quarta-feira, 22 de março de 2023

Neste novo recomeço profissional decidi revisitar o início da minha carreira, e, para tal, nada mais significativo do que reverenciar a memória do meu saudoso e inesquecível tutor: Horácio Nestor Toccalino


E os tempos se passaram...

Devido à necessidade familiar de nós, herdeiros de nossos avós paternos, Juventina e Ulysses Fagundes, vendermos as casas, as quais nos períodos de 1974-80 e 1993-2022 foram meu consultório médico, após 35 anos atendendo meus pacientes, nas casas onde nasci, cresci  e vivi até os primeiros anos da adolescência e mesmo na vida adulta, tive mais uma vez que recomeçar, em novo endereço, minhas atividades profissionais.


Figuras 1 e 2 – Meus avós Juventina e Ulysses em diferentes momentos das suas vidas.


Figura 3- Meu avô Ulysses e eu ainda nenê no jardim fronteiriço da casa grande, onde eu tive a ventura de lá viver durante 5 diferentes momentos da minha vida.


Figura 4- Minha irmã Tânia (em pé), uma amiga e eu no portal de entrada da casa da 1229, em nossa adolescência.

Figura 5- Eu e meu cachorro Totó no terraço da 1229. Nota-se na parede atrás uma mancha vertical, onde havia um muro que separava as casas 29 e 39, e que deixou de existir quando meus avós foram para lá morar.

Confesso que foi uma enorme carga emocional desfazer-me de toda uma história de vida intensamente vivida naquelas casas geminadas e na chamada casa grande da Av. Cons. Rodrigues Alves, bem em frente ao Instituto Biológico, na Vila Mariana, onde estão fixadas minhas raízes mais profundas.

Figura 6- As casas 1229-39, unificadas e à direita a casa grande na década de 1990, quando eu lá morava, e que ali permaneci durante 15 anos até setembro de 2008.

Na minha infância era vizinho de porta dos meus avós paternos, não havia muros para separar os terrenos. Eu me sentia em casa tanto lá como cá, e era no quintal fronteiriço da casa, onde havia um banco de madeira, que meu avô Ulysses e eu costumávamos nos sentar para termos longas conversas sobre as mais variadas coisas da vida. Foi neste banco que um dia ele solenemente me fez o seguinte pedido: “Meu neto quando você tiver um filho eu gostaria que você desse a ele o meu nome”. Eu, na minha inocência da infância lhe respondi simploriamente:” Vô vai ser uma confusão danada porque tudo mundo vai confundir as pessoas”. Ele então, muito calmamente me tranquilizou: “Filho pode ficar sossegado porque, quando ele nascer, com certeza eu já não estarei mais neste mundo”. De fato, ele faleceu em 1964, aos 77 anos, e, por incrível ironia do destino foi no dia 16 de setembro, dia do meu aniversário de 20 anos, e eu havia sido a última pessoa a estar com ele antes do seu falecimento, porque o levei para cama naquela noite do dia 15 de setembro, e, na manhã seguinte, ele foi encontrado sem vida em sua cama. O tempo passou e em 1972 nasceu um novo Ulysses Fagundes, hoje médico de sucesso como havia sido seu bisavô, assim eu pude cumprir a promessa feita, com a anuência da minha mulher à época. Quando eu tinha aproximadamente 12 anos de idade meu avô me convidou para plantarmos uma jabuticabeira neste jardim fronteiriço da casa. Isto foi feito, e, assim que terminamos de plantar a muda, ele me disse com ares de profeta: “Quem planta jabuticabeira não colhe os frutos, porque ela leva muitos anos para começar a produzir”. De fato, ele não os colheu, mas eu sim passei a colher as jabuticabas produzidas por ela durante muitos anos seguidos, até meados do ano passado, pois esta árvore é uma grande produtora.

  




Figuras 7-8-9- A jabuticabeira que plantei na minha infância com meu avô em plena produção de frutos. Nota-se minha secretária sra. Tatianne colhendo os frutos da florada que pontualmente ocorre em agosto.

