terça-feira, 15 de maio de 2018

Alergia Alimentar: novos conhecimentos sobre um problema de elevada prevalência (Parte 2)

Ulysses Fagundes Neto

Este artigo baseia-se em uma revisão sobre Alergia Alimentarpublicada no J Allergy Clin Immunol 2018; 141:41-58, escrito porScott H. Sicherer e Hugh A. Sampson.



Diagnóstico

É muito importante ter-se em mente uma boa compreensão dos transtornos clínicos e seus respectivos sintomas a respeito das AAs para se poder alcançar um diagnostico apropriado. Os guias clássicos de conduta classificam as reações adversas aos alimentos, imunologicamente mediadas, de acordo com os presumíveis mecanismos fisiopatológicos primários, muito embora eles possam apresentar algumas variações. AAs são definidas diferentemente de outras reações adversas aos alimentos porque elas envolvem uma resposta imunológica. Portanto, reações adversas à alimentos, tais como, intolerância (intolerância à lactose), ou tóxicas (envenenamento alimentar), ou farmacológicas (cafeína), não se caracterizam como AAs. Em geral, no que concerne às AAs, existem mecanismos fisiopatológicos IgE-mediados, não-IgE mediados (mediados por células) ou mistos (IgE-mediados e mediados por células).      

Determinar se a causa presumível dos sintomas é atribuível à AA, e a qual alimento ou a quais alimentos, trata-se de uma tarefa altamente desafiadora e, deve-se também considerar que determinadas reações/sintomas podem ser equivocadamente confundidas com AA. Por exemplo, o envenenamento pela ingestão da toxina escombroide, a qual se encontra presente na carne apodrecida de peixe, cuja toxina desencadeia sintomas similares à liberação de histamina, ou respostas neurológicas, tal como a que ocorre na síndrome auriculotemporal, causada por alimentos que deflagram salivação excessiva e também resultam em vaso dilatação reflexa da face, ou a rinite gustatória, causada por alimentos picantes que resultam em rinorreia, todas estas reações podem mimetizar manifestações equivalentes a AA. É também notório que asma e rinite crônicas não devem ser tipicamente atribuíveis a reações alérgicas induzidas por alimentos. Inúmeras vezes certos alimentos são excluídos da dieta das crianças que sofrem de dermatite atópica, sem que haja uma clara indicação para tal, em virtude de uma falsa suspeição de que determinados alimentos tenham contribuído para o surgimento da lesão cutânea. Nestas circunstâncias tal conduta que pode causar consequências nefastas do ponto de vista nutricional, social e possivelmente imunológico para o paciente, o que se torna um fator negativo para uma abordagem diagnóstica criteriosa. Indiscutivelmente, alimentos podem ser reais deflagradores de AA, mas muitos outros deflagradores adicionais existem, incluindo irritantes, infecções e alergenos ambientais.

Indiscutivelmente o “teste” elementar mais importante para o diagnóstico da AA, está fundamentalmente baseado na história clínica. Para se estabelecer o diagnóstico, a história clínica deve ser avaliada no contexto acerca do conhecimento da epidemiologia e das manifestações clínicas da AA, e, deve-se também levar em consideração a compreensão de que transtornos que apresentam manifestações clínicas similares podem ser confundidos com AA. Por exemplo, consideremos uma criança de 3 anos de idade que apresenta queixa de urticária generalizada que foi deflagrada 15 minutos após a ingestão de amendoim. Caso nós tenhamos o devido conhecimento de que esta criança tem rotineiramente tolerado a ingestão de grandes quantidades de amendoim, que ela não é atópica, e que apresenta, no momento do exame, sintomas típicos de uma infecção viral e que a urticária vem persistindo há 7 dias, nós deveremos concluir que os sintomas não estão relacionados com a ingestão de amendoim, mas ao contrário, muito provavelmente a urticária está relacionada à infecção viral. Por outro lado, caso a história clínica permita saber que a criança apresentou dermatite atópica, e, também, alergia ao ovo anteriormente à ingestão do amendoim, e que esta foi sua primeira ingestão e que a urticaria foi tratada com anti-histamínicos e não cedeu, nós já deveremos estar altamente convencidos da existência de alergia ao amendoim. Essas conclusões estão baseadas na compreensão das probabilidades anteriores, tendo por princípio os riscos epidemiológicos e os detalhes da história clínica relatada; no primeiro caso, testes laboratoriais são desnecessários de serem realizados, enquanto que no último caso, estes testes devem provavelmente ser confirmatórios para alergia ao amendoim. Alguma informação diagnóstica adicional deve ser obtida pela seleção apropriada e respectiva interpretação dos testes, tais como, Prick-test, mensuração de IgE específica e/ou teste de provocação oral, os quais devem ser interpretados dentro do contexto da epidemiologia, fisiopatologia e história clínica associadas com os cenários clínicos criteriosamente considerados (Figura 3).
 Figura 3- Critérios de abordagem diagnóstica da AA.


