terça-feira, 27 de março de 2018

Impedanciometria do esôfago na Pediatria (Parte 2)


 Natália Oliveira e Silva e Ulysses Fagundes Neto




         INSTRUÇÕES

Assim como na pHmetria, na impedanciometria deve ser realizada monitoração durante 24 horas, já que os episódios de refluxo podem variar com a refeição, período pós-prandial, posição ortostática e decúbito, períodos de sono e vigília.
Devem ser realizadas anotações com os sintomas referidos pelo paciente, incluindo a hora apresentada no visor do aparelho para posteriormente tornar possível a correlação sintomática. Devem ser incluídos, no mínimo, os seguintes dados: horário das refeições (início e fim), posição (prona e supina), sintomas, além de outros eventos relevantes, como por exemplo, desconexão do cateter. Recomenda-se evitar alimentos ácidos e bebidas gaseificadas, porque tornam a interpretação mais complexa. O eletrodo também sofre influência da temperatura, portanto, alimentos extremamente quentes ou frios devem ser evitados.

         ANÁLISE

Ao término do exame, todos os dados do diário de eventos devem ser transferidos para o computador. Apesar de que até o presente momento nenhuma análise automatizada esteja totalmente validada para crianças, a maioria dos usuários da IMM-pH inicia a análise do traçado pela análise automatizada que manualmente visualiza o estudo, para adicionar e/ou excluir os eventos e confirmar ou não a ocorrência do refluxo. Valores de normalidade para crianças não existem já que não é eticamente possível realizar um estudo com crianças saudáveis assintomáticas.



O objetivo do estudo foi validar o uso da IMM-pHmetria. Foram selecionados 700 pacientes de Janeiro/2004 a Junho/2008, de 0 a 16 anos, com indicação do procedimento, a saber: sintomas do trato gastrointestinal, pulmonares e neurológicos.

Os seguintes achados foram definidos como anormais:
  pHmetria: Índice de Refluxo (IR - % de tempo com pH <4> ou = 5% em >1 ano e > ou = 10 em menores de 1 ano.
  Impedanciometria: Índice de sintoma (número de sintomas associados ao refluxo/número de todos os sintomas) maior ou igual 50% ou maior número de episódios de refluxo - arbitrariamente definido como maior do que 70 episódios em 24 horas em pacientes com 1 ano ou mais, e maior do que 100 naqueles com menos de 1 ano.

Os autores concluíram que 45% dos pacientes com DRGE não teriam sido reconhecidos caso esse diagnóstico houvesse sido realizado apenas através da pHmetria de 24 h. Os achados do estudo  confirmam que a MII-pH é superior à pHmetria isoladamente na avaliação do RGE.


Os objetivos do estudo foram determinar a variabilidade intra e interobservador na interpretação da IMM-pHmetria entre 10 especialistas de 7 diferentes grupos no mundo na análise do exame, e, além disso, determinar a acurácia da análise automatizada que foi comparada levando-se em consideração a avaliação dos observadores. Foi ainda avaliada a variabilidade intraobservador entre 3 investigadores.

Foi encontrada sensibilidade de 94% para a análise automatizada e especificidade de 74%. Foi observado que a concordância entre especialistas na análise da IMM-pHmetria é moderada, pois apenas 42% dos episódios de RGE foram detectados pela maioria dos observadores.

Considerando esse resultado fraco, a análise automática (AA) parece ser  mais favorável em comparação com a análise manual devido à sua baixa reprodutibilidade. No entanto, a baixa especificidade sugere a necessidade de refinamento da AA antes de que o uso generalizado do teste possa ser defendido.

        CONCEITOS SOBRE ALGUNS PARÂMETROS

Refluxo líquido é definido como uma queda na impedância de pelo menos 50% da linha de base em pelo menos 3 anéis consecutivos. O final de um episódio de refluxo é definido como o momento em que o valor da impedância retornou a pelo menos 50% do valor inicial (linha de base). Refluxo gasoso é caracterizado pelo aumento na impedância >3000 Ohm em quaisquer de dois locais consecutivos de impedância com um local possuindo um valor absoluto >7000 Ohm. Refluxo misto é a combinação de líquido e gás.

Quando a queda da impedância ocorre primeiro no nível superior, este dado corresponde a um episódio de deglutição (Tabela 3).

Tabela 3- Definição dos parâmetros do refluxo.