Foi olhando, com muita emoção, para aquela jabuticabeira que eu tive minhas últimas conversas com meu avô, na tarde do dia 6 de janeiro de 2023, ao me despedir para sempre destas casas, que tantas e maravilhosas lembranças me permitiram vivenciar, durante os muitos anos, desde a mais tenra idade até a vida adulta, agora já adentrada nos anos, que por ali estive.   

Tudo na vida tem diversas facetas para que nós possamos desfrutar os outros lados da nossa existência, e, foi isso que eu decidi aproveitar, o outro lado da minha existência neste novo momento da vida. Explico, em virtude da mudança de imóvel, por necessidade trouxe comigo todo um contingente enorme de informações que foram se acumulando nos meus arquivos que lá repousavam anestesiadas ao longo dos tempos. Quando recém me instalei neste novo consultório, que por incrível que pareça, é uma casa situada na rua do apartamento onde moro, Morgado de Mateus 630, exatamente a 66 metros de distância e a 50 metros do antigo consultório, que o destino me ofereceu, comecei a rever alguns documentos do passado, e, dentre eles encontrei um vasto material de correspondências entre Horácio Toccalino e eu, objetos primordiais deste relato.

Horácio Nestor Toccalino, o obstinado visionário pelo sucesso da Sociedade Latino-Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição (SLAIPN) e sua inserção internacional com as congêneres europeia, norte-americana e asiática.

Em respeito à sua memória, assim escreveu o professor José Vicente Martins Campos: “Os traços marcantes de sua personalidade, vitalidade, irradiante jovialidade e viva inteligência revelavam-se com veemência na impetuosa vontade de levar adiante ideias e planos de estudo. No estímulo constante aos seus discípulos, na sua dinâmica atividade de trabalhos e nos acalorados debates, que insistentemente incentivava nas reuniões cientificas, procurava pôr em foco a necessidade do pediatra de analisar objetivamente os fatos atendendo tanto suas bases científicas quanto a realidade clínica.

No início dos anos sessenta, como excelente Pediatra Geral, parte Toccalino entusiasmado para a Gastroenterologia, procurando estruturá-la dentro de padrões atualizados. Nesta linha surgem seus primeiros trabalhos no Hospital de Niños de Buenos Aires, onde, com dificuldades, conseguiu implantar o primeiro núcleo latino-americano da especialidade; segue-se a formação mais estruturada da especialidade no Serviço de Gastroenterologia Pediátrica do Policlínico Alejandro Posadas.

Toccalino visando estruturar a especialidade dentro de bases cientificas, dedicou-se inicialmente a aprofundar os conhecimentos sobre a metodologia diagnóstica da Síndrome de Má Absorção. Imediatamente incorporou a técnica da biópsia de intestino delgado, implantou os testes funcionais digestivo-absortivos e a metodologia da determinação da dissacaridases. Logo a seguir, sua linha de pesquisa englobou o vasto capítulo das intolerâncias alimentares, particularmente a má absorção dos carboidratos, tanto da diarreia aguda como nas inúmeras causas de diarreia crônica. Aqui, ênfase especial deve ser dada às deficiências secundárias das dissacaridases, em consequência do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado nas crianças com desnutrição e diarreia. Ultimamente dedicava-se à investigação da penetração de macromoléculas no intestino delgado e sua associação com alergia alimentar.    

Ao sentir, através de sua própria experiência, que os problemas pediátricos da área geográfica latino-americana apresentavam características próprias  e que o campo gastroenterológico em particular era pleno de problemas e indagações, partiu para a ideia de intercambio com diversos países, com vistas à criação de uma Sociedade Latino-Americana de Gastroenterologia Pediátrica (SLAGPN).

Esta foi uma de suas grandes realizações. Através de intenso trabalho de aproximação conseguiu atingir seus fins, concretizados na Fundação SLAGPN, em 1975. Ao lado disto, recebeu em seu serviço pediatras de toda América Latina, executando um excelente trabalho de formação de Gastroenterólogos Pediátricos, que hoje atuam em seus próprios países. 