Para uma melhor avaliação crítica da abordagem diagnóstica da AA, a tabela abaixo discrimina os dados mais confiáveis e as possíveis falhas concernentes ao diagnóstico de AA (Tabela 1). 




Manuseio das AA e recomendações educacionais
A Tabela 2, traz uma série de recomendações educacionais quanto ao manuseio e prevenção da AA.



A Figura 4 especifica as células envolvidas nos processos de dessensibilização, remissão e tolerância das AAs.

FIG 4. Cells involved in desensitization, remission, and tolerance. There are overlaps between the states of desensitization and sustained unresponsiveness (remission); thus far, there are no distinctive biomarkers to show which state starts at which time period. Mast cells and basophils play a role in desensitization. Direct in vivo evidence has been demonstrated in murine models, and human findings suggest comparable associations. Similarly, ‘‘remission’’ and ‘‘tolerance’’ are overlapping, and thus far, there are no clear biomarkers. Tolerogenic DCs, Treg cells, Breg cells, and effector cell/Treg and Breg cell ratios are present during remission and long-term tolerance. Distinct mechanisms responsible for the immune response shifting from a state of remission into long-term tolerance are not known. cAMP, Cyclic AMP; CTLA-4, cytotoxic T lymphocyte–associated protein 4; LAP, latency-associated peptide; PD-1, programmed cell death 1.

Conclusões

Está bem estabelecido que a prevalência de AA é alta, alcançando até 10% da população pediátrica, e, inclusive tem aumentado nas ultimas décadas. Inúmeros fatores de risco genéticos e ambientais têm sido identificados. Análises detalhadas quanto a via da sensibilização, a caracterização do alergeno e a resposta imunológica, fornecem maiores facilidades para o diagnóstico e o tratamento. O diagnóstico depende de uma combinação de conhecimentos quanto a epidemiologia e a fisiopatologia associados com a história clínica fornecida pelo paciente e os resultados dos testes laboratoriais. Entretanto, vale ressaltar que ainda é desconhecida a completa compreensão da causa do aumento da prevalência da AA, assim como é necessário desenvolver melhores abordagens diagnósticas e, também maximizar a segurança e a qualidade de vida do paciente durante o manuseio da AA. Torna-se também tarefa essencial a busca incessante de novas e melhores opções terapêuticas.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Alergia Alimentar: novos conhecimentos sobre um problema de elevada prevalência (Parte 1)


Ulysses Fagundes Neto

Este artigo baseia-se em uma revisão sobre Alergia Alimentar publicada no J Allergy Clin Immunol 2018; 141:41-58, escrito por Scott H. Sicherer e Hugh A. Sampson.


Introdução
Atualmente, encontram-se disponíveis dados demonstrativos de que a Alergia Alimentar (AA) tem apresentado um aumento significativo na sua prevalência nas últimas três décadas, e que são mais comuns em crianças em comparação com adultos. Sabe-se também que a lista de alergenos alimentares, embora esta não seja muito ampla, tem provocado sérios agravos para a saúde dos pacientes portadores de AA. Os principais alérgenos universalmente reconhecidos, entre outros menos comuns, são os seguintes, a saber: amendoim, frutos oleaginosos, peixes e frutos do mar, ovo, leite, trigo, soja e algumas sementes. Fatores de riscos genéticos, epigenéticos e ambientais têm sido elucidados de uma forma cada vez mais frequente, possibilitando a potencial elaboração de condições para aumentar as ações de prevenção, bem como a promoção de estratégias de tratamento tendo como alvo os indivíduos sob tais riscos. Investigações detalhadas a respeito da fisiopatologia das AAs têm revelado uma complexa interação da barreira epitelial, da resposta da imunidade da mucosa e, também sistêmica, a rota da exposição ao alergeno e o microbioma do hospedeiro, entre outros fatores que acabam por resultar em alergia ou tolerância. O diagnóstico da AA baseia-se acima de tudo na história clínica, testes de sensibilidade e testes de provocação oral.

Curso Natural da AA
O curso natural da AA na infância tem sido intensamente investigado e pode-se afirmar que algumas AAs são de duração transitória e apresentam um alto grau de resolução nas crianças, como por exemplo: leite (>50% entre 5 e 10 anos), ovo (>50% entre 2 e 9 anos), trigo (>50% aos 7 anos) e soja (>45% aos 6 anos) e uma continua tendência para a resolução ao alcançar a adolescência.  Por outro lado, algumas AAs apresentam uma característica típica de persistirem ou apresentarem uma baixa taxa de resolução na infância, tais como, ao amendoim (aproximadamente 20% aos 4 anos), aos frutos oleaginosos (aproximadamente 10%) e às sementes, peixes e frutos do mar, as quais também devem ser consideradas persistentes.

