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quinta-feira, 4 de maio de 2017

Intolerância à Lactose: História, Genética, Prática Clínica, Diagnóstico e Tratamento (Parte 2)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo
(I-Gastroped)

  • Prevalência da Persistência da atividade da Lactase na vida adulta

Por outro lado, contrariando as expectativas genéticas naturais de restrição da atividade da Lactase, inúmeras pesquisas têm demonstrado que existem 2 fenótipos geneticamente programados, a saber: “Lactase Restrição” (Hipolactasia) (LR) e “Lactase Persistência” (LP). Vale ressaltar que a LP não está necessariamente condicionada ao consumo diário de produtos lácteos após o desmame.

Figura 16- Representação esquemática da indução de um determinado gene, como por exemplo, no caso da persistência de produção da Lactase.

Em decorrência desta mutação genética há um número significativo de indivíduos adultos que conservam a capacidade de digerir a Lactose, o que representaria uma inovação evolutiva “anormal”.

 Figura 17– Modificação na estrutura cromossômica que possibilitou a persistência da atividade da Lactase na vida adulta em determinadas etnias.

A capacidade que alguns grupos étnicos adquiriram para a Persistência da Lactase após o período da amamentação e que se torna Permanente é explicada por uma mutação genética baseada na “Hipótese Histórico-Cultural”.

      Hipótese Histórico-Cultural

As populações coletoras-caçadoras anteriores ao Período Neolítico (Neolítico ou Período da Pedra Polida:  10.000 A.C. - sedentarização e surgimento da agricultura - 3.000 A.C. - Idade dos Metais) eram intolerantes à Lactose. Estudos genéticos sugerem que as mutações mais antigas associadas com a persistência da Lactase somente alcançaram níveis apreciáveis nos seres humanos nos últimos 6 mil anos.

A persistência da Lactase é um exemplo recente de duas evoluções: a) traço genético e b) traço cultural, domesticação e acasalamento dos animais.

A distribuição geográfica dos indivíduos Lactase Persistente (LP) correlaciona-se fortemente com a difusão da domesticação do gado. Aproximadamente entre 5 e 10 mil anos o haplotipo do gene da Lactase sofreu uma enorme pressão seletiva. Esse período coincide com a disseminação da atividade pecuária. Como a atividade pecuária originou-se na Europa, seus habitantes foram expostos a um aumento da oferta de produtos lácteos contendo Lactose, o que resultou em uma seleção natural positiva.  

A PL na vida adulta desenvolveu-se em 2 áreas geográficas de forma independente:

A.  No norte da Europa, nas regiões do Báltico e do Mar do Norte (Escandinávia, Alemanha e Grã-Bretanha).

Figura 18- Mapa dos diferentes locais aonde os Vikings invadiram ao longo dos tempos.

 Figura 19- Mapa dos territórios percorridos pelos Vikings.

      Razões que justificaram a utilização do leite na Escandinávia, na vida adulta:

1.  Clima extremamente inóspito (frio excessivo e baixa exposição à luz solar reduz a produção de vitamina D pelo corpo).

Figura 20- Glacial da Noruega, entre Oslo e Bergen, um exemplo típico de clima inóspito vivenciado por seus habitantes.

2.          Disponibilidade de Vitamina D e absorção de cálcio.

Figura 21- Vista panorâmica de Bergen, Noruega, no auge do verão nos poucos meses do ano em que as temperaturas são mais amenas.

3. Raquitismo e osteomalacia. Deformidades pélvicas causavam partos mais difíceis: extinção gradual da colônia Viking da Islândia.

4. A mutação LAC*P permitiu que os adultos usassem uma fonte excelente de cálcio, posto que a Lactose facilita sua absorção.

5. O fato do leite ser uma substância líquida, pela facilidade de transporte, proporcionou a possibilidade de que os adultos viessem a consumi-lo em grandes quantidades, o que resultou em uma forte vantagem seletiva. 

 Figura 22- Imagem de um típico guerreiro Viking tolerante à Lactose, cuja carga genética disseminou a PL em todas as terras conquistadas, em especial o norte da Europa.

B.  No norte da África na região do Saara

Em situação geográfica e climática totalmente opostas também surgiram etnias com carga genética PL, e isto ocorreu nas áridas terras da Arábia, Saara e Sudão. Nestas regiões a PL está caracterizada somente nas populações nômades altamente dependentes de camelos, tais como os Beduínos, os Tuareg do Saara, os Fulanis da África Oriental, os Bejas e Kabbabish do Sudão.