Ao apresentarem com a maior emoção essa homenagem ao pioneiro da Gastroenterologista Pediátrico na América Latina, seus amigos assumem o compromisso de manter o congraçamento pela SLAGPN e de fazer frutificar os ensinamentos valiosos que dele receberam como MESTRE e AMIGO.  

Pelos MEMBROS e pela DIRETORIA da LAGPN.

J.V. MARTINS CAMPOS”


(Arq. Gastroent – São Paulo- 15 (2):89-90,1978).

Infelizmente Toccalino faleceu muito jovem, aos 45 anos, com muitos projetos pessoais e profissionais para serem desenvolvidos.  Sem dúvida alguma, o mais caro deles, no entanto, era a fundação da SLAGPN, a qual se logrou concretizar em outubro de 1975, em São Paulo, durante o transcurso do Congresso Pan-Americano de Pediatria. Anteriormente, porém, em 1974, em plena realização do Congresso Mundial de Pediatria, em Buenos Aires, em um determinado dia, nos reunimos para almoçar em uma churrascaria denominada El Gaucho Imortal, Toccalino, Licastro, Martins Campos (José Vicente Martins Campos, gastroenterologista brasileiro, embora sendo especialista de adultos, tinha grandes interesses em investigação na área da gastroenterologia pediátrica, de quem me tornei amigo e admirador, participava ativamente dos eventos pediátricos e era um grande amigo de Toccalino desde longa data). Vínhamos de um encontro da Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em Escobar, cidade localizada nas vizinhanças de Buenos Aires.

Figura 10

Durante o almoço Toccalino manifestou seu descontentamento com os rumos daquela Sociedade, porque entendia que a gastroenterologia estava sendo cada vez mais marginalizada em detrimento de outras especialidades pediátricas, em especial a endocrinologia e a nefrologia. Toccalino sentia que havia chegado o momento de se fundar uma Sociedade especificamente voltada à gastroenterologia, já haveria uma massa crítica suficiente para tal empreendimento. Ele conhecia alguns colegas no Uruguai que certamente também adeririam à ideia, mesmo no Brasil já havia alguns embriões da especialidade sendo gestados.

Criaríamos uma Sociedade que tendo como pilares de sustentação o eixo Argentina, Uruguai e Brasil, pouco a pouco colegas de outros países seguramente viriam também a se incorporar nessa nova proposta. Martins Campos prontamente concordou com a ideia, o mesmo ocorrendo com Licastro. Eu também concordei de imediato, mesmo porque afinal das contas quem era eu para emitir qualquer opinião a respeito de um assunto sobre o qual não tinha a menor experiência, fiz o que meu mestre mandou. Ato seguinte, Martins Campos lançou mão de um guardanapo de papel do próprio restaurante, e elaborou a primeira ata de fundação desta nova Sociedade com a subscrição dos quatro presentes. Ficou então combinado que no ano seguinte durante o transcorrer do Congresso Pan-Americano, em São Paulo, nós criaríamos oficialmente a SLAGPN.

Figura 11

Toccalino e Martins Campos se ocuparam de contatar os potenciais membros da futura Sociedade, convidando-os para a reunião oficial da sua fundação. Tínhamos praticamente um ano inteiro para desenvolver essa empreitada com êxito, era tempo suficiente. Eu fiquei encarregado de organizar a reunião, a qual se realizou na Escola Paulista de Medicina, no anfiteatro de Pediatria do Hospital São Paulo, em outubro de 1975.

Vinte e cinco colegas latino-americanos firmaram a constituição desta nova Sociedade; estava enfim, naquele dia, tornando-se realidade o tão almejado primeiro sonho de Toccalino.




Figuras 12-13 -14

Infelizmente, porém, naquela mesma ocasião Toccalino tinha acabado de receber a notícia de que estava enfermo e o diagnóstico era de uma doença extremamente grave, ele sofria de um tipo muito raro de câncer, extremamente agressivo, incurável para os conhecimentos científicos daquela época, e que teria uma evolução bastante rápida.