Teoria hipotética da AA

Várias hipóteses têm sido levantadas para explicar o aumento global da prevalência da AA. Atualmente, a hipótese da dupla exposição alergênica tem sido a mais aceita, a qual sugere que a sensibilização alérgica a um determinado alimento ocorre através da sensibilização cutânea em baixas doses, enquanto que o consumo precoce de alimento proteico induz tolerância oral. Essa hipótese foi desenvolvida após a publicação de estudos que demonstraram uma forte associação entre exposição alimentar, eczema e surgimento de AA (Figuras 1 e 2).
FIG 1. Integration of the vitamin D deficiency, hygiene, and dual-allergen exposure hypotheses. Sufficient levels of vitamin D, a diverse microbiota, and oral allergen exposure support the development of tolerance. Conversely, allergic sensitization is promoted through cutaneous exposure, reduced diversity of the microbiota, and vitamin D deficiency. Diminished microbial diversity and vitamin D deficiency are thought to interrupt the regulatory mechanisms of oral tolerance, with the latter also contributing to decreased epidermal barrier function. GI, Gastrointestinal; T-reg, regulatory T cells.

FIG 2. Interactions between the microbiota and innate and adaptive immune systems in tolerance induction within the mucosa. The gut microbiota has been shown to interact with the mucosal immune system at many levels to support the induction of tolerance. Microbially derived metabolites induce inflammasome activation in ECs, leading to release of IL-18 and antimicrobial peptide (AMP) secretion, thereby strengthening the epithelial barrier. ILC3-derived IL-22 also promotes the epithelial barrier. Macrophage-derived IL-1b promotes GM-CSF release from ILC3s, further promoting IL-10 and retinoic acid secretion by DCs, which are essential for induction of Breg and Treg cells. Mucosal DCs can be influenced directly by microbially associated metabolites, such as short-chain fatty acids (SCFAs) and histamine, which polarize cytokine production through G protein–coupled receptor (G-PCR) signaling. Bacterially derived ligands can directly activate DC pattern recognition receptors, in particular Toll-like receptor 2 (TLR2), also promoting IL-10 and retinoic acid secretion. Mucosal macrophages secrete large amounts of IL-10, thereby contributing to the tolerance state. In addition to the influence of immunoregulatory factors released by microbiota-exposed innate immune cells, on Breg and Treg polarization, the microbiota can also have direct effects on both Breg and Treg cells. Metabolites, such as SCFAs and histamine, promote polarization of these regulatory cells, and activation of Toll-like receptor 9 supports expansion of IL-101 Breg cells. cAMP, Cyclic AMP; CTLA4, cytotoxic T lymphocyte–associated protein 4; PD-1, programmed cell death 1.


Patogênese

Avanços significativos nos níveis dos conhecimentos básicos, translacionais e pesquisas clínicas, têm proporcionado novas visões nos mecanismos imunológicos causadores de AA e, portanto, proporcionam também novas sugestões terapêuticas e estratégias preventivas. O mecanismo comum que acarreta a alergia de vários alimentos baseia-se na quebra da tolerância clínica e imunológica ao alimento ingerido, a qual resulta em transtornos das reações IgE-mediadas e não-IgE mediadas, tais como: Esofagite Eosinofílica, Síndrome da Enterocolite induzida por proteína alimentar e Proctocolite induzida por proteína alimentar. A sensibilização para alergenos alimentares pode ocorrer através do trato gastrointestinal, da pele e, menos comumente, do trato respiratório, presumivelmente em conjunção com uma falha e/ou inflamação da função da barreira de permeabilidade.  A indução e a manutenção da tolerância aos antígenos alimentares requerem uma geração ativa de células T reguladoras para antígenos alimentares específicos, as quais são possivelmente influenciadas pelo microbioma residente do hospedeiro. 


quarta-feira, 2 de maio de 2018

Pseudo obstrução intestinal crônica (Parte 2)

Isabela Mazzei e Ulysses Fagundes Neto

A realização do estudo do trânsito intestinal permite visualizar alças intestinais dilatadas e lentidão na progressão do contraste (Figura 2).

Trânsito intestinal

Figura 2- Trânsito intestinal demonstrando alças do intestino delgado dilatadas na ausência de estenose e lentidão na progressão do contraste em um caso de POIC.

Vícios de rotação do intestino delgado principalmente em menores de 1 ano também podem ser caracterizados pelo estudo do trânsito intestinal.

