quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Pancreatite Crônica: diagnóstico e tratamento (Parte 1)


Ana Catarina Gadelha de Andrade & Ulysses Fagundes Neto
Introdução

O pâncreas, do ponto de vista anatômico e funcional, pode ser dividido em 2 porções, a saber: a- exócrino, que corresponde aos tecidos acinar e ductal; b- endócrino aonde estão presentes as ilhotas de Langerhans. A porção exócrina que corresponde a 85% da massa pancreática, secreta as enzimas digestivas, água e bicarbonato para o interior do duodeno. A porção endócrina secreta hormônios para a corrente sanguínea. O fluxo sanguíneo do pâncreas endócrino passa pelo pâncreas exócrino antes de entrar na circulação sistêmica (Figura 1). 

Figura 1- Estrutura anatômica do pâncreas e suas divisões: exócrino e endócrino.

Pancreatite trata-se de um processo inflamatório do pâncreas que se evidencia histologicamente e que pode ocorrer das seguintes formas (Figura2):

Figura 2- Aspecto histológico de processo inflamatório do parênquima pancreático.

1-         Pancreatite aguda (PA): processo potencialmente reversível, caracterizado pela presença de edema intersticial, infiltração de células inflamatórias agudas e vários graus de necrose, apoptose e hemorragia;

2-         Pancreatite crônica (PC): processo inflamatório que  provoca alterações irreversíveis na anatomia e função do pâncreas. A fibrose e o infiltrado de células inflamatórias crônicas podem levar à insuficiência exócrina e/ou endócrina do pâncreas.

A prevalência da PC é 10 a 30 por 100.000 habitantes e afeta cerca de 8 novos pacientes por 100.000 habitantes por ano nos Estados Unidos. Nas crianças, a maioria dos quadros é decorrente de causas genéticas: fibrose cística e pancreatite hereditária.

O consumo de álcool é a principal causa de PC nos países ocidentais correspondendo de 70 a 90% dos casos.

Patogênese

Tradicionalmente, a PC tem sido definida  como independente da PA, entretanto, a PA e a PA recorrente passaram a ser consideradas entidades clínicas com características potencialmente evolutivas para PC. Há várias razões para que tenha ocorrido esta mudança na interpretação dos fatos, pois há uma sobreposição de fatores causais genéticos e ambientais, os protocolos experimentais podem induzir a quaisquer uma das condições, PA ou PC, e, além disso, os quadros clínicos das pancreatites são bastante estereotipados.

Evidências clínicas e experimentais apóiam a hipótese da necrose-fibrose, como determinante da injúria pancreática progressiva.


Figura 3- Conceito de necrose-fibrose para a lesão pancreática progressiva. Episódios repetidos de PA com necro-inflamação resultam em um aumento residual da injúria ao pâncreas, que a longo prazo acarretam dano irreversível à glândula, caracterizado por atrofia acinar e fibrose.

Pesquisas realizadas para a elucidação do mecanismo molecular da PC, particularmente  a fibrose pancreática,  ganharam impulso significativo com a identificação, isolamento e caracterização das células estreladas do pâncreas. As células estreladas ativadas desempenham um papel fundamental no processo de fibrogênese pela sua capacidade de regulação da síntese e degradação das proteínas da matriz extracelular que compõem o tecido fibroso (Figuras 4 e 5).


Figura 4- Propriedades das células estreladas (PSCs) pancreáticas. As PSCs são caracterizadas pelo conteúdo de gotas de lipídeos de vitamina A nos seus citoplasmas durante o estágio de quiescência e subsequente transformação no fenótipo ativado em respostas ao estresse oxidativo, etanol e seus metabolitos, e vários outros estímulos. Embora a origem das PSCs não esteja totalmente compreendida, algumas delas derivam da medula óssea. A persistente ativação das PSCs acarreta o surgimento da fibrose. Quando as PSCs são eliminadas por indução de apoptose ou por redirecionamento para o estágio quiescente, a evolução para fibrose poderia ser finalizada. 