Entretanto, em um ato de enorme bravura e autocontrole, para não prejudicar os andamentos da fundação da Sociedade, o que era para ele uma questão primordial, decidiu não contar a ninguém o seu padecimento. Assim que terminou o Congresso, de São Paulo mesmo viajou diretamente para Nova Iorque, na tentativa desesperadora de encontrar alguma solução, ainda que paliativa fosse, para sua doença.

Desafortunadamente, porém, apesar do tratamento quimioterápico proposto e realizado, a cura não era viável, o prognóstico emitido foi que inexoravelmente o câncer progrediria, ele não teria muito mais tempo de vida, provavelmente não mais que seis meses (na realidade ainda viveu três anos mais após o diagnóstico). Entretanto, apesar de todo este sofrimento e frustração quanto ao futuro próximo, ele não deixou se abater animicamente, ao contrário, o florescimento da nova Sociedade passou a ser o grande estímulo da sua existência daí em diante. Durante sua estada em Nova Iorque me escrevia cartas, nas quais vislumbrava o sucesso futuro da nossa Sociedade, mas para que tal êxito fosse alcançado deveríamos seguir rigorosamente determinados postulados, e, a mim, ele atribuía a responsabilidade de fazê-los cumprir. Abaixo segue a tradução literal dos postulados enunciados por Toccalino, a mim dirigidos:

Tradução dos postulados: “1- seguir o modelo argentino da especialidade; 2- Martins Campos divulgando nossa Sociedade na Europa; 3- os argentinos e você (eu) fazendo o mesmo nos EUA, especialmente com os amigos Nichols e Torres-Pinedo; 4- realizar os encontros da Sociedade periodicamente quando deva corresponder à data proposta; 5- publicar regularmente e de boa qualidade nos Arquivos de Gastroenterologia. Caso cumpramos estes postulados ninguém será capaz de frear os Latino-americanos. Querido Ulysses,  novamente obrigado pela sua carta, mas necessito muitas outras cartas falando a respeito dos 5 postulados. Eu as espero!!!”

Toccalino retornou dos Estados Unidos, recobrou suas forças, continuou sua missão de fortalecer nossa Sociedade de forma obstinada, viajando frequentemente enquanto sua saúde assim o permitiu, para consolidar a recém-nascida SLAGPN. Eu assumi com ele um compromisso irrestrito, de continuar a luta para manter viva a chama que com tanto sacrifício foi por ele acesa, e mais ainda, fazer florescer nossa Sociedade, tornando-a reconhecida mundialmente. Não imaginava, porém, naqueles distantes dias de 1975 que em algum momento futuro eu teria as forças suficientes para avançar além dos postulados propostos, ter a ventura de organizar um Congresso Mundial. A partir deste momento, seguimos nossa firme trajetória para alcançar o tão sonhado objetivo final, a criação do evento Congresso Mundial. Conforme Toccalino havia proposto mantivemos com regularidade as realizações dos nossos Congressos, apesar das inúmeras dificuldades financeiras que se antepunham aos organizadores, porém, a chama que Toccalino havia acendido foi mais forte que aas tempestades que se apresentavam. Abaixo segue um pequeno exemplo da evolução dos nossos Congressos.



Figuras 15-16-17

 

Todo o esforço empreendido por um grande grupo de colegas ao longo dos anos foi finalmente recompensado em 1997 com a oficialização da instituição do tão sonhado Congresso Mundial. O primeiro deles foi em Boston, 2000, o segundo em Paris, 2004, e a seguir seria nossa vez de organizá-lo.


Figura 18- Representantes das diferentes Sociedades internacionais exibindo o poster da oficialização da realização do primeiro Congresso Mundial. Da esquerda para a direita Ron Sokol, Samy Cadranel, Ulysses, Iuchiro Iamachiro e Harland Winter.

