quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (44)

3 - A consolidação da tradição em Pesquisa: Expandindo as fronteiras do “Tratado de Tordesilhas” da ciência (Parte 3)

3.1- A criação da Unidade Metabólica de estudos sobre Diarreia no Hospital Umberto Primo: desvendando as perdas hidroeletrolíticas fecais, as intolerâncias alimentares e adquirindo os devidos conhecimentos para solucionar os problemas com eficácia (continuação)

Com a finalidade de apenas exemplificar o vasto conjunto dos conhecimentos científicos obtidos, seguem abaixo alguns resumos, dentre as inúmeras outras publicações em periódicos indexados, que resultaram deste fantástico esforço de um grupo de jovens idealistas profissionais da saúde que eu tive o prazer e a honra de liderar.










 
Vale enfatizar também que os conhecimentos obtidos na Unidade Metabólica resultaram na elaboração de teses de Mestrado e Doutorado de alunos de Pós-Graduação, que sob minha orientação, foram apresentadas e aprovadas no programa de Pós-Graduação em Pediatria da EPM/UNIFESP, abaixo discriminadas:


Teses de Mestrado


1- Cleide de Holanda Fernandes
Fatores de risco associados à persistência da diarreia por Escherichia coli enteropatogênica clássica - EPEC. 1997. Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


2- Célia Regina Moreira
Intolerância à lactose em lactentes hospitalizados com diarreia aguda por Escherichia coli enteropatogênica clássica. 1996. Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


3- Sandra de Martini Costa 
Ultraestrutura do intestino delgado na diarreia persistente. 1996. Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


4- Rose Terezinha Marcelino 
Teste do H2 no ar expirado no diagnóstico do sobrecrescimento bacteriano do intestino delgado. 1995. Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


5- Jacy Alves Braga de Andrade 
Letalidade em lactentes com diarreia persistente: fatores de risco associados ao óbito. 1995. Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


6- Carlos Alberto Garcia Oliva
 Diarreia aguda associada à Escherichia coli enteropatogênica clássica: estudo clínico e metabólico. 1994. Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


7- Jacira Omena Torres de Oliveira
Mortalidade em crianças hospitalizadas com diarreia aguda: fatores de risco associados ao óbito. 1994. Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


8- Domingos Palma
Diarreia aguda: perdas hídricas fecais em lactentes hospitalizados e sua correlação. 1993. Mestrado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


Teses de Doutorado


1- Jacy Alves Braga de Andrade 
Estudo ultraestrutural da interação de amostras de Escherichia coli entreroagregativa (EAEC) com mucosa intestinal humana preservada in vitro: sugestão de invasão como fator de virulência. 2001. Doutorado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


2- Célia Regina Moreira
Estudo da interação de amostras de Escherichia coli enteroagregativa com mucosa intestinal de coelho vivo. 2001. Doutorado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


3- Carlos Alberto Garcia Oliva 
Balanços metabólicos de lactentes hospitalizados com diarreia aguda: comparações entre fórmulas com e sem lactose na realimentação. 1997. Doutorado em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria - Universidade Federal de São Paulo, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ulysses Fagundes Neto.


Como tudo na vida tem início, meio e fim, o HUP infelizmente, por falta de financiamento adequado dos órgãos da saúde pública, em junho de 1993, teve que encerrar suas atividades médico-assistenciais deixando, portanto, de prestar um serviço de inestimável valor à nossa população que necessita da atenção pública. Até os dias atuais os prédios do complexo hospitalar, chamado “Cidade Matarazzo” ocupam uma área de aproximadamente 27000 m2, em uma região central e nobre da cidade de São Paulo, a uma quadra da Avenida Paulista, encontram-se sem destino definido. Passados 22 anos do fechamento do HUP, o espaço tem servido para algumas atividades culturais esporádicas que não têm qualquer relação com as questões da saúde, como por exemplo esta última exposição de artes plásticas, realizada de setembro a outubro de 2014, denominada “Made by... Feito por Brasileiros.


