adequados, manter adequada a densidade mineral óssea, preservar a fertilidade, reduzir o risco de anemia ferropriva e de deficiências de outros micro-nutrientes, bem como prevenir o surgimento de doenças malignas do trato digestivo, tal como o linfoma do intestino delgado. Entretanto, é do conhecimento geral que, na prática, manter a obediência restrita à dieta isenta de glúten de forma permanente é um grande desafio para o médico e para o paciente. A transgressão alimentar pode ser voluntária ou inadvertida. A transgressão voluntária costuma ocorrer em todas as faixas etárias e a inadvertida ocorre devido a incorreta inscrição dos ingredientes nos rótulos dos alimentos, ou então, à contaminação com glúten em um determinado produto industrializado.

Vale a pena frisar que há poucos estudos disponíveis na literatura médica a respeito das taxas de adesão à dieta isenta de glúten. Vera Lúcia Sdepanian, Professora Adjunta da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP e colaboradores (Arquivos de Gastroenterologia 2001; 38: 232-38) realizaram uma investigação com o objetivo de avaliar a obediência à dieta isenta de glúten, o conhecimento teórico acerca da DC e seu tratamento pelos pacientes cadastrados na Associação dos Celíacos do Brasil (ACELBRA). Foi enviado pelo correio um questionário para se determinar a obediência da adesão à dieta isenta de glúten, do conhecimento teórico e do tratamento da DC a 584 membros cadastrados na ACELBRA. Foram retornados 529 (90,6%) questionários devidamente preenchidos, os quais revelaram que 69,4% dos pacientes nunca ingerem glúten e 29,5% reconhecem que não cumprem a dieta de forma restrita. A proporção dos pacientes que ingere glúten freqüentemente ou que não faz restrição alguma é maior entre aqueles com idade igual ou maior a 21 anos (17,7%) do que os com idade menor (9,9%). A freqüência de obediência à dieta isenta de glúten foi maior quando o intervalo de tempo em que foi estabelecido o diagnóstico da DC foi inferior a cinco anos. Para 96,2% dos pacientes que responderam ao questionário a dieta deve ser totalmente isenta de glúten, enquanto que para os 3,8% restantes o glúten pode ser ingerido semanal ou mensalmente. Segundo 67,1% dos pacientes o glúten é uma proteína, enquanto que para 10,2% é uma enzima, 5,5% um carboidrato, 0,6% uma gordura e 16,6% responderam que não sabiam. Quanto aos cereais onde o glúten está presente 98,7% responderam no trigo, 94,7% na cevada, 95,1% na aveia, 93,4% no centeio e 1,0% no arroz. Com relação aos possíveis substitutos dos alimentos que contém glúten, a farinha de milho foi referida em 97,9% dos inquéritos, o polvilho em 98,3%, a fécula de mandioca em 98,9%, e a farinha de arroz em 97,5%. Este estudo demonstra que o esclarecimento da causa da DC e seu respectivo tratamento exercem papel fundamental no cumprimento da dieta isenta de glúten de forma restrita.
Monitoramento dos Pacientes
Recomenda-se que os pacientes portadores de DC sejam monitorados por meio de visitas periódicas ao médico, para que este possa avaliar a existência ou não de sintomas compatíveis com transgressões dietéticas, analisar a curva de crescimento e a adesão à dieta isenta de glúten.
Recomenda-se também a determinação dos auto-anticorpos (TTG ou EMA) após os primeiros 6 meses da confirmação diagnóstica pela biópsia do intestino delgado e do início do tratamento com dieta isenta de glúten. Caso a dieta esteja sendo rigorosamente cumprida o título do auto-anticorpo deve cair abruptamente ou mesmo desaparecer. Por outro lado, caso o título permaneça elevado associado ou não a alguma manifestação clínica é muito provável que o paciente esteja transgredindo a dieta isenta de glúten voluntária ou inadvertidamente.

Neste ponto encerramos a apresentação dos tópicos mais importantes a respeito da DC, esta enfermidade que ainda apresenta um sem número de desafios para os pesquisadores e para os clínicos, mas cujos conhecimentos vem se avolumando de forma avassaladora nos últimos anos, principalmente após o reconhecimento dos marcadores sorológicos. A qualquer momento retornaremos a esta discussão, assim que novos e importantes achados estejam disponíveis na literatura médica.