Todos os dados do diário devem ser inseridos antes da análise automatizada. Pode ser observado um atraso em relação ao horário do sintoma apresentado pelo episódio de refluxo. Em geral, um intervalo de 2 minutos (antes e depois) é aceito, embora esse valor seja definido por consenso, sem ser baseado em evidência. Devem ser relatados o número de sintomas associados ao refluxo e os não associados, além do número de refluxos com e sem sintomas. Com estes dados disponíveis diferentes análises podem ser realizadas.

        PARÂMETROS

O Índice de Sintoma (IS-%) corresponde ao percentual de sintomas associados ao refluxo dividido pelo total de sintomas. É arbitrariamente definido em adultos como alto ou positivo quando acima de 50%.

O Índice de Sensibilidade dos Sintomas (SSI - %) representa a porcentagem de eventos sintomáticos associados ao refluxo dividido pelo número total de episódios de refluxo. Valor maior que 10% é geralmente aceito como clinicamente significativo.

Na Probabilidade de Associação de Sintomas (SAP – %), o tempo total mensurado é subdividido em 2 intervalos de 2 minutos e uma tabela é estabelecida: número de intervalos com RGE, com e sem sintomas, número de intervalos sem RGE, com ou sem sintomas. O teste de Fisher é utilizado para o cálculo.

Valor positivo acima de 95% é interpretado como tendo boa associação temporal entre RGE e os sintomas apresentados, e é a mais forte evidência da existência de refluxo pois é a menos influenciada pelo número absoluto de RGE e dos sintomas.

Em geral, a demonstração de uma associação temporal entre RGE e sintomas relevantes é estabelecida com aqueles de curta duração (tosse, apneia, queda da saturação do oxigênio), enquanto que para os sintomas de longa duração (laringite, bronquite) a interpretação global do exame é mais relevante. Até o momento, apenas estudos prospectivos duplo cego placebo controlado extremamente limitados foram conduzidos em crianças com sintomas extra-esofágicos possivelmente associados ao REG.

       COMPLICAÇÕES

Potenciais complicações são raras, mas devem ser advertidas aos pais/responsáveis – falha técnica, sonda mal posicionada (altura, brônquio) e trauma na mucosa (sangramento, laceração). A frequência e causa de complicações são as mesmas da pHmetria convencional.

      FUTURO

Uma interessante avaliação poderia ser a comparação entre MMI-pH e a cintilografia – mensurar o RGE durante a refeição e no período pós-prandial de 1 hora. A literatura evidencia correlação extremamente fraca entre o RGE caracterizado pela pHmetria em comparação com a cintilografia.

A combinação entre a IMP com fluoroscopia e a manometria de alta resolução pode ser útil no estudo da função faríngea, porque o movimento do bolus é visualizado enquanto são registradas a pressão e o movimento de líquido e ar.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Impedanciometria do esôfago na Pediatria (Parte 1)


Natália Oliveira e Silva e Ulysses Fagundes Neto


Introdução

O Refluxo Gastroesofágico (RGE) é a condição clínica mais comum que acomete o esôfago na faixa etária pediátrica. Trata-se de uma queixa frequente nos consultórios de pediatria, correspondendo a 25% das causas de visitas dos pacientes até os 6 meses de vida.

A variabilidade dos sintomas e do seu curso evolutivo, associada à falta de uma classificação que permita categorizar os pacientes de uma forma padronizada e aceita universalmente, gera muita confusão em relação à abordagem terapêutica do RGE em crianças.

Segundo o guia de conduta das Sociedades Norte-americana e Europeia (NASPGHAN/ESPGHAN) proposto em 2009, o RGE consiste na passagem do conteúdo gástrico para o esôfago, com ou sem a presença de regurgitação e vômito, sendo um processo fisiológico, que ocorre várias vezes ao dia nas diferentes faixas etárias.

Os episódios de RGE fisiológico em indivíduos saudáveis são, na maioria das vezes, de curta duração (menos de 3 minutos), ocorrem no período pós-prandial e ocasionam pouco ou nenhum sintoma.

Por outro lado, a Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE) associa-se com a presença de sintomas ou complicações advindas do retorno do conteúdo gástrico para o esôfago. O diagnóstico da DRGE na faixa etária pediátrica é de difícil comprovação devido a inexistência de exames diagnósticos considerados padrão-ouro, além de não haver nenhuma combinação de sintomas que sejam específicos desta afecção ou de suas complicações.