Os prédios antigos que ainda ostentam as marcas do tempo e do abandono ganham energia e vitalidade com a chegada da arte contemporânea, proporcionando um novo olhar sobre as edificações. Importantes nomes da cena contemporânea mundial, como Adel Abdessemed, Joana Vasconcelos, Francesca Woodman, Tony e Kenny, ao lado de consagrados nomes da arte contemporânea brasileira, entre eles Tunga, Henrique Oliveira, Iran do Espírito Santo, Nuno Ramos e Vik Muniz, marcaram presença com suas obras (Figuras 12-13-14-15-16).

 

Figura 12- Instalação no portão de entrada do HUP.



Figura 13- Painel no interior do HUP.



Figura 14- Painel no interior do HUP.

 

Figura 15- Instalação no interior de uma das enfermarias de Pediatria do HUP.



Figura 16 - Instalação em frente ao prédio da Pediatria do HUP.


 Finalmente, mas não menos importante, este meu reencontro com o HUP em outubro de 2014 despertou em mim a emoção incontida das lembranças de saudosas memórias. Digo reencontro porque quando criança muitas vezes acompanhei meu avô Ulysses, de longa e sempre lembrada memória, para atender seus pacientes lá internados. Naquela época, na década de 1950 a avenida Paulista era ornamentada pelos monumentais palacetes pertencentes aos chamados “Barões do Café” e em seu leito carroçável circulavam os tradicionais bondes da linha 3 Avenida (Figuras 17-18-19).





Figuras 17-18-19- Algumas imagens da Avenida Paulista na década de 1950, na última delas pode-se observar o bonde da linha Avenida 3.


Além disso, minhas filhas Juliana e Marina nasceram na Maternidade Filomena Matarazzo, respectivamente em 26 de fevereiro de 1974 e 18 de junho de 1975. Eu, durante vários anos na década de 1970, tive a felicidade de trabalhar com os Drs. Domingos Delascio e Pedro Paulo Monteleone, atendendo na sala de parto os recém-nascidos de suas clientes varando madrugadas intermináveis. Relembrar todo este passado cheio de vivencias inesquecíveis, em algumas horas de passeio contemplando a beleza dos trabalhos dos nossos artistas plásticos, trouxe-me uma alegria imensa por ter sido protagonista de uma história repleta de paixão arrebatadora. 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (43)

3- A consolidação da tradição em Pesquisa: Expandindo as fronteiras do “Tratado de Tordesilhas” da ciência (Parte 3)

3.1- A criação da Unidade Metabólica de estudos sobre Diarreia no Hospital Umberto Primo: desvendando as perdas hidroeletrolíticas fecais, as intolerâncias alimentares e adquirindo os devidos conhecimentos para solucionar os problemas com eficácia

Na década de 1980, diarreia aguda e persistente ainda se constituíam em seríssimos problemas de saúde pública no país, eram, sem dúvida alguma, uma das principais causas de morbidade e mortalidade em crianças menores de 5 anos de idade, acarretando a necessidade de internação por desidratação e agravo nutricional. A maioria dos leitos pediátricos dos hospitais públicos eram ocupados por pacientes portadores destas enfermidades. Em geral as internações se prolongavam em virtude das inúmeras intolerâncias alimentares decorrentes das ações fisiopatológicas dos agentes enteropatogênicos sobre a mucosa do intestino delgado provocando graves deficiências nas funções digestivo-absortivas dos lactentes de baixa idade. Estas disfunções geravam um ciclo vicioso, posto que além das perdas hidroeletrolíticas fecais por ação do agente enteropatogênico, as perdas nutricionais concomitantes provocavam agravo do estado nutricional, gerando uma situação caótica que se retroalimentava. Fazia-se de crucial importância conhecer com riqueza de detalhes quais eram estas perdas, isto é, poder identificar o que era consequência da ação do agente etiológico separadamente das perdas nutricionais decorrentes das intolerâncias alimentares. Este dilema vivia me atormentando o pensamento pois já havíamos adquirido os conhecimentos teóricos de ambas as situações, agente enteropatogênico-intolerância alimentar, porém não conseguíamos mensurar com exatidão as perdas fecais de água, eletrólitos e nutrientes dos nossos pacientes, as avaliações eram bastante subjetivas. Este desconhecimento dificultava sobremaneira a proposta de uma conduta terapêutica ótima, era necessário desvendar este mistério aparentemente insolúvel. 