Figura 23- Beduínos na região do Saara, outro exemplo de etnia com carga genética PL.

Em contraste, as populações urbanas e agrícolas do entorno, quer sejam árabes, turcos, iranianos ou africanos, apresentam taxas muito baixas de PL.  

· O gene Lactase autossômico dominante e a tolerância à Lactose na vida adulta

Hirschhorn e cols., em 2004, descobriram que a PL se deve à presença de um haplotipo composto por mais de 1 milhão de pares de base de nucleotídeos, incluindo o gene Lactase. A presença deste gene é que determina a PL. Atualmente, este haplotipo pode ser encontrado em 80% dos europeus e dos americanos que possuem ancestrais europeus.

Figura 24- Representação esquemática do gene LAC*P.

A persistência da produção da Lactase é controlada por um gene autossômico dominante, de alta expressão do RNA-m, denominado LAC*P.

Indivíduos que herdam alelos LAC*P dos seus pais mantém a produção da Lactase na vida adulta, enquanto que aqueles que herdam os alelos LAC*R deixam de produzir Lactase na vida adulta. Heterozigotos recebem diferentes alelos LAC*P/LAC*R e mantém a capacidade de digerir a Lactose

Figura 25- Exemplos característicos de fenótipos tipicamente de carga genética LAC*P.


Figura 26- Jovens adultas da região do Tirol, Austria, etnia com elevado percentual de capacidade de tolerância à Lactose.

Figura 27- Crianças em idade escolar da região do Tirol, Austria, etnia com elevado percentual de capacidade de tolerância à Lactose. 

      Benefícios da Persistência da atividade da Lactase
Smith e cols., em 2009 na Inglaterra, investigaram os efeitos dos alelos codificados para LP sobre a saúde das mulheres. Selecionaram de forma randomizada mulheres que possuíam os alelos CC (não produtores de Lactase) e, mulheres que possuíam 1 ou 2 alelos T que indicam LP. Foram analisados inúmeros aspectos destas mulheres, a saber: metabólicos, nível socioeconômico, estilo de vida e taxas de fertilidade.


Figura 28- A Inglaterra também fez parte da invasão Viking.

Os resultados destes estudos mostraram que as mulheres homozigotas para o alelo C apresentaram indicadores de saúde mais desfavoráveis do que aquelas mulheres que apresentaram alelos TC e/ou TT. As mulheres que eram CC relataram taxas mais elevadas de fraturas do colo do fêmur e do punho, bem como de osteoporose e de catarata. Os autores concluíram que os melhores indicadores de saúde das mulheres com alelo T foi beneficiada pela presença da LP.

Figura 29- Jovem tolerante à Lactose.

Figura 30- Idosa tolerante à Lactose.

      Conclusões
Má absorção e/ou intolerância à Lactose deve ser considerada uma condição “normal” nos indivíduos adultos posto que este comportamento ocorre em cerca de 75% da população mundial. Isso se deve porque o gene LAC*R é autossômico recessivo e está programado para a deficiência de Lactase a partir do quinto ano de vida.

Figura 31- Vilarejo na China aonde o consumo de leite não faz parte dos hábitos alimentares dos adultos.

Por outro lado, uma mutação genética baseada na “Hipótese Histórico-Cultural” possibilitou o surgimento do gene LAC*P, autossômico dominante que condiciona a capacidade da persistência da produção da Lactase, ao longo de toda a vida dos indivíduos pertencentes a determinados grupos étnicos. 

Figura 32- Família do norte da Europa aonde o leite é parte integrante e importante alimento dos hábitos alimentares em todas as fases da vida.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Intolerância à Lactose: História, Genética, Ciência e Prática Clínica (7)