Diagnóstico

Em geral, o diagnóstico baseia-se na história clínica e no exame físico do paciente, e, portanto, devem ser considerados, em princípio, como padrão-ouro. Entretanto, na maioria das vezes é necessário quantificar e caracterizar a DRGE de forma mais objetiva. Para se obter informações diagnósticas mais fidedignas deve-se lançar mão de alguns testes, os quais podem ser divididos em 2 categorias, a saber:

A) Testes que mensuram os episódios de refluxo: pHmetria, impedancio-pHmetria, radiologia do esôfago-estômago-duodeno (EED) e cintilografia gastroesofágica.
B) Exame de avaliação de possíveis complicações: endoscopia digestiva alta.

pHMETRIA

A pHmetria é um exame útil para diferenciar o RGE fisiológico da DRGE, bem como para correlacionar os episódios de refluxo ácido com os sintomas relatados, especialmente os extra-digestivos, selecionando, dessa forma, os pacientes que irão se beneficiar com o tratamento para a DRGE. Está bem estabelecido que a pHmetria representa uma medida quantitativa confiável da exposição ácida no esôfago, com valores de referência universalmente bem definidos. Vale ressaltar que a pHmetria não é sensível aos episódios de refluxo não ácidos ou fracamente ácidos. Em lactentes, com dieta exclusiva ou predominantemente láctea, o RGE pós-prandial pode não ser detectado, devido a neutralização do refluxo ácido provocado pelo leite, que é uma substância alcalina, em especial o leite humano.

Atualmente, este teste está sendo mais utilizado em conjunto com a impedanciometria, sob a denominação de impedâncio-pHmetria (IMM-pH).

IMPEDANCIOMETRIA

A impedanciometria é um procedimento ambulatorial, utilizado para detectar todos os episódios de refluxo, identificando o seu conteúdo (fluidos, sólidos ou gasoso) no esôfago, em qualquer quantidade, independentemente do sentido, de qualquer localização e do pH, posto que este teste mensura as alterações da resistência elétrica.

A impedância (resistência elétrica) é determinada pela quantidade e fluxo de íons através do tecido. Existe um certo grau de impedância basal através da parede esofágica.

A condutividade elétrica do ar é quase zero, enquanto que a condutividade de um bolus alimentar, como por exemplo, leite, saliva ou conteúdo gástrico, é relativamente elevada quando comparada com a baixa condutividade da parede muscular. Assim sendo, quando o esôfago está vazio, a impedância é alta, enquanto que a passagem do bolo alimentar provoca queda da impedância, posto que a impedância diminui durante a passagem de um bolus com alta condutividade, tais como a saliva, alimentos ou secreções gastrointestinais. A impedância aumenta durante as fases de baixa condutividade, como por exemplo durante a passagem do ar ou durante as contrações musculares da parede do órgão.

A passagem do bolus é caracteristicamente dividida em cinco fases, como se segue (Figura 1):
  Fase 1 – estado de repouso: relaxamento muscular do esôfago;
  Fase 2 – aumento da impedância causada pela passagem do ar na frente do bolus;
  Fase 3 – diminuição da impedância causada pela passagem de um bolus com alta condutividade;
  Fase 4 – constricção da parede esofágica que acarreta aumento da impedância após a passagem do bolus;
  Fase 5 –relaxamento da parede esofágica: a impedância retorna ao estado de repouso.


Figura 1- Caracterização das diversas fases da passagem de um bolus.

O princípio básico deste teste é a gravação das alterações da impedância elétrica do lúmen, ocasionadas pela passagem de um bolo alimentar, independentemente de suas características físicas ou químicas, por meio da utilização de um cateter transnasal. O teste identifica o refluxo ácido (pH<4 4-7="" cido="" n="" o="" ou="" ph="" pouco="">7), movimento do alimento, de gás ou misto (gás e líquido). A sensibilidade diagnóstica da impedância é equivalente à da pHmetria em pacientes não tratados, porém é superior naqueles pacientes tratados com medicação antiácida. A vantagem principal sobre a pHmetria é detectar também os refluxos não-ácidos (Tabela 1).