Tomografia: este tipo de investigação de imagem também pode auxiliar na caracterização da POIC (Figura 3).


Figura 3- Imagem tomográfica das alças intestinais extremamente dilatadas. Ao lado fragmento de intestino delgado de aspecto hipotônico e dilatado, obtido por biópsia cirúrgica, de um paciente portador de POIC.

Diagnóstico histológico:  pode ser realizado por meio da biópsia profunda do intestino delgado e do cólon em microscopia óptica comum. O estudo pode ser complementado com a técnica da imuno-histoquímica e do estudo ultraestrutural que permite distinguir as formas miopáticas das neuropáticas. Deve-se também buscar possíveis anormalidades nas células intersticiais de Cajal.

Outros testes diagnósticos: há alguns outros testes diagnósticos que podem auxiliar no complemento da avaliação laboratorial da POIC, a saber:
  Eletrogastrografia – demonstra ausência de frequência dominante, permitindo diferenciar as formas miopáticas das neuropáticas.
  Manometria antroduodenal – diferentes amplitudes diferenciam as formas neuropáticas e miopáticas.




Este trabalho retrospectivo buscou avaliar a eficácia da manometria esofágica, antroduodenal e anorretal associada à cintilografia do esvaziamento gástrico.
A manometria esofágica revelou-se alterada em 73% dos casos sendo que 51% deles apresentaram-se com comprometimento grave que se relacionou com a necessidade da indicação da nutrição parenteral. Por outro lado, a manometria anorretal mostrou-se alterada em 59% dos casos e somente em 17% deles foram detectadas alterações graves.

Tratamento
O tratamento da POIC requer a formação de uma equipe multidisciplinar envolvendo diferentes profissionais da área da saúde, tais como, gastropediatra, cirurgião pediátrico, nutricionista, enfermeira e psicólogo entre outros.

Terapia nutricional
O tratamento da condição nutricional torna-se prioritário, posto que a imensa maioria dos pacientes apresenta grave comprometimento do seu estado nutricional.

Aqueles pacientes que possuem alguma motilidade intestinal podem se beneficiar de refeições líquidas contendo pequenos volumes. É praticamente necessária a utilização de suplementos nutricionais e, muitas vezes, a Nutrição Enteral pode ser tentada nos pacientes com acometimento do estômago e duodeno, pois este procedimento oferece menor número de complicações em relação à nutrição parenteral.

A Nutrição Parenteral está indicada quando o acometimento do trato digestivo é mais extenso, mesmo tendo em mente que o risco de um grande número de complicações pode ocorrer, e, dependendo das condições técnicas de infraestrutura do serviço médico, este risco pode variar de 20 a 60% dos casos.

Tratamento farmacológico: um dos pilares do tratamento farmacológico baseia-se na utilização dos medicamentos pró-cinéticos, abaixo discriminados:
-         Cisaprida
-         Eritromicina
-         Octreotidio
-         Tegaserode

Cisaprida
Este fármaco aumenta a motilidade antroduodenal e a tolerância à alimentação enteral. Trata-se de um eficaz agonista do receptor de serotonina, porém, devido aos seus potenciais efeitos colaterais indesejáveis foi retirada do mercado em alguns países por toxicidade cardíaca.

Eritromicina
Este antibiótico tradicional tem por função mimetizar a motilina, e deve ser utilizado em dose subantibiótica, porém, nos estados graves de gastroparesia altas doses fazem-se necessárias.

Octreotideo
Trata-se do procinético mais potente disponível atualmente, é análogo da somatostatina. Estimula a motilidade do intestino delgado, inibe o esvaziamento gástrico e a contratilidade da vesicula biliar. Também apresenta algum benefício no tratamento do sobrecrescimento bacteriano em adultos.

Tegaserode
Apresenta ação semelhante à da cisaprida, pois também é um agonista parcial do receptor de serotonina, utilizado no tratamento da constipação em adultos. Apresenta efeitos colaterais e cardiotoxicidade.

Prucalopride
Trata-se de um fármaco recentemente disponível indicado para tratamento de constipação em mulheres, não há suficiente conhecimento sobre sua eficácia na POIC.

Tratamento farmacológico auxiliar
  Antimicrobianos
- Antibióticos e antifúngicos em ciclos variáveis
  Antidepressivos triciclicos e gabapentina
  Neuromoduladores

Tratamento cirúrgico: (Figura 4)
   Jejunostomia ou enterostomia: redução da distensão e dos vômitos.
  Ressecções nos casos de distensão segmentar.
  Transplante intestinal.

Figura 4- A- Aspecto do colon dilatado durante a cirurgia; B- espécimen do colon submetido à colectomia sub-total com perda das haustras colônicas.