Foi, então, nesta situação extremamente angustiante que surgiu um convite desafiador. Ele veio por parte do Prof. Dr. Domingos Palma, ex-residente de Pediatria do Hospital São Paulo (HSP), à época responsável pela direção do Serviço de Pediatria do Hospital Umberto Primo (HUP). O convite se referia para ser o Coordenador do Serviço de Pediatria do HUP com ênfase prioritária na minha especialidade. O HUP era uma instituição filantrópica de direito privado sem fins lucrativos, havia sido fundado em fins do século XIX, que funcionava como centro de referência terciário de pacientes portadores de patologias de alta complexidade (Figuras 1-2-3).

Figura 1- Vista aérea do complexo HUP na década de 1980. Ao fundo à esquerda a antena da TV Gazeta situada na Avenida Paulista 900.

Figura 2- Vista da entrada principal do HUP na década de 1980.

Figura 3- Vista da fachada da Maternidade Filomena Matarazzo em outubro de 2014.

Visitei o hospital para conhecer o serviço e verifiquei que lá abria-se uma enorme janela de oportunidades para desenvolver um trabalho de vulto, inclusive não somente voltado ao ensino e à assistência, mas também à pesquisa, pois diferentemente do HSP, onde os leitos pediátricos eram em número restrito, no HUP havia uma abundância de leitos, e, além disso, casos de diarreia aguda e persistente eram altamente prevalentes, e não havia nenhum especialista devidamente treinado para enfrentar tal demanda. Dr. Palma sabedor das dificuldades quanto à disponibilidade de leitos pediátricos para internar nossos pacientes no HSP, e, interessado em poder proporcionar atenção médica de cunho acadêmico procurou-me para oferecer a possibilidade de criarmos no HUP uma Unidade Metabólica de Cuidados em Diarreia.  Tratava-se de um convite irrecusável pois vinha exatamente de encontro aos meus anseios, e, portanto, foi imediatamente aceito. Tornava-se, agora, necessário discutir as bases de implantação deste novo Serviço, tanto do ponto de vista administrativo, assistencial, como também de ensino pois havia programa de residência médica em pleno funcionamento, e em breve futuro criar condições para realizar pesquisa de alto valor científico.

Desde o ponto de vista administrativo estava sendo criado um serviço afiliado ao Departamento de Pediatria da EPM, à semelhança do que se observa em outros países, em particular nos Estados Unidos, com excelentes resultados. O Conselho do Departamento de Pediatria, sob a presidência do Prof. Dr. Fernando Nóbrega, apoiou por unanimidade nossa proposta, e assim esta ligação tornou-se oficialmente estabelecida. Tratava-se de um projeto pioneiro e uma excelente oportunidade de ver estendida a influência e o prestígio científicos da EPM extramuros, obtendo-se dividendos recíprocos, ambas as instituições passariam a se beneficiar desta iniciativa, pois criavam-se oportunidades para que docentes, alunos e residentes de ambas as instituições viessem a usufruir de um profícuo intercambio.   
  
É verdade que muitos obstáculos teriam que ser vencidos até que conseguíssemos alcançar nosso objetivo final, a implantação de unidade de assistência médica de alto nível de qualidade, porque a infraestrutura não era totalmente adequada, os pacientes permaneciam em grandes enfermarias, o pessoal de saúde, de uma maneira geral, não tinha treinamento específico, a contaminação intra-hospitalar era alta, mas havia uma grande boa vontade em querer aprender para assistir da melhor forma possível e desejável nossos pacientes. Enfim, tudo consistia em um grandioso e estimulante desafio a ser enfrentado.