A impedanciometria encontra-se disponível para uso pediátrico desde 2002, e é um teste facilmente realizável em qualquer faixa etária, desde prematuros a adolescentes, e a princípio, apresenta as mesmas indicações da pHmetria, ou seja:
  A) Mensurar o refluxo em pacientes que não respondem ao tratamento anti-refluxo;
  B) Quantificar o refluxo em pacientes com predomínio de sintomas extra-esofágicos;
  C) Avaliação de sintomas descontínuos, tais como tosse e rouquidão, que podem estar associados a refluxo não ácido ou fracamente ácido;
  D) Pode ser realizado durante tratamento medicamentoso, e, também, durante infusão de dieta enteral (contínua ou em bolus), para avaliação do refluxo durante as refeições e nos períodos pós-prandiais.

Tabela 1- Comparação entre a monitoração do pH e da impedância.

DISPOSITIVOS DE GRAVAÇÃO E SOFTWARE

Diversos aparelhos e softwares estão disponíveis para uso na faixa etária pediátrica. Alguns equipamentos oferecem muitos outros parâmetros, como a saturação de oxigênio, frequência cardíaca e respiratória, e até manometria esofágica de alta resolução (Tabela 2).

Tabela 2- Lista de marcas disponíveis no mercado.

PREPARO
Devem ser selecionadas sondas apropriadas para a idade do paciente, as quais possuem pelo menos 6 anéis de impedância e 1 canal distal de pH, sendo a maioria deles de antimônio. Em virtude desta combinação o pH e a impedância são avaliadas em pelo menos 6 locais, em diferentes níveis do esôfago. A sonda possui diâmetro de 2,13 mm, enquanto que o comprimento da mesma varia de acordo com idade/estatura do paciente a ser avaliado, a saber:
                          Infantil (altura menor de 75 cm)
                          Pediátrico (75-150cm)
                          Adulto (maior de 150cm)

A distância entre os anéis de impedância e o sensor de pH difere de acordo com o cateter (altura do paciente e marca do cateter) (Figura 2).
Figura 2- Representação gráfica da sonda combinada de impedanciometria e pHmetria.

As sondas podem ser de uso único ou múltiplo. Não existe uma recomendação para escolha de cada uma delas. As sondas podem ter um eletrodo de referência interno, localizado na extremidade do cateter, 3-5 cm distal do sensor de pH, atravessando o esfíncter esofágico inferior ou externo, fixado ao paciente. O eletrodo do pH deve ser calibrado de acordo com as instruções do fabricante em 2 soluções de pH diferentes.

A sonda de IMM-pH é inserida por via intranasal, de preferência sem sedação, embora o uso de anestésico tópico spray possa ser benéfico em algumas crianças. O uso de gel pode facilitar a passagem da sonda, mas o gel não deve estar em contato com o eletrodo de antimônio porque pode diminuir sua acurácia.

O eletrodo de pH deve ser posicionado 2 vértebras acima do diafragma, no nível da coluna lombar. A fórmula de Strobel (0,252 x altura em cm + 5) pode ser utilizada para estimar o posicionamento apropriado da ponta distal do cateter – observar que foi desenvolvida para lactentes e se torna imprecisa à medida que o paciente cresce. A posição deve ser confirmada por Raio X.

A IMM-pH é um exame de custo elevado. O equipamento custa em torno de 15 mil euros e o valor aproximado de cada sonda é de 150 euros. Além disso, cada profissional leva em média 1 hora para interpretar o exame, o que resulta em um custo adicional.

terça-feira, 13 de março de 2018

Reações de Fermentação: aquilo que vale a pena saber a respeito delas (Parte 4)


Ulysses Fagundes Neto

Diretor Médico do IGASTROPED
(www.igastroped.com.br)

Fermentação Butírica

A fermentação butírica é a reação química realizada por bactérias anaeróbias, através da qual se forma o ácido butírico. A fermentação butírica trata-se da conversão de carboidratos em ácido butírico por ação de bactérias da espécie Clostridium butyricum na ausência de oxigênio. Este processo foi descoberto por Louis Pasteur em 1861 e produz, a partir da lactose ou do ácido láctico, ácido butírico e gás. É característica das bactérias do gênero Clostridium e se caracteriza pelo surgimento de odores pútridos e desagradáveis. 
As bactérias produtoras de ácido butírico são encontradas no solo, em plantas, no esterco e, por isso, são facilmente encontradas no leite. A silagem estocada em más condições é uma fonte importante de esporos. As principais espécies são Clostridium tyrobutyricume e Clostridium butyricum, anaeróbias, formadoras de esporos com uma temperatura ótima de crescimento de 37°C (Figura 22).