Realmente, em 2008, o grande sonho de Toccalino tornou-se realidade com a realização do III World Congress of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition, em Foz do Iguaçu, que eu tive a enorme honra de ser o Presidente, organizado pela nossa Sociedade, agora já com o título em inglês, Latin American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (LASPGHAN), devidamente incorporada às suas congêneres internacionais.





Figuras 19-20-21- Sessão de abertura do Congresso Mundial 2008.

Figura 22- Membros dos diferentes países da América Latina componentes do Comitê Organizador do Congresso Mundial 2008.

Meu relacionamento com Horácio Toccalino

Meu relacionamento com Toccalino foi efêmero, durou de 1973, ano em que eu fiz meu treinamento em Gastroenterologia Pediátrica no seu Serviço no Policlínico Alejandro Posadas, em Buenos Aires, durante meu terceiro ano de Residência Médica, até 1977, ano do seu falecimento, aos 45 anos de idade, devido a um câncer na vesícula seminal. Durou pouco tempo, é verdade, porém nosso relacionamento foi de uma intensidade incomensurável, tanto do ponto de vista professional quanto afetivo.

No dia 23/3/1973 quando já havia 2 meses trabalhando no Policlínico Alejandro Posadas escrevi em meu diário: “A Pediatria é chefiada por Dr. Toccalino, sendo constituída de subespecialidades, cujos profissionais em sua maioria são originários do Hospital de Niños de Buenos Aires. Toccalino é muito considerado e respeitadíssimo, pois tem méritos excepcionais, conhece profundamente a Gastroenterologia, é estudioso e de uma capacidade de trabalho realmente impressionante.”

Meu relacionamento com Toccalino desde o início das minhas atividades se caracterizou por uma grande empatia recíproca, que cada dia mais se acentuava porque, além das tradicionais visitas bissemanais aos leitos dos meus pacientes e dos ateneus bibliográficos, uma vez por semana eu fazia o atendimento do Ambulatório de Gastro com ele. Ao longo de todo o ano, tanto no campo profissional como no pessoal, sempre mantivemos um relacionamento extremamente amistoso, dava até a percepção de que já nos conhecíamos de longa data, eu me sentia muito à vontade em sua companhia, principalmente quando juntos atendíamos os pacientes no ambulatório de Gastroenterologia. Vale ressaltar que também atendíamos os pacientes que haviam sido internados na enfermaria, o que se mostrava de grande utilidade prática porque podíamos acompanhar a evolução clínica dos pacientes ex-internados. Esta atividade durava toda a tarde, eu atendia os pacientes e em seguida discutíamos os casos entre nós dois, para depois conversarmos com as famílias para recomendar qual a conduta a ser proposta. No final do dia sempre havia um tempo para travarmos uma conversa coloquial a respeito dos mais variados assuntos, o que naturalmente ia nos tornando mais íntimos. Enfim, sentia que ele havia me adotado e que eu havia me apropriado daquela adoção com muita satisfação, mesmo porque este relacionamento tão afetivo perdurou durante os anos que se seguiram até sua morte prematura, em dezembro de 1977.

Figura 23- As tradicionais visitas semanais aos pacientes internados eram momentos de grandes discussões clínicas que traziam em seu bojo ensinamentos de grande valia.

 


 Figura 24– As reuniões semanais de atualização bibliográfica denominadas de Ateneus Bibliográficas nos mostravam a importância de que deveríamos estar em constante busca pelos novos conhecimentos.