Manifestações Clínicas e Métodos Diagnósticos

      Os principais sintomas de intolerância à LACTOSE são distensão abdominal, flatulência, cólicas intestinais e diarreia, os quais são parcialmente dependentes da capacidade funcional da atividade da LACTASE, mas sim, e acima de tudo, estão diretamente relacionados com a quantidade da LACTOSE ingerida. Ou seja, como se trata de uma reação enzima-substrato, se houver excesso de substrato (LACTOSE) para ser digerido pela enzima (LACTASE) na unidade de tempo e na área de superfície de digestão da mucosa intestinal, os sintomas de intolerância à LACTOSE deverão surgir algumas horas após a ingestão do leite. Vale ressaltar que a intensidade dos sintomas irá depender estritamente de uma relação diretamente proporcional entre a concentração de LACTOSE no alimento/e a atividade da LACTASE na mucosa intestinal. Dentre todos os sintomas acima referidos, indiscutivelmente, a diarreia é o que apresenta maior risco para o paciente, em especial durante o período de lactente, posto que o leite representa praticamente a única ou pelo menos a maior fonte alimentar da dieta nesta fase da vida. Nestas circunstâncias, caso o diagnóstico não seja estabelecido prontamente, a diarreia pode se tornar crônica acarretando agravo nutricional que pode ser de grave intensidade até mesmo com instalação de acidose metabólica, que pode ser confundida com um processo infeccioso sistêmico. Quanto mais tenra for a idade do lactente maiores serão os riscos das complicações nutricionais mais graves (Figuras 1 & 2).

Figura 1- Paciente com diarreia persistente e desnutrição grave com intolerância à LACTOSE.

 
Figura 2- Paciente em recuperação clínica e nutricional, já tolerante à LACTOSE.

     É importante assinalar que como se trata de diarreia osmótica, esta obedece ao princípio da relação causa-efeito. A LACTOSE não digerida permanece presente na luz do intestino e aí provoca secreção de água e eletrólitos no sentido organismo-lúmen intestinal, cujo volume de fluido acumulado supera a capacidade de reabsorção de água pelo intestino grosso, sendo eliminado sob a forma de fezes líquidas; ao se suspender a LACTOSE da dieta a diarreia rapidamente cessará. Assim sendo, uma vez cessada a causa o efeito desaparecerá.

    Em pré-escolares e escolares, dor abdominal crônica costuma ser um sintoma predominante de intolerância à LACTOSE, e até mesmo pequena quantidade do carboidrato, tal como 12 gramas, a qual corresponde à concentração equivalente a um copo de leite (250 ml), pode ser a causa deflagradora do sintoma. Além disso, a LACTOSE não absorvida resulta em um importante substrato para a flora bacteriana do intestino grosso. As bactérias aí prevalentes metabolizam a LACTOSE produzindo ácidos graxos voláteis e gases (metano, dióxido de carbono e hidrogênio), os quais causam flatulência (Figura 3).

 
Figura 3- Produtos de metabolização da LACTOSE pela flora colônica.

    Os ácidos graxos provocam diminuição do pH fecal, tornando-o ácido (menor que 6,0), o que pode ser na prática utilizada como uma medida indireta da má absorção da LACTOSE.

Critérios diagnósticos para intolerância à Lactose

A obtenção de uma história clínica bastante detalhada, geralmente, permite levantar fortes suspeitas da existência de intolerância à LACTOSE, a qual pode ser confirmada, na maioria das vezes, com a eliminação de todas as fontes alimentares da dieta contendo o substrato. No entanto, quando se deseja obter uma confirmação diagnóstica mais acurada, de uma suposta intolerância à LACTOSE, é necessária a realização de uma investigação laboratorial adequada.

A hipolactasia pode ser diagnosticada por métodos diretos, como a dosagem da atividade da LACTASE em fragmento da mucosa jejunal obtido por biópsia, que consiste num diagnóstico definitivo, porém invasivo. Pode-se também caracterizar a hipolactasia por métodos indiretos, tais como a avaliação de sinais e sintomas clínicos após a ingestão de LACTOSE, testes de análises fecais (determinação do pH fecal e pesquisa de substâncias redutoras nas fezes) e teste de tolerância à LACTOSE, nos quais se destacam o teste sanguíneo e o teste do hidrogênio no ar expirado.

O teste do hidrogênio no ar expirado é uma técnica que vem sendo utilizada cada vez mais frequentemente na prática clínica e em pesquisas. Trata-se de um método laboratorial não invasivo confiável e preciso para a avaliação da absorção de carboidratos e caracterização de sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Para que se obtenha um resultado fidedigno é necessário que o paciente esteja em jejum por pelo menos seis horas e, extremamente importante, que o mesmo tenha feito adequada higiene bucal para não falsear o resultado.