Figura 22- Esquema da fermentação butírica.

Esses microrganismos não apresentam crescimento ideal no leite pois este contém O2, porém, se desenvolvem no queijo onde as condições anaeróbias prevalecem. As propriedades do queijo como substrato microbiano transformam-se durante os primeiros dias da fermentação láctica. No início, o carboidrato (lactose) é o substrato principal e com o decorrer da fermentação o lactato transforma-se no principal elemento capaz de sustentar o crescimento microbiano. A lactose é fermentada a ácido láctico, o qual é neutralizado pelo cálcio e outros minerais, formando lactato de cálcio. Então, a fermentação butírica precoce (“estufamento precoce”) é devida à transformação da lactose por Clostridium butyricum, enquanto que a fermentação tardia (“estufamento tardio”) é conseqüência da degradação do lactato causado por Clostridium butyricum ou Clostridium tyrobutyricum (que só fermenta lactato). Essas fermentações produzem grandes quantidades de CO2, hidrogênio e ácido butírico. O queijo adquire uma textura rachada e um gosto rancoso e adocicado de ácido butírico.  

As formas esporuladas resistem à pasteurização e podem causar grandes danos na produção de queijos. A adição de nitrato de potássio no leite destinado a produção de queijo é um método eficaz de controle. Contudo, o uso desse conservante tem sido combatido em vários países pelo presumido risco de formação de substâncias carcinogênicas. Também, o sal de cozinha (cloreto de sódio) possui um importante efeito inibitório sobre as bactérias butíricas, mas é importante que o mesmo seja utilizado precocemente, na formação do coágulo. Os esporos das bactérias butíricas podem ser eliminados por centrifugação (bactocentrifugação) e microfiltração.
Conclusões
Os diversos tipos de reações de fermentação apresentam um inestimável valor para o ser humano, pois, pode-se depreender que o subproduto das mesmas fornece inúmeras vantagens para as indústrias alimentícia, de bebidas e farmacêutica, o que direta e/ou indiretamente resultam em benefício para a sociedade de um modo geral (Figura 23).

Figura 23- Processos fermentativos utilizados industrialmente.
Ainda para finalizar, vale a pena referir sobre os processos de fermentação que podem ocorrer no organismo do ser humano, especificamente no trato digestivo, em particular no intestino grosso (Figuras 24 e 25).
 Figura 24- Anatomia do trato digestivo.

Figura 25- Processo de fermentação normal no intestino grosso.
 Quando determinados substratos não são digeridos pelas enzimas que deveriam estar presentes no intestino delgado (por exemplo lactase x lactose) ou mesmo alguns oligossacarídeos que fazem parte da dieta e que normalmente não são absorvidos, sofrem um processo de fermentação pela microflora bacteriana residente do intestino grosso, podem acarretar sintomas indesejáveis (Figuras 26 e 27).
Figura 26- Fermentação que ocorre no intestino grosso devido a má absorção de lactose.


Figura 27- Grande distensão abdominal em uma criança devido a má absorção de frutose em comparação com seu estado normal quando submetida a dieta de baixo teor de frutose.

terça-feira, 6 de março de 2018

Reações de Fermentação: aquilo que vale a pena saber a respeito delas (Parte 3)

Ulysses Fagundes Neto
Diretor Médico do IGASTROPED
(www.igastroped.com.br)

Fermentação Láctica


A fermentação láctica é o processo metabólico no qual carboidratos e compostos relacionados são parcialmente oxidados, resultando em liberação de energia e compostos orgânicos, principalmente ácido láctico, sem qualquer aceptor de elétrons externo. É realizada por um grupo de microrganismos denominados bactérias ácido-lácticas, as quais têm importante papel na produção/conservação de produtos alimentares, ou pelas fibras musculares em situações de intensa atividade física, nas quais não há suprimento de oxigênio suficiente para que ocorra a respiração celular, levando a acúmulo de ácido láctico na região, o que provoca dores, cansaço e câimbras (Figura 18).
Figura 18- Representação esquemática da causa de câimbra.