Durante meu treinamento, uma parte do tempo foi dedicada à investigação clínica, pois Toccalino sempre esteve atualizado com os avanços da Medicina, ele se baseava muito na Gastroenterologia de Adultos, porque estava convencido de que os avanços técnicos e metodológicos ocorriam primeiramente com pacientes adultos, somente após algum tempo eram incorporados na Pediatria. Naquela época uma grande ênfase estava sendo dada à Bacteriologia Intestinal em adultos, e Toccalino desejava aplicar esta metodologia, investigando crianças com diarreia crônica. Ele me escolheu para fazer este trabalho, o qual, resumidamente, se baseava na obtenção de secreção do intestino delgado, por meio de uma sonda, para ser submetida à cultura. A cultura era realizada no Instituto de Microbiologia Malbran localizado a cerca de 15 quilômetros do Posadas, no Parque Patrícios. Eu levava a criança em meu carro, com a sonda posicionada no intestino delgado, juntamente com um dos seus familiares até o Malbran. para obter a amostra da secreção intestinal para ser submetida à cultura. Este foi meu batismo de fogo, a primeira incursão no mundo da investigação científica, que resultou em uma publicação em revista indexada, e, posteriormente, no convite para ir fazer meu Pós-Doc nos Estados Unidos, no North Shore University Hospital, afiliado da Cornell University, sob a coordenação de Fima Lifshitz, isto após eu ter  apresentado o referido trabalho no Congresso Mundial de Pediatria, em Buenos Aires, em 1974.   

Figura 25- Coleta se secreção jejunal de paciente para estudo bacteriológico no Instituto Malbran.

Figura 26- Bacteriologistas do Instituto Malbran semeando a amostra da secreção jejunal em meio de cultura.

 O ano de 1973 passou muito rápido, muitos fatos políticos tornaram-se marcantes em minha vida, como por exemplo ter tido a dura consciência dos dramas pessoais causados pelas torturas no Brasil, o retorno à democracia na Argentina, com muitas festas, após a renúncia do general Alejandro Lanusse, a eleição do peronista Hector Campora, o retorno de Juan Domingo Peron à Argentina em setembro, após 17 anos de exílio na Espanha, seguido de  sua eleição para Presidente da República. Além disso, outro fato político marcante foi o golpe de Estado ocorrido no Chile, com a deposição e assassinato do Presidente Salvador Allende, em 11 de setembro, o que causou uma grande comoção popular em Buenos Aires. Tudo isso foi intensamente vivido por mim, posto que representava uma novidade extraordinária, considerando que no Brasil vigia uma situação de medo generalizado de qualquer manifestação popular de protesto contra o governo de turno, imposta pela ferrenha ditadura do general Medici.

O ano vinha terminando, e, como tal era hora de rumar de volta aos meus pagos. Assim escrevi em meu diário: “Já faz 11 meses que estou aqui e logo mais estarei de volta. O interessante e ao mesmo tempo pode parecer uma incoerência é que tudo se passou tão rápido que nem deu tempo para sentir bem, mas, por outro lado, parece que estou aqui já faz muito tempo, quem sabe muitos anos, ou melhor ainda, que aqui sempre foi meu lugar de trabalho, pois adaptei-me tão bem e sou tão bem tratado e respeitado, que talvez seja essa a razão de todo este meu sentimento. O que sinto é que realmente tornei-me muito ligado a toda esta gente e a este país maravilhoso; tenho certeza, a mais absoluta de todas as certezas, de que cada vez que pensar nesta gente daqui irei me emocionar profundamente. Não se pode esquecer nada depois de se viver tão intensamente como eu vivi aqui”. Em verdade este sentimento ainda lateja em meu coração quando por algum motivo volto no tempo e me ponho a pensar naquele ano que representou o “turning point” da minha vida pessoal e profissional.

Figura 27- Poster que me foi presenteado pelo corpo de Residentes do Policlínico Alejandro Posadas na minha despedida.

 