Figura 5- Mecanismo de ativação das PSCs. As PSCs são ativadas pelas citocinas e pela liberação dos fatores de crescimento pelas células inflamatórias e pelas células acinares lesadas. O etanol e seus metabolitos e o estresse oxidativo agem como potenciais perpetuadores do fenótipo das PSCs ativadas. A pressão dos ductos e a hiperglicemia causam aumento do crescimento celular, da expressão da actina do músculo e síntese do colágeno pelas PSCs. A transformação do fator beta de crescimento, a activina, a endotelina-1, a ciclooxigenase 2, e o fator de crescimento do tecido conectivo, jogam um importante papel na regulação da ativação das PSCs e na produção da ECM através das alças autocrinas e paracrinas.   

Sistema de classificação dos fatores de risco e etiologias da PC

Na tabela 1 abaixo estão listados pelo sistema TIGAR-O os principais fatores de risco e etiologias da PC.


Tabela 1- Sistema TIGAR-O de classificação de fatores de risco e etiologias de PC

Na Tabela 2, abaixo, encontram-se listadas as principais causas de PC em Pediatria.

  

Tabela 2- Principais etiologias de PC em Pediatria

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Gastrites (Parte 5)

Milena R. Macitelli & Ulysses Fagundes Neto

Doença inflamatória intestinal

A Doença de Crohn é a causa mais frequente de doença granulomatosa no estômago. Apesar do envolvimento gastroduodenal ser comum, raramente a doença é limitada ao estômago e normalmente acomete porções mais distais do intestino. Anormalidades macroscópicas e/ou histológicas estão presentes no esôfago, estômago ou duodeno em até 80% das crianças com Doença de Crohn.

Gastrite Eosinofílica

Gastrite eosinofílica (GE) faz parte do conjunto das doenças eosinofílicas gastrointestinais, tais como, esofagite eosinofílica, gastroenteropatia eosinofílica e proctocolite eosinofílica. O diagnóstico pode ser quando na presença de sintomas associados a infiltrado eosinofílico proeminente e exclusão de outras causas do infiltrado.

Alguns pacientes têm histórico de asma, sensibilidade a alimentos, eczema, alergias sazonais e atopia. Geralmente são secundárias a reações mistas IgE e não-IgE mediadas com aumento de IL-5, IL-3 e fator estimulador de colônia de granulócitos (todas citocinas proinflamatórias). A eosinofilia usualmente está presente na mucosa, mas pode ser também mais profunda atingindo a muscular da mucosa e até mesmo a camada serosa.

Os sintomas da GE dependem da gravidade e extensão do envolvimento. Em lactentes e crianças pré-escolares as manifestações clínicas podem ser de failure to thrive associada à recusa alimentar. Além disto, anemia devido a sangramento oculto e hipoalbuminemia ocorrem com frequência.

No caso de haver envolvimento apenas da mucosa os sintomas são semelhantes a outros tipos de gastrite, porém, em alguns casos podem ocorrer manifestações de obstrução gástrica. Por outro lado, quando muscular da mucosa e/ou a camada serosa estão envolvidas, dores abdominais e ascite podem estar presentes.

GE geralmente está associada a alérgeno específico e na infância os antígenos mais comuns: proteína do leite de vaca, soja, ovo e trigo. A relação temporal entre a ingestão de certo alimento e o surgimento dos sintomas característicos, é fundamental para estabelecer o diagnóstico. Na imensa maioria dos casos o aparecimento de irritabilidade, dor abdominal e vômitos ocorre após 1 a 2 horas da ingestão do alimento agressor.

Deve-se levar em consideração que outras entidades tais como, Doença de Crohn, infestação parasitária e infecções agudas/crônicas (ex: H. pylori) podem estar acompanhadas de eosinofilia na mucosa, porém geralmente o infiltrado é bem mais discreto do que o observado nas doenças alérgicas (doenças eosinofílicas).