O teste é realizado pela administração de uma quantidade normatizada de LACTOSE (2 gramas/ kg de peso, até no máximo 25 gramas, equivalente à quantidade de LACTOSE presente em 2 copos de leite) diluída em solução aquosa a 10%. As amostras de ar expirado devem ser coletadas em jejum, antes da ingestão da LACTOSE, e a cada 30 minutos durante um período de 3 horas após a ingestão da mesma. Uma elevação da concentração de hidrogênio no ar expirado acima de 20 partes por milhão (PPM) comparada ao valor de jejum, em qualquer tempo durante as coletas obtidas das amostras de ar, caracteriza má absorção à LACTOSE. Alguns fatores podem produzir resultados falso-negativos ou falso-positivos, e, dentre estes últimos se destacam a coexistência de sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado (neste caso, o pico de hidrogênio no ar expirado ocorre precocemente, dentro da primeira hora do teste) e as alterações da motilidade intestinal. Dentre os falso-negativos incluem-se o uso prévio de antibióticos (afeta a flora colônica) e a falta de produção de hidrogênio pela flora bacteriana, o que pode ocorrer em até 15% da população. Caso, concomitantemente à caracterização de má absorção de LACTOSE ou não, o paciente venha apresentar sintomas clínicos compatíveis com a intolerância à LACTOSE, este diagnóstico deve ser levado em consideração.

Tratamento da intolerância à LACTOSE

O tratamento da intolerância à LACTOSE baseia-se única e exclusivamente na eliminação da Lactose da dieta do paciente. No caso dos lactentes deve-se utilizar uma fórmula isenta de LACTOSE e naqueles indivíduos que fazem uso de dieta sólida eliminar da alimentação produtos lácteos, substituindo-os por outros produtos à base de leite, porém com baixíssimas concentrações de LACTOSE, tais como queijos e iogurtes, os quais são ricos em cálcio, apresentam a LACTOSE parcialmente hidrolisada e ainda podem conter Lactobacillus, que auxiliam na fermentação e metabolização da LACTOSE.

A indústria alimentícia colocou no mercado leites que apresentam LACTOSE hidrolisada em até 80%, sendo indicados para pacientes com intolerância ao substrato, pois torna a ingestão tolerável. A substituição do leite por produtos à base de soja também é de valia, podendo ser utilizados como fonte de carboidratos, desde que o paciente se adapte ao sabor. Nos pacientes hipolactásicos, a tolerância aos iogurtes deve-se a uma pequena atividade da galactosidase presente nos mesmos, que fragmenta, no duodeno, a LACTOSE contida no iogurte.

Nas dietoterapias para tais pacientes, têm-se como alternativas, além dos queijos maturados e/ou processados e iogurtes já citados, os pães e produtos fabricados com o soro do leite, os quais podem ser consumidos por pacientes com falta total da LACTASE.

A Academia Americana de Pediatria (AAP), considerando o alto valor nutricional do leite para crianças em crescimento, afirma que a maioria das crianças americanas menores de 10 anos, independentemente do histórico familiar, pode digerir quantidades razoáveis de leite, e, portanto, recomenda que cerca de 240 mL de leite devem ser oferecidos diariamente, posto que a intolerância a 240 mL de leite é rara, mesmo entre os adolescentes. 

Buarraj e cols., ressaltam que na terapia nutricional da intolerância à LACTOSE são recomendadas dietas hipogordurosas e pobres em resíduos devido a casos de esteatorréia, ressecção e obstruções intestinais. Por se tratar da maior fonte de cálcio é preocupante a retirada total do leite e derivados da dieta, pois as propriedades do cálcio estão presentes, principalmente, no crescimento e desenvolvimento na infância e adolescência e, por isso, em casos de consumos inferiores ao recomendado, faz-se necessária a suplementação medicamentosa. 

Considerações finais

O papel do leite na alimentação humana está bem estabelecido e tem impacto determinante na sobrevivência da espécie, particularmente durante o período de lactente. Contudo, a prevalência de má absorção e/ou intolerância à LACTOSE é bastante elevada e pode alcançar até 75% da população mundial. Indivíduos que apresentam a deficiência de LACTASE ontogeneticamente determinada, a qual costuma se instalar gradualmente ao longo da existência, a partir do 5º ano de vida, mesmo assim tem a possibilidade de ingerir certa quantidade de leite, o que irá depender da sua própria capacidade de tolerância.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Intolerância à Lactose: História, Genética, Ciência e Prática Clínica (6)

Deficiência congênita de Lactase: enfermidade extremamente rara, de origem autossômica recessiva, com incidência de 1:60.000 nascidos vivos, relatada em poucas crianças e potencialmente letal em épocas que não existiam substitutos para o leite.