Sobre Toccalino assim me manifestei:” por fim, o grande chefe do circo, o comandante genial, o cérebro de toda a coisa, o homem prático e matemático que domina a todos sem se impor a ninguém, o conselheiro de todas as horas, o super-homem incansável e imbatível. Sim, ele mesmo, o meu maior ídolo, o cara que a gente quer ser quando crescer. Este cara, em especial, eu não posso deixar de lembrá-lo a cada momento da minha existência como médico. Para que se tenha uma ideia ele um dia me disse o seguinte, quando me queixava de que no Brasil não havia a possibilidade de se fazer um Serviço como o do Posadas. Ele assim me respondeu: lá não é diferente daqui, e o que é necessário é trabalhar e formar uma equipe coesa. Pensei muito nisto e depois de algum tempo cheguei à conclusão de que o seu Serviço não é nada distinto das coisas daí. Basta fazer o que ele prega. Eu irei fazer o que ele prega. Este texto foi escrito em 1973 e reproduzi fielmente o que está escrito. Posso agora, em 2023, após passados 50 anos do meu auto assumido compromisso de honra, dizer com orgulho que, eu, juntamente com outros colegas e amigos, fiz o que Horácio Toccalino pregava. Foram anos incansáveis de construção da Disciplina de GastroPediatria, a qual se tornou referência nacional e internacional durante anos seguidos, formando um sem-número de jovens profissionais, uma produção científica invejável, cursos de Especialização e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) reconhecidos em todo o Brasil e no exterior. Uma breve ideia que pode atestar a afirmação de que eu iria fazer o que Toccalino pregava pode ser confirmada na análise resumida do meu Currículo Lattes na plataforma do CNPQ, abaixo descrita:

Possui graduação em Medicina pela Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) (1970), Residência Médica em Pediatria na EPM (1971-73), especialização em Gastroenterologia Pediátrica no Policlínico Alejandro Posadas, Buenos-Aires, República Argentina (1973), Mestrado em Gastroenterologia Pediátrica pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas de Gastroenterologia (1977) e Doutorado em Pediatria (1977) pela EPM/UNIFESP, Pós-Doutorado em Pediatric Research, no North Shore University Hospital, Nova Iorque, Cornnell University (1977-1979), Doutorado em Gastroenterologia pela EPM/UNIFESP (1979). Professor Titular, Departamento de Pediatra, Disciplina de Gastroenterologia, da EPM/UNIFESP (1988-2014). Pesquisador do CNPq Nível I com Bolsa de Produtividade em Pesquisa (1979-2014). Professor Visitante da Cornell University, Nova Iorque, EUA (1981-1985). Professor Orientador do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Pediatria da EPM/UNIFESP (1982-2014). Orientou 27 Teses de Mestrado e 21 Teses de Doutorado. Coordenador de Projetos de Pesquisa da FINEP (2001-2005). Coordenador de Projetos de Pesquisa FAPESP, CNPq e CAPES. Membro eleito do Comitê de Avaliação do CNPq, Área de Medicina (1991-1994). Presidente da Comissão de Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) do Departamento de Pediatria da EPM/UNIFESP (1994-1996). Chefe do Departamento de Pediatria da EPM/UNIFESP (1996-1999). Publicou 324 Artigos de Pesquisa na Área da Ciências da Saúde, em Periódicos Científicos Nacionais e Internacionais, indexados no PUBMED. Publicou livro “Tratado de Gastroenterologia Pediátrica”, Primeira Edição, Editora Medsi (1985). Publicou Livro “Tratado de Gastroenterologia Pediátrica”, Segunda Edição, Editora Medsi, revisada e ampliada (1991). Fundador da Sociedade Latino-Americana de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria (1975). Fundador da Sociedade Paulista de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria (1984). Agraciado com a Comenda da “Ordem Nacional do Mérito Científico” do Ministério da Ciência e Tecnologia: Grau Grã-Cruz (2002). Agraciado com a “Ordem do Mérito Aeronáutico”: Grau Grande-Oficial (2007). Experiência em Educação Aberta desde 1996 como Editor-Chefe da Electronic Journal of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition, Criador e Editor do blog: http://gastropedinutri.blogspot.com.br; Membro do corpo Editorial das seguintes Revistas: Revista Paulista de Pediatria, Jornal de Pediatria, Arquivos de Gastroenterologia, Journal of Pediatrics e Jornal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition. Membro do Executive Council da Federation of the International Societies for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition, como representante eleito pela Latin American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition, de agosto de 2000 a agosto de 2008. Presidente do 30 Congresso Mundial de Gastroenterologia Pediátrica, Hepatologia e Nutrição, realizado em Foz do Iguaçu, em agosto de 2008. Vice-Reitor da UNIFESP (1999-2003). Reitor da UNIFESP (2003-2008). Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição, atuando principalmente nos seguintes temas: diarreia aguda, diarreia persistente, diarreia crônica, enteropatia ambiental, crianças de populações nativas, doença celíaca, alergia alimentar e Escherichia coli. Descreveu a entidade clínica Enteropatia Ambiental internacionalmente reconhecida pela Wikipedia (1984). Presidente de Honra do XVIII Congresso da Sociedade Latina Americana de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria, realizado em Punta Cana, República Dominicana (2011).

