segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Bactérias, Fezes e Síndrome do Intestino Irritável: demasiado é tão ruim quanto muito pouco

Introdução
Algumas novidades altamente promissoras estão surgindo na literatura médica para tentar elucidar os mecanismos desencadeadores da Síndrome do Intestino Irritável (SII), tanto em adultos como na população pediátrica. Atualmente está bem estabelecido que as manifestações clínicas da SII obedecem características  multifatoriais, o que, portanto, determina a necessidade de envidar esforços para o esclarecimento específico de cada um destes componentes, para que se possa ter uma definição global deste tema tão prevalente e, ao mesmo tempo, igualmente intrigante. Neste sentido o número de novembro do Gastroenterology, 2011;141:1555-59, traz um interessante Editorial (Bugs, Stool, and the Irritable Bowel Syndrome: Too Much Is as Bad as Too Little? Talley NJ & Fodor AA) que comenta 2 artigos publicados nesta revista, um deles realizado com uma população de adultos, em Houston, Texas, EUA, e o outro realizado com crianças, em Helsinki, Finlândia), que trazem resultados antagônicos. As diferenças observadas podem ser devidas aos diferentes grupos estudados (adultos x crianças) e/ou as diferentes regiões geográficas aos quais os pacientes pertenciam. De qualquer forma, porém, os resultados obtidos são novos e interessantes que poderão indicar rumos a serem perseguidos para o entendimento de como a microbiota intestinal poderia interferir diretamente na gênese da SII. Abaixo, transcrevo os principais tópicos do referido Editorial.
Editorial
A SII é um transtorno altamente prevalente, até o presente momento sem explicação conhecida, e que afeta mais de 10% dos americanos. A SII tem sido reconhecida em todo o globo terrestre e está presente nas populações de todas as nações investigadas. A SII prejudica de forma significante a qualidade de vida, cujo prejuízo se reflete em uma diminuição da produtividade, das funções físicas e mentais, dos relacionamentos pessoais e do sono. Não há até o presente momento qualquer medicação que cure a SII, e, no máximo, alguns medicamentos existentes no mercado, são capazes de trazer alívio temporário e sintomático.
O fenótipo da SII é tão característico que permite que o mesmo seja usualmente reconhecido na prática clínica, sem que haja a necessidade da realização de qualquer teste diagnóstico, e, o qual se apresenta com dor abdominal recorrente ou algum desconforto ligado a um distúrbio errático da evacuação, diarreia ou constipação, ou ambos, e frequentemente flatulência. A despeito dos enormes custos pessoais e econômicos associados a SII, os mecanismos estruturais causais ainda são desconhecidos. Entretanto, tem se tornado cada vez mais claro que em indivíduos geneticamente predispostos a SII provavelmente surge após um ou mais agravos ambientais (mais frequentemente, infecção intestinal aguda).
Tradicionalmente a SII tem sido conceituada como um transtorno do eixo cérebro-intestino, especialmente devido à ansiedade, depressão, e sintomas extras intestinais, tais como fadiga, as quais são condições comórbidas que estão fortemente associadas. Entretanto, a evidência emergente dá suporte à visão de que pelo menos em um subgrupo de pacientes que sofre de SII, o trato digestivo pode ser o deflagrador primário das manifestações clínicas. Há dados convincentes de que uma sutil inflamação da mucosa do intestino delgado e do colón, especialmente a infiltração de mastócitos e linfócitos T, ocorre em um subgrupo de pacientes com SII; a ligação com os mastócitos é particularmente saliente e esta pode representar um biomarcador da mucosa neste transtorno. Citocinas séricas estão aumentadas na SII; níveis basais elevados do fator alfa de necrose tumoral, interleucina 1β e  IL-6, por exemplo, tem sido observados. Tem sido especulado, que certos perfis de citocinas podem ser responsáveis pelo excesso de sintomas somáticos incluindo estresse psicológico na SII (porque correlações positivas têm sido identificadas), embora haja incertezas a respeito da exata fonte das elevações séricas das citocinas. Sabe-se que até 25% dos indivíduos desenvolve a SII depois de um episódio de gastroenterite infecciosa. Outras linhas de evidências sugerem que a permeabilidade intestinal está prejudicada naqueles indivíduos que sofrem de SII pós-infecciosa, o que levanta a hipótese de que antígenos presentes no lúmen intestinal (por exemplo, de bactérias) podem penetrar na mucosa e estimular respostas imunes anormais no hospedeiro com SII.
Qual o deflagrador da cascata inflamatória de citocinas na SII? Uma possibilidade é a composição da nossa própria flora intestinal que predispõe para a SII, e que depois de algum insulto inicia o transtorno (Figura 1).