Achados endoscópicos

Quando presentes não são específicos, no entanto, os achados mais frequentes são: friabilidade e eritema da mucosa, erosões, pregueado mucoso espesso e lesões nodulares da mucosa ou pseudopólipos (especialmente no antro).

A mucosa, em alguns casos, pode apresentar-se macroscopicamente normal.

Figura 11- Esofagogastroduodenoscopia revelando gastrite antral difusa, com múltiplas áreas focais de erosão da mucosa.

 
Figura 12- Fitas de eosinófilos, coradas de vermelho intenso, podem ser vistas infiltrando a lâmina própria e a muscular da mucosa.

Achados histológicos

O achado mais significativo é o infiltrado eosinofilico na lâmina própria. Ocasionalmente linfócitos, células plasmáticas e neutrófilos podem estar presentes.

Figura 13- Biópsia antral revelando intensa infiltração eosinofílica na lâmina própria.



Figura 14- Infiltrado eosinofílico permeando as glândulas gástricas, porém não invadindo o lúmen das mesmas.


Tratamento

O pilar do tratamento da gastrite eosinofílica deve se basear na exclusão dos possíveis alérgenos. Há um consenso internacional que advoga o uso de uma dieta de eliminação dos 6 principais alérgenos, a saber: leite e derivados, soja, trigo, ovo, peixe e frutos do mar, frutos secos (nozes, cacau, castanhas, avelã, amendoim etc.) e eu também incluo o coco.

Nos casos mais graves deve-se usar inicialmente corticosteroides sistêmicos, e também antagonistas de receptor de leucotrieno (Montelucaste).

É difícil a aplicação de esteroide tópico na mucosa gástrica, e da mesma forma, preparações com Cromoglicato são dificilmente eficazes.

Estudo confirmou que na população dos EUA, a quantificação de eosinófilos gástricos deve ser <38 a="" caso="" da="" eosin="" eosinofilica="" filos="" foi="" gastrite="" mm2.="" no="" o="" quantifica="">127 eosinófilos/mm2 ou 30 eosinófilos/CGA.

Gastrite induzida por anti-inflamatórios não esteroides (AINEs)

É do conhecimento geral que os anti-inflamatórios são as drogas mais prescritas em todo o mundo. Apesar de serem indicadas como primeiro tratamento de diversas doenças, seu uso deve ser limitado em virtude dos efeitos adversos sobre o TGI.

As drogas anti-inflamatórias podem resultar em danos à mucosa, podendo até mesmo causar processos ulcerosos.

A ação tópica dos AINEs causa hemorragia aguda e erosão 15 a 30 minutos após a ingestão, primeiramente no antro. Vale referir que as lesões precoces são geralmente assintomáticas e não tem significância clínica.

A presença sistêmica dos AINEs compromete a integridade da mucosa e pode ocasionar ulceração grave da mucosa. Em crianças menores, a ulceração da incisura gástrica, associada a sangramento gastrointestinal alto é uma típica da lesão provocada por AINEs. O sangramento pode ocorrer após apenas 1 ou 2 doses da medicação ou com uso crônico.

Os seguintes achados histológicos se destacam: hiperplasia epitelial, depleção de mucina, núcleos alargados, ectasia vascular e edema.

Figura 15- Lesão gástrica provocada por uso continuado de AINES.


 
Gastrite por Citomegalovirus (CMV)

A infecção por CMV ocorre com maior frequência em indivíduos imunocomprometidos, como por exemplo: AIDS, transplante de órgão sólido ou medula óssea. Nas crianças imunocompetentes, a infecção por CMV normalmente está associada a Doença de Menetrier. A infecção tende a ocorrer no fundo e corpo gástrico, acarretando espessamento da parede, ulceração, hemorragia e perfuração.