Recém-nascidos afetados cursam com diarreia intratável logo que o leite humano ou fórmula láctea contendo Lactose é introduzido; no caso de o diagnóstico não ser suspeitado apresentam diarréia osmótica com perda de nutrientes que levam a desnutrição, desidratação e acidose metabólica. Substâncias redutoras nas fezes são facilmente detectadas e o pH fecal torna-se ácido. A resposta clínica ocorre poucas horas após a retirada da Lactose da dieta e o desenvolvimento da criança passa a ser normal. Vale enfatizar que esta deficiência enzimática é permanente, e que, portanto, a Lactose deve ser evitada durante toda a vida.

A literatura descreve dois tipos clínicos de deficiência congênita de Lactase:

Alactasia congênita: manifesta-se com o aparecimento de diarréia ácida, desidratação e acidose metabólica desde os primeiros dias de vida, logo após a introdução da alimentação com leite, seja ele materno ou não.

Intolerância congênita à Lactose: quadro clínico semelhante ao da alactasia congênita, acompanhado de lactosúria, aminoacidúria e acidose renal, com predomínio de vômitos. Neste segundo tipo, os sintomas desaparecem com a infusão da Lactose no duodeno, através do uso de sonda pós-pilórica, sugerindo alguma alteração na permeabilidade gástrica. Caso não seja rapidamente identificada e controlada com a utilização de fórmula láctea isenta de Lactose, pode levar à morte, devido à ocorrência de desidratação e distúrbios hidroeletrolíticos graves.

Deficiência de Lactase do desenvolvimento: é caracterizada como deficiência relativa de Lactase observada entre prematuros com menos de 34 semanas de gestação.

No trato gastrointestinal imaturo, a Lactase e outras dissacaridases são deficientes até pelo menos a 34º semana gestacional. Melvin e cols. investigando prematuros relataram o benefício da suplementação com Lactase e fórmulas com baixo teor de Lactose; porém, por outro lado, também demonstraram que o leite humano e fórmulas contendo Lactose não provocaram quaisquer efeitos deletérios a curto ou longo prazo em recém-nascidos prematuros. Até 20% da Lactose dietética pode atingir o cólon em recém-nascidos e crianças jovens. O metabolismo bacteriano da Lactose diminui o pH fecal (abaixo de 6) provocando um efeito benéfico, já que favorece a proliferação de microorganismos protetores do trato digestivo (eg, Bifidobactérias e espécies de Lactobacilos) ao invés de favorecer o surgimento de agentes potencialmente patogênicos (espécies de Proteus, Escherichia coli e Klebsiella) em lactentes jovens. Agentes antimicrobianos podem afetar negativamente esta colonização benéfica.

Manifestações clínicas da intolerância à Lactose

Nos indivíduos que apresentam deficiência de Lactase, além da baixa atividade enzimática no intestino delgado ocorrem também vários outros fatores envolvidos no desenvolvimento dos sintomas, incluindo a quantidade de Lactose ingerida, sexo, idade, gravidez, sensibilidade visceral e anormalidades motoras do intestino.

Os principais sintomas de intolerância à Lactose resultam da fermentação bacteriana no cólon e incluem dor e distensão abdominal, flatulência, cólicas intestinais, diarréia e em algumas ocasiões náuseas e vômitos; podem, também, diminuir a motilidade gastrointestinal e, consequentemente, os indivíduos apresentarem constipação, possivelmente como consequência da produção de metano.

Todos os sintomas citados são parcialmente dependentes da capacidade funcional da atividade da Lactase e, acima de tudo, estão diretamente relacionados com a quantidade de Lactose ingerida, ou seja, como se trata de uma reação enzima-substrato, se houver excesso de substrato (Lactose) para ser digerido pela enzima (Lactase), tais sintomas poderão surgir algumas horas após a ingestão do leite. Portanto, é importante destacar que a intensidade dos sintomas dependerá, estritamente, de uma relação diretamente proporcional entre concentração de Lactose no alimento para a atividade da Lactase na mucosa intestinal.