Micro-organismos respondem pelo impressionante número de 90% das células existentes no corpo, sendo que somente 10% das nossas células é representada por células “humanas”. A extraordinária massa microbiana presente no intestino é estabelecida ao nascimento, cuja exata composição depende dos nossos genes e do meio ambiente local. Ela pode desempenhar um papel crítico em todas as enfermidades inflamatórias intestinais incluindo a SII. O desenvolvimento de uma interessante nova tecnologia tem permitido estabelecer a contagem detalhada do vastíssimo número de micro-organismos que constituem o microbioma intestinal humano. Descrições iniciais que tem explorado a microflora bacteriana por meio de métodos altamente sofisticados verificaram que diferentes pessoas tendem a ter microfloras muito diferentes no interior dos seus intestinos e que essas diferenças mantêm-se bastante estáveis ao longo do tempo. Assim sendo, torna-se tentador especular que algumas dessas diferenças entre os indivíduos no que diz respeito ao seu microbioma intestinal podem explicar as variações pelas quais algumas pessoas desenvolvem a SII e outras assim não o fazem. Por meio da utilização de técnicas de cultura livre tais como a eletroforese em gel de gradiente desnaturante e a reação quantitativa da polimerase em cadeia alvejando um microbiota específico, inúmeros estudos tem tentado encontrar bactérias que possam discriminar casos de SII em contraposição aos controles. Muitos desses estudos foram capazes de encontrar microbiota que parecem ser diferentes nos casos versus controles. Entretanto, a caracterização de microbiota específico que poderia estar consistentemente associado à SII, utilizando-se diferentes coortes e diferentes técnicas, ainda não foi possível determinar.
Rajilic-Stojanovic M e cols., (Gastroenterology 2001;141:1792-1801), utilizando técnicas sofisticadas de alta resolução, estudaram a microbiota de 62 pacientes com SII e 46 controles sadios; seus resultados confirmaram de forma robusta que existe uma nítida separação entre a microbiota dos casos em relação aos controles. Essas diferenças fornecem novas evidências à respeito da hipótese de que há uma variação da comunidade microbiana associada a SII.
Por outro lado, Saulnir D e cols., (Gastroenterology 2011;141:1782-1791), em um estudo pioneiro, utilizaram técnicas de sequenciamento de nova geração e plataformas de micro arranjos para descrever as diferenças dentro da comunidade microbiana entre crianças com SII e crianças sadias, e crianças com diferentes subtipos de SII.  Contraditoriamente, a carga microbiana total não se mostrou significantemente diferente entre as crianças sadias e aquelas com SII. Levando-se em consideração estes achados, será muito interessante analisar como estas observações impactariam na consideração de saber se o número total de bactérias presentes no intestino (a hipótese do “sobrecrescimento bacteriano”) tem importância mais significativa na SII do que os tipos de bactérias presentes, o que agora poderá ser mensurado com estas técnicas altamente sofisticadas disponíveis para as investigações clínicas.
Meus Comentários
Desde há muito tempo a SII é bem conhecida dos gastroenterologistas, tanto para os clínicos que atendem pacientes adultos quanto para os que assistem a população pediátrica, mas, no entanto, além da reconhecida influência bio-psico-social e da característica manifestação pós-infecciosa, seja ela intestinal ou extra-intestinal, inúmeras dúvidas ainda pairam para todos os interessados no estudo desta síndrome, a respeito dos mecanismos íntimos da sua fisiopatologia. Em minha opinião, dentro da multifatoriedade causal das manifestações clínicas da SII, alguns aspectos estão bem definidos, tais como os já supracitados, mas, ao que tudo indica, novos importantes fatores passam a surgir, inclusive a possibilidade da potencial existência de biomarcadores e de um melhor conhecimento do papel da microbiota intestinal, como mais um agente causal na deflagração dos sintomas. Tudo isto somado explica claramente o porquê da inexistência de um único medicamento capaz de controlar os sintomas da SII e, ao mesmo tempo, traz maiores dilemas para o clínico e seus pacientes de como abordar de forma global este tão intrigante e desafiador transtorno funcional. Será mesmo apenas um transtorno funcional? Parece-me que estamos no limiar de serem encontrados, se não todos, pelo menos alguns mecanismos fisiopatológicos palpáveis que poderão trazer possibilidades terapêuticas específicas para este grupo significativo de pacientes, e com estes avanços diminuir seus sofrimentos. É o desejo de todos que tenhamos respostas positivas e otimistas dentro do mais breve período de tempo possível.