A fermentação láctica pode ser classificada em dois tipos, de acordo com a quantidade de produtos orgânicos formados, a saber: homolática e heteroláctica.

Microrganismos fermentadores

O grupo das bactérias ácido-lácticas é composto por 12 gêneros de bactérias Gram-positivas: Carnobacterium, Enterococcus, Lactococcus, Lactobacillus, Lactosphaera, Leuconostoc, OenococcusPediococcus, Streptococcus, Tetragenococcus, Vagococcus e Weissella. Todos os membros desse grupo apresentam a mesma característica de produzir ácido láctico a partir de hexoses. Streptococcus thermophilus é o microrganismo mais importante nos alimentos. Algas e fungos (leveduras e ficomicetos) são também capazes de sintetizar ácido láctico. Produção comparável à das bactérias homofermentativas é obtida pelo fungo Rhizopus oryzae em meio de glicose. Sua utilização é preferível à das bactérias homofermentativas, porque o tempo gasto na fermentação é menor e a separação do produto, mais simples.

Fases da fermentação láctica

A fermentação láctica, tal como a alcoólica, realiza-se em duas fases:

1º Fase: Glicólise

A equação global final quando a glicólise é o substrato:

Glicose + 2NAD+ + 2ADP + 2Pi http://saofranciscocdn.s3-website-us-east-1.amazonaws.com/wp-content/plugins/jquery-image-lazy-loading/images/grey.gif= 2 Piruvato + 2 NADH + 2H+ + 2ATP + 2 H2O

2º Fase: Fermentação láctica

Após a glicólise, a redução do piruvato é catalisada pela enzima lactato-desidrogenase. O equilíbrio global dessa reação favorece fortemente a formação de lactato. Microrganismos fermentadores regeneram continuamente o NAD+ pela transferência dos elétrons do NADH para formar um produto final reduzido, como o são o lactato e o etanol.

Reação de síntese do ácido láctico na fermentação

O rendimento em ATP da glicólise sob condições anaeróbicas resulta em apenas 2 ATP por molécula de glicose, muito inferior do que o obtido na oxidação completa da glicose sob condições aeróbicas, que resulta em 36 ou 38 ATP por molécula de glicose. Portanto, para produzir a mesma quantidade de ATP, é necessário consumir próximo de 18 vezes mais glicose em condições anaeróbicas do que nas condições aeróbicas (Figura 19).

 Figura 19- Esquema da reação de fermentação láctica.

Tipos de fermentação Láctica

A classificação da fermentação láctica é feita com base nos produtos finais do metabolismo da glicose:

1-  Fermentação homoláctica: processo no qual o ácido láctico é o único produto da fermentação da glicose. As bactérias homolácticas podem extrair duas vezes mais energia de uma quantidade definida de glicose do que as heterolácticas. O comportamento homofermentativo é observado quando a glicose é metabolizada, mas não necessariamente quando as pentoses o são, já que algumas bactérias homolácticas produzem ácidos acético e láctico quando utilizam pentoses. O caráter homofermentativo de algumas linhagens pode ser mudado pela alteração das condições de crescimento, tais como a concentração de glicose, o pH e a limitação de nutrientes. Todos os membros dos gêneros Pediococcus, Streptococcus, Lactococcus e Vagococcus são homofermentadores, assim como alguns Lactobacillus, são muito importantes para a formação da acidez nos laticínios.

2-  Fermentação heteroláctica: processo no qual ocorre produção da mesma quantidade de lactato, CO2 e etanol a partir de hexoses. As bactérias heterolácticas são mais importantes do que as homolácticas na produção de componentes de aroma e sabor, tais como o acetilaldeído e o diacetil. Os heterofermentadores são Leuconostoc, Oenococcus, Weissela, Carnobacterium, Lactosphaera e alguns Lactobacillus. O processo de formação de diacetil a partir do citrato na indústria de alimentos é fundamental para a formação do odor, como por exemplo, na fabricação de manteiga.