Uma vez iniciado nosso trabalho, nossa primeira missão foi convencer a direção do hospital a construir fisicamente a unidade metabólica. Ao invés de grandes enfermarias, para evitar a infecção cruzada, era necessária a construção de pequenas unidades com apenas, no máximo, 4 leitos para lactentes, totalmente isolados do resto da unidade pediátrica geral, incluindo neste local um expurgo para confinar as fezes dos pacientes de tal forma a impedir a contaminação a outros pacientes. Estas miniunidades funcionavam de forma independente, com corpo de enfermagem especificamente treinado para preservar o isolamento do material excretado e com os devidos cuidados de higiene na manipulação dos pacientes. Uma vez construída a unidade de cuidados de tratamento de diarreia eu a batizei com o nome do meu grande mestre Horácio Toccalino (Figuras 4-5-6-7).

Figura 4- Minha foto na entrada da Unidade Metabólica de Tratamento de Diarreia “Dr. Horácio Toccalino” em meados de 1992.


Figuras 5 & 6- Interior de uma das salas da Unidade Metabólica, aonde havia isolamento entérico para evitar contaminação cruzada.

Figura 7- Minha foto em frente ao que foi a Unidade Metabólica, feita em outubro de 2014, durante minha visita à exposição “Made by... Feito por Brasileiros”.


Na prática a unidade metabólica mostrou-se plenamente satisfatória, pois, pudemos implantar a cama metabólica (os residentes a apelidaram de cama diabólica devido ao imenso trabalho que era demandado para fazer os controles das perdas e manter o paciente adequadamente colocado na mesma por longos períodos) para mensurar com precisão as perdas hídricas e eletrolíticas. Além disso, passamos a ter a colaboração da Microbiologia comandada pelo Prof. Trabulsi, o que nos permitiu estabelecer uma associação direta entre as perdas fluidas e o agente enteropatogênico. Para que pudéssemos analisar os dados obtidos e deles obtermos informações de valor científico elaboramos uma planilha de controle dos pacientes com profundo grau de detalhamento das variáveis clínicas (Figuras 8-9-10-11).
Figura 8- Foto das tradicionais reuniões com os residentes para discutir os casos dos pacientes internados no pátio central do Serviço de Pediatria, no início da década de 1990. Estou sentado no banco de pedra ladeado à esquerda por Dr. Jairo Cesar dos Reis e à minha direita Dr. Carlos Alberto Garcia Oliva. 

Figura 9- Foto do mesmo ângulo da anterior do pátio do Serviço de Pediatria esvaziado de pessoas com uma instalação da exposição “Made by... Feito por Brasileiros”.

Figura 10- Foto de outro ângulo do pátio do Serviço de Pediatria esvaziado de pessoas com uma instalação da exposição “Made by... Feito por Brasileiros”.

Figura 11- Foto das tradicionais reuniões com os residentes para discutir os casos dos pacientes internados no pátio central do Serviço de Pediatria, obtida de outro ângulo.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (42)

A consolidação da tradição em Pesquisa: Expandindo as fronteiras do “Tratado de Tordesilhas” da ciência (parte 2)