Dentre todos os sintomas acima referidos, indiscutivelmente, a diarréia é o que apresenta maior risco para o paciente, em especial durante o período de lactente, posto que o leite representa, parcialmente, a única ou pelo menos a maior fonte alimentar da dieta nesta fase da vida. Nestas circunstâncias, caso o diagnóstico não seja estabelecido rapidamente, a diarréia pode se tornar crônica acarretando agravo nutricional que pode ser confundida com processo infeccioso sistêmico. A Lactose não digerida permanece presente na luz do intestino provocando fluxo de água e eletrólitos do organismo para o lúmen intestinal, cujo volume de fluído acumulado supera a capacidade de reabsorção de água pelo intestino grosso, sendo eliminado sob a forma de fezes líquidas. A Lactose não digerida aumenta a pressão osmótica e promove afluxo de água e eletrólitos para seu interior (aproximadamente, 5 gramas de monossacarídeos ou 10 gramas de dissacarídeos retêm, osmoticamente, 100 mL de água), e alcança o colon. Ao se suspender a Lactose da dieta, o quadro diarréico cessará, portanto, interrompida a causa, o efeito desaparecerá.

Dor abdominal crônica costuma ser um dos sintomas predominantes de intolerância à Lactose. Mesmo o consumo de pequena quantidade do carboidrato - 12 gramas correspondem a um copo de leite de 250 mL - pode ser a causa deflagradora do sintoma. Além disso, a Lactose não absorvida resulta em um importante substrato para a flora bacteriana do intestino grosso. As bactérias aí prevalentes metabolizam a Lactose produzindo ácidos graxos voláteis, os quais provocam uma diminuição do pH fecal, tornando-o ácido (menor que 6), e gases (metano, dióxido de carbono e hidrogênio), os quais causam flatulência.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Intolerância à Lactose: História, Genética, Ciência e Prática Clínica (5)

Deficiência secundária de Lactase: é a deficiência de Lactase que resulta de uma lesão da mucosa do intestino delgado, tal como na diarreia aguda, diarreia persistente, sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado ou outras causas de agressões à mucosa do intestino delgado. Pode estar presente em qualquer idade, porém, é mais comumente observada nos lactentes e pré-escolares.

Esta deficiência implica em uma subjacente condição fisiopatológica responsável pela subsequente deficiência de Lactase e que pode até mesmo acarretar má absorção e/ou intolerância à Lactose. Dentre as possíveis etiologias inclui-se com maior frequência a diarreia aguda, bacteriana ou viral, quando o agente enteropatogênico é capaz de provocar lesão sobre a mucosa do intestino delgado, levando à perda da atividade da Lactase normalmente existente nas microvilosidades dos enterócitos. Células epiteliais imaturas que substituem os enterócitos lesionados são, muitas vezes, ainda deficientes de Lactase, o que pode, desta forma, induzir à má absorção de Lactose. Giardíase, criptosporidíase, e outros parasitas que infectam o intestino delgado proximal freqüentemente levam à má absorção de Lactose devido uma lesão direta ao enterócito provocada pelo parasita.

Rotavirus é o principal agente viral causador de diarreia aguda na infância e é conhecida sua capacidade de provocar lesões de variadas intensidades sobre a mucosa do intestino delgado. Inúmeros estudos recentes de meta-análise têm demonstrado que crianças que sofrem de diarreia aguda por rotavirus e que não apresentam grau importante de desidratação podem continuar a receber fórmulas lácteas contendo concentrações habituais de Lactose, sem que ocorram manifestações de intolerância alimentar. Nestes casos a utilização de fórmula contendo Lactose não irá interferir de forma negativa sobre o estado de hidratação, o estado nutricional, a duração da doença ou o sucesso terapêutico. Entretanto, nos lactentes de maior risco, ou seja, aqueles menores de 3 meses ou com algum grau de agravo nutricional, a intolerância à Lactose poderá estar presente e ser um fator importante na perpetuação da diarreia (Figura 1).



Figura 1- Ultramicrofotografia do Rotavirus. Sua designação se deve ao seu aspecto similar à uma roda denteada.