No nosso próximo encontro iniciaremos uma nova discussão abordando o fascinante tema da Intolerância à Lactose, sua realidade e seus mitos.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se transformou em um problema de saúde pública universal (6)

O papel desempenhado pela Genética na Doença Celíaca

A suscetibilidade para a ocorrência da DC está, em parte, determinada por uma associação com um Antígeno de Histocompatibilidade (HLA – human leukocytes antigen) dominante comum: especificamente, com o mais importante complexo de antígenos classe II de histocompatibilidade, DQ2 e DQ8. Esses genes são codificados para glicoproteinas que se ligam a peptídeos e formam um complexo antigênico HLA que pode ser reconhecido pelas células T receptoras CD4+ na mucosa intestinal. O gene DQ2 está presente em cerca de 90% dos pacientes e quando esses alelos são homozigotos respondem pela instalação precoce da forma clássica da DC. Vale ressaltar que embora o gene DQ2 represente a base da suscetibilidade genética da DC, eles estão presentes em cerca de 30% de toda a população. O gene DQ8 está presente na maioria dos restantes 10% dos pacientes. Portanto, como as moléculas de DQ2 e DQ8 respondem pela quase totalidade dos pacientes com DC, a ausência das mesmas, nos testes genéticos, praticamente exclui a possibilidade da existência da DC em um determinado indivíduo. Vale ressaltar, porém, que embora DQ2 esteja presente em 30% da população geral e que tanto DQ2 como DQ8 estejam presentes em 40% da população geral, a auto-imunidade para DC irá surgir em apenas cerca de 3% da população geral que possui DQ2. Desta forma as sondas genéticas para DQ2 e DQ8 apresentam alta sensibilidade (baixas taxas de falso negativo), mas baixa especificidade (altas taxas de falso positivo), indicando, portanto, baixo valor preditivo positivo, mas um alto valor preditivo negativo para a DC.
Diagnóstico

O diagnóstico da DC usualmente é suspeitado em um primeiro momento pela presença dos auto-anticorpos, porém, deve sempre ser confirmado pela realização da biópsia de intestino delgado. Há uma série de artigos disponíveis na literatura médica demonstrando que o diagnóstico baseado em critérios clínicos levando-se em consideração apenas as manifestações gastrointestinais mostraram-se incorretos em mais de 50% dos casos. Exames radiológicos ou mesmo outros testes laboratoriais também são incapazes de definir corretamente a existência ou não da atrofia vilositária.

Atualmente, é consenso internacional que crianças maiores de 2 anos de idade (em crianças menores as mesmas alterações histológicas também podem ser observadas em lactentes portadores de enteropatia por alergia à proteína do leite de vaca), que apresentam manifestações clínicas sugestivas da DC associadas a lesões morfológicas características do intestino delgado, e que evoluem para a recuperação clínica e nutricional quando submetidas à dieta isenta de glúten, o diagnóstico da DC pode ser considerado definitivamente correto, sem que haja necessidade da realização de novas biópsias do intestino delgado. Além disso, caso tenham sido demonstrados auto-anticorpos antes do diagnóstico e o conseqüente desaparecimento dos mesmos, após a introdução da dieta isenta de glúten, estes eventos reforçam ainda mais o acerto diagnóstico da DC.
As características lesões morfológicas da mucosa do intestino delgado descritas na DC incluem um número aumentado de linfócitos intra-epiteliais (>30 linfócitos por 100 enterócitos), índice mitótico dos linfócitos intra-epiteliais superior a 0,2%, diminuição na altura das células epiteliais, com transformação cuboidal, hiperplasia das criptas, atrofia vilositária parcial ou total, com nítida diminuição da relação vilosidade:cripta (Figuras 1 & 2).

Figura 1- Aspecto histopatológico característico da Doença Celíaca. Atrofia vilositária total, transformação cuboidal do epitélio, com hiperplasia das criptas e infiltrado intra-epitelial de linfócitos.

Figura 2- Aspecto da histologia normal da mucosa do intestino delgado, apresentando vilosidades digitiformes, células epiteliais cilíndricas com núcleo em posição basal e glândulas crípticas preservando a relação vilosidade/cripta 4ou5:1.


Presentemente, os critérios diagnósticos de graduação das alterações morfológicas da mucosa intestinal aceitos internacionalmente para o diagnóstico da DC são os propostos por Marsh, em 1992 (Figuras 3 & 4) (Gastroenterology 102: 330-54).

Figura 3- Representação esquemática dos critérios de Marsh para o diagnóstico da Doença Celíaca.