2- O vitorioso esforço para implantar a Investigação Experimental

Em 1979, logo após a minha volta do Pos-Doc em Nova Iorque, aonde fui aprender as técnicas da perfusão intestinal e os conhecimentos da Biologia Celular em Microscopia Eletrônica de Transmissão, senti a enorme necessidade de implantar no nosso meio a experiência adquirida no exterior. A vivência em um país desenvolvido trouxe-me um ensinamento muito alentador e ao mesmo tempo me provocou um grande desafio. Os países ricos, de uma maneira geral, dispõem de tecnologia altamente sofisticada e por sua própria condição de riqueza não apresentam os dramáticos problemas médico-sociais decorrentes do subdesenvolvimento e da pobreza extrema. Por outro lado, os países pobres possuem pouca tecnologia e, em geral, as verbas disponíveis para solucionar seus problemas sociais são insuficientes, quer seja por incúria, descaso e/ou incompetência dos governantes. Por esta razão suas populações sofrem as consequências diretas desta situação, as quais são refletidas nas elevadas prevalências do binômio diarreia-desnutrição, um ciclo vicioso que se torna praticamente insolúvel. Neste aspecto, nossa condição é bastante peculiar, pois possuímos alguma tecnologia avançada em determinadas áreas do saber, mas, por outro lado, também temos uma parcela significativa da nossa população vivendo em condições indignas de salubridade. Esta particularidade sempre me estimulou para assumir a vanguarda, em várias frentes de pesquisa relacionadas ao problema da injustiça social vigente em nosso país, na busca de alguma saída para contribuir na solução destas graves nódoas médico-sociais. Foi por esta sensibilidade humanística que meu foco de pesquisa sempre enfatizou a produção de conhecimentos que de alguma forma pudesse vir a minimizar, e, idealmente, porque não dizer, batalhar para extirpar de vez, a existência desta excrecência denominada diarreia-desnutrição. Aprendi ao longo da minha carreira que devemos sempre, quando não é possível alcançar o ideal, perseguir o melhor possível, mas sem nunca nos esquecermos de lutar perseverantemente em busca de conquistar o ideal.

Tendo em mente estes princípios decidi firmemente colocar em prática a conciliação da investigação experimental, utilizando a tecnologia avançada a mim disponível, com o prosseguimento da linha de pesquisa clínica anteriormente adquirida e já devidamente consolidada, a qual, inclusive agora, mais do que nunca, deveria ser revitalizada. 

Para implantar as técnicas de perfusão intestinal era necessária a aquisição das bombas de perfusão, equipamentos essenciais para tal empreitada. Para conseguir dispor das bombas de perfusão elaborei um projeto de pesquisa que foi submetido à FAPESP e rapidamente aprovado. Este primeiro êxito nos permitiu obter todo o equipamento necessário para colocarmos em prática aquilo que havia sido aprendido no exterior. Passamos, então, a realizar projetos de pesquisa da mais alta vanguarda científica. Com muita criatividade fomos desenvolvendo modelos de investigação experimental totalmente inéditos no nosso meio, e mesmo, no âmbito científico internacional.

Inicialmente, tratamos de pesquisar uma possível ação enterotoxigência do Campylobacter jejuni, que resultou positiva, e, mais ainda, este estudo redundou nas primeiras, de outras posteriores, teses de Mestrado e Doutorado, utilizando a técnica de perfusão intestinal em ratos. Este trabalho foi realizado pelo microbiologista chileno Eriberto Fernandez Jaramillo, professor da Universidad Austral de Chile, em Valdivia. Logo a seguir, devido ao sucesso da metodologia criada foi a vez de se estudar a ação enterotoxigênica das cepas enteropatogênicas clássicas de Escherichia coli, que resultou na tese de Doutorado do Dr. Fernando Fernandes.

O sucesso da metodologia contagiou outras áreas do conhecimento e despertou o interesse do Prof. Francisco Figueiredo, docente da Disciplina de Nefrologia. Essa feliz associação possibilitou a criação de novos avanços na metodologia, a partir do estudo da função renal dos ratos enquanto submetidos à perfusão intestinal. Estes novos conhecimentos nos permitiram trabalhar em condições técnicas mais controladas e fisiológicas, o que resultou na tese de Mestrado da sua aluna Dra. Areuza Vianna.