Os principais achados histológicos são: inflamação aguda e crônica com edema, necrose e inclusão citomegálica em células endoteliais e epiteliais, bem como nas bases das úlceras e na mucosa adjacente as úlceras. O CMV usualmente afeta as porções mais profundas da mucosa e a inflamação ativa pode ser focal ou panmucosal.

O diagnóstico torna-se mais eficaz quando se faz cultura do vírus no material da biópsia da mucosa. A detecção do vírus também pode ser realizada pela técnica da imunohistoquímica.

O tratamento com Ganciclovir pode ser eficaz em pacientes imunossuprimidos, porém a recorrência ocorre com frequência em 1 a 2 meses.

Doença granulomatosa crônica


Trata-se de uma deficiência imunológica rara que ocorre com maior frequência em meninos, acarretando o envolvimento granulomatoso da parede gástrica.

A enfermidade pode cursar com sintomas gastrointestinais altos, bem como lesões aftosas orais podem ocorrer, o que obriga a um diagnóstico diferencial de Doença de Crohn. Em alguns casos pode surgir gastroenterite grave.

Não há achados endoscópicos típicos, geralmente a mucosa antral esta pálida e espessada. A histologia pode revelar inflamação focal, crônica ativa do antro com granulomas ou células gigantes multinucleares.

Outras gastrites granulomatosas raramente são processos primários. Geralmente são decorrentes de alguma patologia de base, tais como: infecções, corpo estranho, doenças imuno-mediadas, carcinoma, linfomas e infecção por H. pylori.

Na maioria dos casos a aparência morfológica do granuloma não fornece claras evidencias da causa. Em países desenvolvidos, a gastrite granulomatosa, com exceção da secundária a Doença de Crohn, é rara. O diagnóstico diferencial inclui tuberculose, histiocitose, reação a corpo estranho, dentre outras doenças.

Gastrite granulomatosa idiopática isolada é uma reação crônica granulomatosa limitada ao estômago, uma condição rara e deve ser diagnóstico de exclusão.
 

Quadro 3- Principais causas de gastrite granulomatosa


 Gastrite de Henoch-Schönlein

A púrpura de Henoch-Schönlein também conhecida como púrpura anafilactóide ou púrpura reumática, é a vasculite mais frequente em crianças e adolescentes. Trata-se de uma doença multisistêmica que pode acometer vasos de pequeno e médio calibres. Pode ocorrer em qualquer idade, entretanto, o pico de incidência situa-se entre 4 e 6 anos.

A enfermidade pode envolver a pele, o trato gastrointestinal, rins e articulações.

Os principais sintomas gastrointestinais são: cólica periumbilical, dor epigástrica, náusea, vômitos e sangramento digestivo. Mais raramente pode ocorrer hematoma intramural, intussuscepção, infarto intestinal, perfuração intestinal, pancreatite, apendicite e colecistite.

Os achados endoscópicos mais característicos no estômago são: mucosa com eritema ou hemorragia, edema de mucosa com erosões ou úlceras. Biópsias da mucosa gástrica geralmente são muito superficiais para poder demonstrar as alterações histológicas típicas, porém, pode ser vista vasculite semelhante à da pele.

Gastrite induzida por exercício

Trata-se de entidade bem conhecida em atletas corredores de longas distâncias e em geral cursa com anemia com ou sem sintomas gastrointestinais.

Os sintomas costumam ocorrem após o exercício físico e se manifestam por cólica abdominal, dor epigástrica, náusea, refluxo gastresofágico e vômitos.

A lesão mucosa apresenta-se igualmente no antro, corpo e fundo gástrico.

Conclusão

Gastrite trata-se de uma denominação genérica envolvendo uma lesão da mucosa gástrica decorrente de inúmeras etiologias. A endoscopia digestiva alta associada à biópsia gástrica representa uma ferramenta de fundamental importância para a investigação diagnóstica etiológica. O esclarecimento diagnóstico de certeza torna-se extremamente importante para que se possa propor o tratamento específico e adequado.