terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Síndrome do Intestino Irritável: reações atípicas de alergia alimentar não associada com IgE (Parte 1)


Prof Dr Ulysses Fagundes Neto

A revista Gastroenterology em seu número de julho de 2019, publicou este pioneiro e muito estimulante artigo: Many patients with irritable bowel syndrome have atypical food allergies not associated with immunoglobulin E, de autoria Annette Fritscher-Ravens e colaboradores, que a seguir passo a resumir.

INTRODUÇÃO

A Síndrome do Intestino Irritável (SII) trata-se de um transtorno comum e universal com grande impacto sócio-econômico. Os alimentos, desde longa data, têm sido suspeitados como a causa dos sintomas da SII, mas a evidência tem permanecido escassa a despeito dos relatos do surgimento dos sintomas, após as refeições.  A exclusão da dieta dos alimentos conhecidos como os FODMAPs pode induzir ao alívio dos sintomas em alguns pacientes, porém, não parece ser superior às dietas padronizadas para a SII, baseadas em um estilo de vida balanceado, tais como: refeições regulares, evitar café, condimentos e alimentos gordurosos. Deve-se também considerar que a exclusão de alguns alimentos específicos, tais como o trigo ou o glúten, têm efetivamente resolvido o problema em alguns pacientes com a SII. Entretanto, investigações dietéticas não confirmaram de forma confiável, o papel patogênico dos alimentos, nem tão pouco permitiram discernir as alterações celulares ou fisiológicas causadoras dos sintomas. Consequentemente, a demonstração objetiva bem como a mensuração da resposta patológica do trato gastrointestinal a determinados alimentos específicos é altamente desejável para permitir uma aferição válida a respeito destes potenciais nutrientes alergênicos nos pacientes com SII. Além disso, também poderia levar a compreender a fisiopatologia de base e para identificar o alimento agressor, o que possibilitaria a escolha de uma dieta de exclusão baseada em evidência.
OBJETIVOS
No presente estudo, foi utilizado o endomicroscópio confocal a laser (ECL) como padrão para comprovar a reação aos alimentos em um grupo de pacientes portadores da SII. Além disso, procedimentos histológicos e moleculares foram utilizados para análises mais detalhadas dos mecanismos básicos da reação gastrointestinal aos alimentos neste transtorno controvertido e supostamente “funcional”.

MÉTODOS
Participantes
Pacientes que admitiam que seus sintomas estavam relacionados a ingestão alimentar e que preenchiam os critérios de Roma III para SII, e que apresentavam sintomas de moderados a intensos por ao menos um ano foram incluídos no estudo (Figura A).
Figura A- Desenho do presente estudo.

O presente estudo teve por foco a intervenção dietética randomizada duplo-cego nos pacientes com SII na avaliação da reação fisiopatológica, celular, imunológica e bioquímica, naqueles pacientes que se mostraram positivos aos antígenos alimentares (ECL positivos) versus nos pacientes (ECL negativos) ou controles sadios (CS).  O estudo se baseou hipoteticamente no princípio de que os pacientes relatavam sintomas diários da SII, que apresentavam alívio deles com a restrição de certos alimentos, e que estes alimentos quando ingeridos diariamente e regularmente seriam responsáveis pelos seus sintomas. Essas reações aos alimentos poderiam causar alterações fisiopatológicas na mucosa intestinal, possivelmente devido a uma alergia atípica.

Endomicroscopia e provocações alimentares.

Os seguintes eventos do ECL foram quantificados antes e após o teste de provocação, a saber:
1)   Densidade dos linfócitos intraepiteliais (LIE);
2) Rupturas epiteliais que provocaram vazamentos de fluoresceína para o interior do lúmen intestinal; 
3)   Presença de sinal fluorescente entre os enterócitos;
4)   Alargamento dos espaços intervilositários devido ao vazamento através da mucosa, com mudança de cor na imagem de negra para branca. 

Os pacientes receberam provocações alimentares sequenciais com 20ml de uma solução padronizada dos seguintes alimentos, a saber:  trigo, leite, soja, levedura ou clara de ovo e uma substância controle (água com policilane).

Endoscopia para a realização de biópsias duodenais e coleta de fluido duodenal
A endoscopia digestiva alta (EDA) foi realizada duas semanas antes das biópsias basais para a ECL. Um segundo lote de biópsias e de coleta de fluido foi realizada imediatamente após todas as exposições aos alimentos nos pacientes ECL negativos e CS, e após uma reação positiva nos pacientes ECL positivos, aproximadamente 10 minutos após a última provocação com  o antígeno alimentar.

RESULTADOS  
Foram incluídos no estudo 108 pacientes portadores da SII, 52% com diarreia (SII-D), 42% com sintomas mistos (SII-SM), 14% com constipação (SII-C); 76 pacientes revelaram-se ECL positivos e 32 pacientes foram ECL negativos. Reações tipicamente positivas estão ilustrados na Figura 1. 

As características dos 76 pacientes ECL positivos, suas reações aos diferentes antígenos alimentares e os 32 pacientes ECL negativos e os CS, estão apresentadas na Tabela 1.

Pode-se observar que a maioria dos pacientes  ECL positivos reagiram com o trigo (n=46, 60.5%) e os remanescentes reagiram com levedura (n=15, 20%), leite (n=7, 9.2%), soja (n=5, 6.6%) e clara do ovo (n=3, 4%). Deste grupo de ECL positivos, 9 pacientes reagiram com dois dos antígenos testados.

História Clínica dos Pacientes

História Clínica dos Pacientes
A histórica clínica dos pacientes e/ou de seus parentes de primeiro grau, mostrou uma elevada prevalência de transtornos atópicos nos pacientes ECL positivos, especialmente relacionados a alergenos inaláveis, não importando a quais antígenos alimentares eles reagiram (68.9% versus 38.3% versus 15.4% ECL positivos versus ECL negativos e CS respectivamente) (Figura 2).

Achados ECL 
Os achados basais ECL antes da administração de cada componente alimentar foram similares a despeito da localização no duodeno, mais distal ou proximal, a qual alimento foi aplicado ou se acaso tenha sido a primeira ou a última provocação alimentar, sempre quando a reação ao alimento foi negativa. Entretanto, caso a reação a qualquer dos componentes alimentares tenha sido positiva, aplicações posteriores dos alimentos foram suspensas, porque tal reação ocorreria e seria visualizada através do duodeno, invalidando testes posteriores pela ausência de um estado basal. O ECL foi retomado em outro momento se outro alergeno fosse suspeitado. 

Referência Bibliográfica  
1)  Annette Fritscher-Ravens e cols. Gastroenterology 2019; 157:109-118.  
2)  Queneherve L e cols. Gastrointest Endosc 2019; 89:626-36.  
3)  Martinez C e cols. Gut 2013; 62:1160-68.
4)  Halmos EP e cols. Gastroenterology 2014; 146:67-75.