Milena R. Macitelli & Ulysses Fagundes Neto
Introdução
Os primeiros trabalhos sobre gastrite foram
realizados em material de necrópsia e, posteriormente, em material obtido no
ato cirúrgico. O resultado dessas observações foi sempre contestado, em razão
do tipo de material analisado.
A contestação deveu-se a dois fatores
principais, a saber: 1- o material poderia estar prejudicado pelo fenômeno de
autólise; 2- os materiais provinham de pacientes com afecções gástricas de
diferentes etiologias.
A partir da década de 1940 com a introdução da
biópsia per oral, e depois, pela endoscopia com biópsia dirigida, tornou-se
possível a realização de inúmeras pesquisas, cujas conclusões pasaram a ser contestadas
ou aceitas com restrição. O principal motivo destas controvérsias residia na
falta de correlação entre os achados endoscópicos X achados histopatólogicos X
manifestações clínicas. Como não se conheciam os agentes etiológicos e/ou a história
natural da doença em questão, os achados da mucosa gástrica eram, de uma maneira
geral, considerados como normais ou consequência do processo natural do
envelhecimento.
O uso progressivo do termo gastrite e o
mistério criado ao seu redor provocaram a descaracterização da doença como
entidade nosológica. A utilização abusiva pelos patologistas dos termos: gastrite
aguda, gastrite crônica e gastrite superficial, extrapolados
para conceitos clínicos geraram interpretações equivocadas quanto ao menor ou
maior grau de gravidade e quanto a evolução da doença.
Gastrite, na verdade, faz parte do conjunto das
doenças pépticas e é uma patologia de relevância importante por diversos
motivos. A doença, juntamente com a úlcera péptica, possui uma elevada
morbidade e normalmente é passível de tratamento. Além disto, algumas formas de
gastrite crônica e grave podem destruir elementos da mucosa gástrica,
resultando em gastrite atrófica e metaplasia intestinal, que podem ser lesões pré-neoplásicas.
Assim como outras doenças na infância, a gastrite pode
acarretar, a longo prazo, prejuízos de diferentes intensidades para o paciente.
Vale ressaltar que apesar da gastrite e da úlcera péptica serem entidades
clínicas estudadas separadamente, muitas vezes fazem parte de uma doença de
continuidade.
História
A primeira grande descoberta no campo das doenças
gástricas foi a descrição de câncer gástrico pelos persas em 1000 DC. No mesmo
período, descrições de doenças gástricas não-neoplásicas, principalmente
gastrite, eram subjetivas devido às limitações da época. A inflamação da mucosa
gástrica foi nomeada pela primeira vez como "gastrite" pelo médico
alemão George Ernst Stahl em 1728.
Secreções gástricas
O estômago secreta inúmeras substâncias que são de fundamental importância para o funcionamento normal do trato digestivo, a saber
(Figuras 1 e 2):
• Água
• Ácido
• Bicarbonato
• Eletrólitos: Cl-, Na+ e K+
• Mucinas
• Enzimas que são ativadas no pH ácido (pepsinas
e lipase)
• Fator intrínseco das células parietais
Figura
1- Substâncias e hormônios secretados pelo estômago envolvidos na produção de
HCl pelas células parietais. CCK- colecistoquinina; CNS- sistema nervoso
central.
Figura
2- Autoregulação da secreção ácida. Os alimentos estimulam a liberação da
gastrina pelas células G. A gastrina estimula as células enterocromafins a
secretarem histamina. A célula parietal contém receptores para gastrina,
histamina e acetil-colina, substâncias que estimulam a produção do HCl. O
aumento da produção de HCl promove a liberação da somatostatina, que inibe a
liberação da gastrina.
Definição
Gastrite é uma lesão benigna decorrente da quebra da
barreira mucosa, acarretando alterações macro e microscópicas da mucosa
gástrica, associadas a uma resposta inflamatória. A mucosa gástrica possui
células que produzem ácidos e enzimas (que auxiliam na quebra do alimento e
digestão) e muco (que protege a mucosa do ácido). O desequilíbrio entre as
forças defensivas e agressivas da barreira mucosa é responsável pela formação
das lesões. Quando a mucosa gástrica está inflamada, produz menos ácido,
enzimas e muco.
Mecanismos de defesa
O estômago possui uma série de mecanismos de defesa
contra as agressões do meio ambiente com a função de proporcionar as condições
ideais para a ocorrência dos procesos de digestão e absorção que irão se dar no
intestino delgado. Os principais mecanismos de defesa estão a seguir
discrimados:
Pré-epiteliais: Elevadas concentrações de glicoproteina da mucosa
(muco) e bicarbonato, formam uma camada surfactante (hidrófoba), denominada
BARREIRA MUCOSA – a qual fornece proteção contra fatores agressivos na cavidade
gástrica (Figura 3).
Figura 3- Microanatomia da mucosa gástrica indicando o gradiente de pH promovido pela barreira mucosa.
Muco: secretado pelas células mucosas superficiais,
é uma glicoproteina que recobre a superfície epitelial como um gel espesso,
serve como uma camada de água imóvel, que lentifica a difusão retrógrada dos
íons de hidrogênio em aproximadamente 4 vezes.
O bicarbonato (íons) secretado pelas células mucosas
superficiais, neutraliza os ácidos, mantendo normalmente um gradiente de pH de
1 para 2 no lúmen e de 6 para 7 na superfície epitelial. Este gradiente de
valores do pH é extremamente importante porque é o responsável pela atividade
péptica. A pepsina é inativada em pH 5 e irreversivelmente inativada em pH 7.
Epiteliais: junções firmes entre as células, trocas iônicas
intracelulares e capacidade de regeneração epitelial.
A regeneração da mucosa ocorre com a recuperação de
áreas descobertas, pela migração de células mucosas da superfície ao longo da
membrana basal, de regiões mais profundas para substituir as células
danificadas, logo após a lesão.
A divisão e a regeneração celulares ocorrem depois
de alguns dias, para produzir novas células epiteliais a partir de células-tronco.
Pós-epiteliais: fluxo sangüíneo e síntese de prostaglandinas.
O fluxo sangüíneo mucoso distribui oxigênio, nutrientes
e bicarbonato e remove o ácido retrodifundido. Se o fluxo sangüíneo for
reduzido em mais de 50%, a mucosa se torna mais vulnerável à lesão.
As prostaglandinas produzidas localmente têm um
papel importante na defesa pois inibem a secreção ácida, estimulam a secreção
de muco e bicarbonato e aumentam o fluxo sangüíneo e a renovação celular.