 

Após meu retorno ao Brasil fui contratado como Professor pela Escola Paulista de Medicina, e como tal, mantive estreita relação com Toccalino indo visitá-lo na Argentina  e ele vindo ao Brasil, várias vezes, nos anos que se seguiram até seu passamento. Tivemos a oportunidade de estarmos juntos aqui no Brasil, em São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba  e Porto Alegre, participando de cursos de atualização, e difundindo a sociedade recém-criada, sua eterna obsessão, até mesmo quando já estava tremendamente debilitado pela enfermidade que causou sua morte.



Figura 28- Uma jornada de Atualização, em 1975, em Belo Horizonte.

Nosso último encontro se deu em Porto Alegre em junho de 1977, um mês antes de eu viajar para realizar meu Pos-Doc, em Nova Iorque. Ele já se encontrava visivelmente combalido, estávamos participando de um Curso de Atualização, ele estava na Mesa de Apresentação, eu estava na plateia, já havia feito minha apresentação, tinha que pegar o voo de volta para São Paulo, levantei-me fui até onde ele se encontrava e dei o abraço mais longo e emocionado da minha vida. Ambos entre lagrimas nos despedíamos, sabíamos que era para sempre, e ele ainda teve as seguintes palavras para me dizer: “assim que chegar lá me escreva, conte-me com detalhes tudo o que você estiver fazendo, necessito muito saber como é a vida por lá”. Passados alguns meses, já trabalhando no North Shore, decidi escrever uma carta para Toccalino. Sentei-me na grama do jardim em frente do meu apartamento e escrevi a carta mais longa da minha vida, 21 páginas, contando com riqueza de detalhes minha experiência norte-americana. Os anos se passaram, e, em 1984, ao sair do local onde era realizado o Congresso da Sociedade Latino-Americana de Gastroenterologia Pediátrica, acompanhado de uma colega argentina, Maria Rosa Berlingerio, caminhando por uma rua de Buenos Aires ela me disse:” Ulysses sei que você escreveu uma longa carta ao Toccalino quando vivia nos Estados Unidos. Ele em seus últimos momentos de vida havia jogado todos os seus pertences fora, menos a referida carta. Ele me pediu para guardá-la, e, quando eu achasse que havia chegado o momento certo deveria devolvê-la para você. Estou com ela aqui comigo, e chegou o momento certo, devolvo-lhe a carta com um beijo do Toccalino”.  

Esta carta, cuja primeira página está fielmente reproduzida abaixo,  permanece em minha posse até os dias atuais, já a li e reli muitas vezes, e, cada vez que o faço meus olhos ficam marejados de emoção e saudade do meu grande Mestre, Tutor e Amigo. As páginas estão totalmente amareladas e frágeis, mas intactas, são uma joia que guardo com todo carinho, ela é de um valor inestimável.

 

Por tudo o que acima descrevi creio ter cumprido plenamente os desígnios do meu grande tutor Horácio Toccalino, e, desta forma me considero em condições de parafrasear o grande poeta chileno Pablo Neruda, prêmio Nobel de Literatura, em 1971, que escreveu, na abertura do seu livro de memórias, “Confieso que he vivido”. Eu também permito-me afirmar o mesmo, acrescentando a palavra “INTENSAMENTE !!!”.