Estudos de perfusão intestinal em ratos passaram a ser praticamente uma rotina em nosso laboratório de investigação experimental, resultando em várias publicações em periódicos indexados. Além disso, outras teses de Mestrado e Doutorado se sucederam com a aplicação dos mais diferentes modelos experimentais, tais como, o transporte intestinal de água, sódio e glicose utilizando como solução de perfusão as diferentes soluções de hidratação oral existentes no mercado, e também, o transporte transepitelial das acima referidas substâncias utilizando como solução de perfusão a água de coco nos mais diversos períodos de maturação do fruto, frutos esses obtidos tanto no litoral, na praia da Atalaia Nova em Sergipe, como no interior do Brasil, em Britânia, Goiás. Estes trabalhos resultaram na tese de Doutorado da Profa. Elisabete Kawakami, e nas teses de Mestrado da médica Ana Amélia Pontes de Camargo e da biomédica Renata Vigliar.

A outra metodologia, ou seja, a microscopia eletrônica de transmissão para estudar a morfologia ultraestrutural do intestino delgado nas mais variadas situações clínicas de diarreia, aguda, persistente e crônica, foi imediatamente implementada, visto que nossa instituição dispunha de um excelente microscópio eletrônico de transmissão Zeiss, de última geração para a época. Passamos a publicar trabalhos absolutamente inéditos a respeito das alterações ultra-estruturais do intestino delgado em nossos pacientes, nas mais importantes revistas nacionais e internacionais da Gastroenterologia Pediátrica (Figuras 27-28-29-30-31).
 
Figura 27- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de transmissão de um paciente portador de diarreia persistente evidenciando profundas alterações do enterócito, diminuição na altura e no número das microvilosidades, distorção das mitocôndrias e inchação do retículo endoplásmico.

Figura 28- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de transmissão de um paciente portador de diarreia persistente evidenciando profundas alterações do enterócito, com a presença de um enorme corpo multivesicular no interior do citoplasma.


Figura 29- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de transmissão de um paciente portador de diarreia persistente evidenciando profundas alterações do enterócito e a presença de nichos de EPEC firmemente aderidos no polo apical do enterócito.


Figura 30- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de transmissão de um paciente portador de diarreia persistente evidenciando profundas alterações do enterócito  fusão das microvilosidades formando tufos.

Figura 31- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de transmissão de um paciente portador de diarreia persistente evidenciando profundas alterações do enterócito com diminuição das microvilosidades e vacuolização do citoplasma.

Posteriormente, com a aquisição do microscópio eletrônico de varredura ampliamos nosso escopo de pesquisa clínicas e experimentais, que resultaram em teses de Mestrado e Doutorado, e que posteriormente vieram a ser publicados em periódicos indexados nacionais e internacionais (Figuras 32-33-34-35-36).

 Figura 32- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de varredura evidenciando a superfície dos enterócitos de aspecto normal com clara delimitação entre os mesmos.

Figura 33- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de varredura de um paciente portador de diarreia persistente evidenciando a presença de gotículas de gordura não absorvida na superfície do enterócito.

 Figura 34- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de varredura de um paciente portador de diarreia persistente evidenciando total destruição da superfície absortiva do enterócito.

Figura 35- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de varredura de um paciente portador de diarreia persistente evidenciando a presença de uma crosta fibrino-leucocitária na superfície do enterócito. 


Figura 36- Ultramicrofotografia em microscopia eletrônica de varredura de um paciente portador de diarreia persistente evidenciando intensas alterações nas vilosidades dos enterócitos.

Ampliávamos, assim, dia a dia, de forma incessante as fronteiras dos conhecimentos sobre um problema de saúde pública que afeta algumas centenas de milhares de crianças em todo o mundo subdesenvolvido. Enfim, havíamos conseguido levar a cabo da forma mais exitosa possível a ideia da implantação da metodologia aprendida no exterior, era algo que estava definitivamente consolidado na nossa linha de pesquisa, todas as múltiplas barreiras haviam sido ultrapassadas, mais um valor era agregado ao nosso arsenal de investigação clínica e experimental.