Aplicação industrial da fermentação láctica

Alguns alimentos podem se deteriorar pelo crescimento e pela ação das bactérias ácido-lácticas. No entanto, a importância deste grupo de microrganismos consiste em sua grande utilização na indústria alimentar. Muitos alimentos devem sua produção e suas características às atividades fermentativas dos microrganismos em questão. Queijos maturados, conservas, chucrute e linguiças fermentadas são alimentos que possuem uma vida de prateleira consideravelmente maior que a matéria-prima da qual eles foram feitos. Além de serem mais estáveis, todos os alimentos fermentados possuem aroma e sabor característicos que resultam direta ou indiretamente dos organismos fermentadores. Em alguns casos, o conteúdo de vitaminas dos alimentos cresce juntamente com o aumento da digestibilidade da sua matéria-prima. Nenhum outro grupo ou categoria de alimentos é tão importante ou tem sido tão relacionado ao bem-estar nutricional em todo o mundo quanto os produtos fermentados (Figura 20).    


Figura 20- Exemplo de produto da indústria alimentícia resultante da fermentação láctica.

Fermentação acética
  
Consiste na oxidação parcial, aeróbica, do álcool etílico, com produção de ácido acético. Esse processo é utilizado na produção do vinagre comum e do ácido acético industrial. Desenvolve-se também na deterioração de bebidas de baixo teor alcoólico e na de certos alimentos. A fermentação acética é realizada por um conjunto de bactérias do gênero Acetobacter ou Gluconobacter, pertencentes à família Pseudomonaceae que produz ácido acético e CO2 (Figura 21). 
 Figura 21- Esquema da fermentação acética.
Desde a antiguidade a humanidade sabe fabricar vinagre, e, para obter tal efeito, basta deixar o vinho azedar. Nessa reação, o etanol reage com o O2 transformando-se em ácido acético. 

O vinagre é azedo, pois trata-se de uma solução aquosa de ácido. Assim, para evitar que um vinho se estrague, devemos impedir a entrada de O2 na garrafa, o que é feito deixando-a na posição horizontal. Se determinarmos os números de oxidação dos átomos presentes nas substâncias envolvidas na reação de fermentação acética, veremos que um dos carbonos e o oxigênio sofreram alterações.   
Podemos dizer que o O2 atuou como agente oxidante, pois causou a oxidação do álcool. Muitos outros agentes oxidantes seriam capazes de executar essa oxidação, como, por exemplo, o permanganato de potássio em meio ácido ou o dicromato de potássio em meio ácido. 
A fermentação acética corresponde à transformação do álcool em ácido acético por determinadas bactérias, conferindo o gosto característico do vinagre. As bactérias acéticas constituem um dos grupos de microrganismos de maior interesse econômico, de um lado pela sua função na produção do vinagre e, de outro, pelas alterações que provocam nos alimentos e bebidas. 
A bactéria acética ideal é aquela que resiste à elevada concentração de álcool e de ácido acético, com pouca exigência nutritiva, elevada velocidade de transformação do álcool em ácido acético, bom rendimento de transformação, sem hiperoxidar o ácido acético formado, além de conferir boas características gustativas ao vinagre. Essas bactérias acéticas necessitam do O2 do ar para realizar a acetificação. Por isso multiplicam-se mais na parte superior do vinho que está sendo transformado em vinagre, formando um véu conhecido como “mãe do vinagre”. Esse véu pode ser mais ou menos espesso de acordo com o tipo de bactéria.
O ácido acético produzido por bactérias desse gênero é o composto principal do vinagre, condimento obtido a partir da fermentação alcoólica do mosto açucarado e subsequente “fermentação acética”.  
Microorganismos    

As bactérias acéticas utilizadas neste processo são aeróbias e alguns gêneros possuem como importante característica a ausência de algumas enzimas do ciclo dos ácidos tricarboxílicos, tornando incompleta a oxidação de alguns compostos orgânicos (baixa oxidação).   
Por isso, são úteis não apenas para a bioconversão, produzindo ácido acético, mas, também, para outras, como ácido propiônico a partir do propanol, sorbose a partir de sorbitol, ácido glucônico a partir da glicose, além de outros.   
As bactérias do ácido acético, assim originalmente definidas, compreendem um grupo de microrganismos aeróbios, Gram negativos, bastonetes, que apresentam motilidade, realizam uma oxidação incompleta de álcoois, resultando no acúmulo de ácidos orgânicos como produto final.   
Outra propriedade é a relativa alta tolerância às condições ácidas, pois a maioria das linhagens são capazes de crescer em valores de pH baixo.<5 .="" nbsp="" o:p="">
Atualmente, o gênero Acetobacter, compreende as bactérias acéticas que apresentam flagelos peritrícos, com capacidade para oxidar o ácido acético.   
Um outro gênero presente no grupo das bactérias do ácido acético, denominado primeiramente Acetomonas e mais recentemente Gluconobacter, apresentam flagelos polares, e são incapazes de oxidar o ácido acético, devido à ausência do ciclo completo dos ácidos tricarboxílicos.   
Outra característica interessante de algumas espécies do grupo das bactérias acéticas, aeróbias estritas, é a capacidade para sintetizar celulose. A celulose formada não difere significantemente da celulose dos vegetais. 
O A. xylinum forma sobre a superfície de um meio líquido, uma capa de celulose, o que pode ser uma forma do organismo assegurar a sua permanência na superfície do líquido, onde o O2 está mais disponível. 
Características gerais do gênero Acetobacter  