Figura 4- Graduação histológica das lesões do intestino delgado na Doença Celíaca.
Marsh classificou as alterações histológicas para o diagnóstico da DC nos seguintes graus, a saber: Grau 0, estágio pré-infiltrativo (normal), Grau 1, lesão infiltrativa (aumento do número de linfócitos intra-epiteliais), Grau 2, lesão hiperplásica (Grau 1 + hiperplasia das criptas), Grau 3, lesão destrutiva (Grau 2 + atrofia vilositária parcial), Grau 4, lesão hipoplásica (atrofia vilositária total com hipoplasia críptica). A lesão Grau 3 foi modificada para ser subdividida em Grau 3a (atrofia vilositária parcial), Grau 3b (atrofia vilositária subtotal) e Grau 3c (atrofia vilositária total).
A existência de lesão Marsh Grau 3 com atrofia vilositária, ou mais intensa, é aceita como claro aspecto diagnóstico da DC. A ocorrência de lesão Marsh Grau 2 associada à positividade de marcadores sorológicos é altamente sugestiva da DC. A existência da lesão histológica Marsh Grau 1 é considerada inespecífica, porém, se essa lesão vier acompanhada de positividade dos marcadores sorológicos deve-se considerar fortemente o diagnóstico de DC. Nesta situação deve-se realizar a tipagem HLA e se necessário repetir a biópsia do intestino delgado, ou então, indicar o emprego da dieta isenta de glúten e após 6 meses repetir os testes sorológicos e a biópsia do intestino delgado.

Uma proposta de diagnóstico precoce da Doença Celíaca: uma nova revolução desvendando ainda mais a parte não visível desta enfermidade
É consenso internacional que o critério diagnóstico de certeza da DC é a demonstração de atrofia vilositária Marsh 3. Entretanto, há evidencias de que a lesão da mucosa do intestino delgado se instala de forma gradual, e, portanto, admite-se que enteropatias moderadas podem evoluir para atrofia vilositária total e hiperplasia das criptas, caso a ingestão de glúten se mantenha de forma continuada. Dados atuais sugerem que alguns pacientes que apresentam somente enteropatias moderadas podem apresentar sintomas ou mesmo complicações clínicas em decorrência da ingestão de glúten antes de desenvolverem atrofia vilositária total. Este fato desperta a inevitável questão se acaso os atuais critérios diagnósticos para caracterizar a DC ainda sejam válidos (Figura 5).

Figura 5- Aspectos progressivos da lesão do intestino delgado na Doença Celíaca.

Kalle Kurppa e colaboradores (Gastroenterology 2009; 136: 816-23), em Tampere, na Finlândia, levando em consideração a hipótese acima considerada realizaram uma investigação clínica controlada, de forma prospectiva e randomizada, para avaliar o efeito da intervenção do glúten em pacientes suspeitos de sofrerem de DC que apresentavam positividade ao autoanticorpo anti-Endomíseo (EMA) e que à biópsia do intestino delgado evidenciavam linfocitose, mas arquitetura vilositária normal. Foram realizadas biópsias de intestino delgado em 70 pacientes EMA positivos, e destes, 23 apresentavam apenas enteropatia moderada (Marsh 1-2), os quais foram aleatoriamente distribuídos para continuarem recebendo dieta contendo glúten ou dieta isenta de glúten. Após o período de 1 ano foram repetidas as avaliações clínicas, sorológicas e histológicas. Um grupo de 47 pacientes com lesões da mucosa do intestino delgado compatíveis com DC (Marsh 3) e submetidos a dieta isenta de glúten serviram como grupo controle enfermo.

No grupo que recebeu dieta contendo glúten (Marsh 1-2) a arquitetura da mucosa intestinal se agravou em todos os indivíduos, e os sintomas persistiram assim como a positividade do EMA. Em contraste, naquele grupo que recebeu dieta isenta de glúten os sintomas desapareceram, os títulos do EMA diminuíram, e a morfologia da mucosa intestinal se normalizou, da mesma forma que ocorreu no grupo controle enfermo. Quando o ensaio clínico terminou todos os indivíduos decidiram adotar uma dieta isenta de glúten.
Os autores concluiram que os indivíduos que apresentaram EMA positivo se beneficiaram com a adoção de uma dieta isenta de glúten, a despeito de não apresentarem atrofia vilositária total. Baseados nos resultados dessa pesquisa propõem que os critérios diagnósticos para DC necessitam ser revistos, valorizando os resultados positivos dos marcadores sorológicos EMA e TTG, até então considerados “falso positivos”. Enfatizam que a positividade dos marcadores sorológicos mesmo na ausência de atrofia vilositária é uma indicação para a adoção de uma dieta isenta de glúten.
Levando-se em consideração os resultados dessa importante pesquisa, e, nos colocando na expectativa de que essas observações sejam confirmadas em outros centros, passaremos a admitir que a parte não visível do “iceberg” é ainda maior do que aquela até o presente conhecida.
No nosso próximo encontro discutiremos o tratamento dessa enfermidade que se tornou em pouco tempo um problema de saúde pública universal.