Nas comunidades desprovidas dos benefícios do saneamento básico e naquelas populações que vivem em condições de promiscuidade tornam-se especialmente prevalentes as infecções intestinais pelas cepas enteropatogênicas de Escherichia coli. Em particular, as cepas que possuem a capacidade de provocar adesão localizada ou enteroagregativa em cultura de células HeLa são altamente agressivas sobre a mucosa do intestino delgado (Figura 2).

 

Figura 2- Incubação de Escherichia coli O111 em cultura de células HeLa evidenciando nichos da bactéria com aspecto característico de adesão localizada.


Estes agentes afetam principalmente lactentes durante os primeiros anos de vida e devido a sua ação fisiopatológica provocam graves lesões na mucosa do intestino delgado e estão freqüentemente associadas a intolerâncias alimentares. As cepas de Escherichia coli enteropatogênicas clássicas, em especial as O111 e O119, possuem a propriedade de produzir as típicas lesões em pedestal, causando total destruição na região das microvilosidades dos enterócitos (Figuras 3-4-5&6).
 

Figura 3- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum (grande aumento) de um paciente portador de diarreia persistente por infecção com Escherichia coli O111 demonstrando a presença de nichos de bactérias na superfície epitelial com intensa destruição dos enterócitos.

 

 Figura 4- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum, corte semi-fino, de um paciente portador de diarreia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 evidenciando a presença de nichos de bactérias recobrindo a superfície epitelial do intestino delgado causando destruição das microvilosidades.

 
  
Figura 5- Ultramicrofotografia do enterócito em fase inicial de infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a destruição das microvilosidades e a presença de algumas bactérias no interior do enterócito.
  
 

 Figura 6- Ultramicrofotografia do enterócito com a clássica formação em pedestal devido a infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a bactéria firmemente aderida à superfície do enterócito e a completa destruição das microvilosidades.


Intolerância à Lactose e mesmo aos monossacarídeos da dieta podem estar associadas em altas porcentagens dos casos (em nossa experiência em até 40% dos casos), levando à perpetuação da diarreia com intenso agravo nutricional e elevado risco de morte (Figuras 7 & 8).
  
 

Figura 7- Paciente portador de diarreia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 acarretando intensas perdas hidro-eletrolíticas e intolerância alimentar múltipla, tendo necessidade de receber nutrição parenteral total.


 

 Figura 8- O mesmo paciente da figura 8 já em recuperação clínica com capacidade de tolerar fórmula isenta de Lactose, posto que ainda se encontrava intolerante à Lactose.


Crianças portadoras de Enteropatia Ambiental sofrem também risco potencial de apresentarem intolerância à Lactose. Estas crianças muito comumente sofrem algum grau de agravo nutricional em virtude do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Bactérias da flora colônica, em especial as anaeróbias como os Bacteroides e Veilonella, quando presentes no lúmen do intestino são capazes de provocar inúmeros eventos fisiopatológicos causando graves lesões à mucosa jejunal. Em virtude do sobrecrescimento bacteriano vai ocorrer desconjugação e 7α desidroxilação dos sais biliares primários (ácido cólico e quenodeoxicólico) transformando-os em sais biliares secundários (ácido deoxicólico e ácido litocólico), os quais são altamente lesivos à mucosa jejunal (Figuras 9-10-11-12-13&14).

 
  
Figura 9- Visão parcial da favela cidade Leonor, exemplo marcante da ausência de saneamento básico e, portanto, fator fundamental para o surgimento da Enteropatia Ambiental com sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Observar as crianças brincando às margens do córrego, verdadeira cloaca a céu aberto.

 
 Figura 10- Morfologia do intestino delgado em diferentes situações de contaminação ambiental.





Figura 11- Representação esquemática da desconjugação e 7 alfa desidroxilação dos sais biliares primários.

 
   
Figura 12- Representação esquemática da lesão do intestino delgado e deficiência de Lactase devido ao sobrecrescimento bacteriano.


 

Figura 13- Material de biópsia de jejuno de um paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando intensa atrofia vilositária e aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.
  

 
  
Figura 14- Ultramicrofotografia do intestino delgado de paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando importante lesão das microvilosidades, as quais se encontram diminuídas em número e altura.


Lactentes jovens com desnutrição grave desenvolvem atrofia das vilosidades da mucosa intestinal o que também implica em deficiência secundária da Lactase. Por esta razão, a Organização Mundial de Saúde recomenda evitar leite contendo Lactose em crianças com diarreia persistente (duração superior a 14 dias).