As bactérias do gênero Acetobacter são bastonetes elipsoidais, retos ou ligeiramente curvos. Quando jovens são Gram negativos e as células idosas são Gram variáveis. Apresentam a capacidade de oxidar a molécula do etanol e do ácido acético a CO2 e H2O (superoxidação). São comumente encontradas em frutas e vegetais e estão envolvidos na acidificação bacteriana de sucos de frutas e bebidas alcoólicas, cerveja, vinho, produção de vinagre e fermentação de sementes de cacau.   
Os Acetobacter são capazes de fermentar vários açúcares, formando ácido acético, ou ainda, utilizam este ácido como fonte de carbono, produzindo CO2 e H2O.
As espécies capazes de oxidar o ácido acético, estão subdivididos em dois grupos, a saber: a) organismos capazes de utilizar sais de amônio como única fonte de nitrogênio, e b) um outro grupo sem esta capacidade.  

A espécie representativa do gênero Acetobacter é o Acetobacter aceti, que é capaz de utilizar sais de amônio como única fonte de nitrogênio, juntamente com outras espécies, tais como, Acetobacter mobile, Acetobacter suboxidans, etc.   

Características gerais do gênero Gluconobacter  

As bactérias acéticas deste gênero são bastonetes elipsoidais Gram negativas ou Gram positivas fracas quando as células estão envelhecidas. As células desse gênero apresentam-se em pares ou em cadeias. São aeróbios estritos e oxidam a molécula do etanol a ácido acético.   
O nome Gluconobacter vem da característica do gênero de oxidar a glicose em ácido glucorônico. A espécie representante deste gênero é o Gluconobacter oxydans, encontrado em alimentos, vegetais, frutas, fermento de padaria, cerveja, vinho, cidra e vinagre.   
Fatores de crescimento: As espécies do gênero Acetobacter tem algumas exigências nutricionais, tais como algumas vitaminas do complexo B, a saber, tiamina, ácido pantotênico e ácido nicotínico. Além disso, algumas espécies demonstram a necessidade do ácido p-aminobenzóico. As necessidades vitamínicas podem ser supridas com o uso de água de maceração do milho, extrato de leveduras, lisado de leveduras, malte ou extrato de malte.

Algumas espécies necessitam que sejam colocados no meio de cultura aminoácidos como fontes de nitrogênio. Por outro lado, Acetobacter oxydans, Acetobacter rancens e Acetobacter melanogenus não necessitam de valina, cistina, histidina, alanina e isoleucina.

Mecanismo de fermentação

Bioquimicamente, os Acetobacter realizam processos catabólicos e anabólicos por aerobiose e anaerobiose. É de interesse industrial o catabolismo oxidante aeróbio de álcoois e açúcares, realizado por microrganismos, usados na produção de ácido acético ou de vinagre.  
O mecanismo de produção do ácido acético ocorre em duas etapas:   

1º) É formado o acetaldeído por oxidação; 

2º) O acetaldeído é convertido a ácido acético: (75% do acetaldeído é convertido a ácido acético e os 25% restantes a etanol)

Produção do Vinagre:  

Para a produção do vinagre, são utilizados membros do gênero Acetobacter. A bactéria Acetobacter aceti utiliza o etanol, produzindo ácido acético, por isso é de grande interesse tecnológico. Outras espécies como o Acetobacter suboxydans, Acetobacter melanogenus, Acetobacter xylinum e Acetobacter rancens comportam-se de modo semelhante, desde que sejam adicionados ao meio, inicialmente em pequenas quantidades de glicose, frutose, glicerol ou manitol.