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terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Enfermidades Gastrointestinais Eosinofílicas abaixo da “cintura”

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista J Allergy Clinn Immunol publicou um artigo de revisão, em janeiro de 2020, intitulado “Eosinophilic gastrointestinal disease below the belt”, de Pesek R. e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

Introdução

As Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais são doenças raras do trato gastrointestinal causadas por inflamação alérgica e disfunção gastrointestinal. Inicialmente descritas em 1978, o reconhecimento destes transtornos  tem aumentado consideravelmente ao longo das últimas décadas. A Esofagite Eosinofílica a mais frequente delas, tem recebido a maioria das atenções, o que acarretou avanços significativos na compreensão dos mecanismos desta enfermidade, adoção de normas de conduta para seu diagnóstico e manejo,  e ensaios clínicos em andamento para fornecer opções terapêuticas mais amplas. As Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais, podem afetar outras partes do trato gastrointestinal, e incluem a Gastrite Eosinofílica, a Gastroenterite Eosinofílica e a Colite Eosinofílica, as quais, ainda permanecem menos compreendidas em comparação a Esofagite Eosinofílica. O presente artigo tem por objetivo fazer uma revisão dos conhecimentos atuais a respeito das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais.  

Esofagite Eosinofílica: Padrão Ouro

A Esofagite Eosinofílica originalmente considerada uma manifestação de refluxo gastroesofágico, atualmente é reconhecida como uma enfermidade imunologicamente mediada caracterizada por inflamação eosinofílica TH2-dirigida do tecido esofágico. A incidência e a prevalência da Esofagite Eosinofílica tem aumentado significantemente ao longo das duas décadas, e, a incidência atualmente estimada é de 10 para 100mil indivíduos e a prevalência entre 10 e 57 para 100mil. Avanços significativos têm sido alcançados a respeito dos mecanismos de base da enfermidade, a identificação dos endotipos e a padronização das medidas de desfecho. Os locus da suscetibilidade genética foram identificados como 5q22 e 2p23 os quais codificam para a TH2-promovedora da citocina tímica estroma da linfopoetina e a proteína calpaim-14 da barreira esofágica, assim como as variantes próximas dos genes STAT6 e LRRC32. Recentes estudos com perfis de transcrição utilizando espécimes de biópsias da mucosa esofágica, têm permitido que os pacientes sejam divididos em 3 endotipos, a saber: um grupo relativamente benigno, um grupo inflamatório, e um grupo fibroestenótico (Figuras 1 e 2).


Figuras 1 e 2- Espécime de biópsia esofágica evidenciando na Figura 1 aumento significativo de eosinófilos (acima de 15 por campo de grande aumento); a Figura 2 evidencia verdadeiro abscesso eosinofílico.

 

Ensaios terapêuticos no passado foram prejudicados pela falta de padronização da relação entre o laudo endoscópico e o desfecho histológico, fato este que impediu a aprovação de várias terapêuticas inovadoras. Nestes últimos 5 anos, uma variedade de ferramentas tem sido desenvolvidas como esforço para retificar esse tema. O índice de atividade da Esofagite Eosinofílica direciona as medidas para o desfecho de um determinado paciente, incluindo a qualidade de vida. A pontuação endoscópica da Esofagite Eosinofílica é largamente utilizada na avaliação dos achados endoscópicos, e, o sistema de pontuação histológica mensura de forma acurada as anormalidades histológicas.

As Enfermidades Eosinofílicas não esofágicas: situação atual

Ao contrário do esôfago, eosinófilos são residentes normais do trato gastrointestinal inferior, e números aumentados têm sido tradicionalmente associados com infestação parasitária, síndrome hipereosinofílica, alergia a drogas e alimentos ou doença inflamatória intestinal, porém, pode também se constituir em uma marca padronizada das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais. Inúmeros pacientes podem apresentar sintomas inespecíficos, tais como: dor abdominal, vômitos e/ou diarreia, e, considerando-se que as Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais são raras, outras enfermidades são frequentemente consideradas como primeira opção diagnóstica. Endoscopicamente, anormalidades variadas, tais como, nódulos, pólipos ou ulcerações, podem estar presentes, porém, os achados também podem ser sutis ou mesmo ausentes, o que pode evitar que as biópsias sejam realizadas. A Eosinofilia do trato gastrointestinal pode também ocorrer em múltiplos locais, aumentando a confusão diagnóstica. As Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas, tendem a ser condicionadas por um mecanismo similar ao TH2, com níveis mais elevados de IL-4, IL-5 e IL-13, do que nos indivíduos normais. A IgE não desempenha um papel central na patogênese da Esofagite Eosinofílica, e este também parece ser o caso, nos pacientes com as Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágica. Por outro lado, é interessante notar que um ensaio clínico utilizando omalizumab em pacientes com Gastrite Eosinofílica e Gastroenterite Eosinofílica, aqueles que foram assim tratados, apresentaram uma diminuição na contagem de eosinófilos no estômago e no duodeno, e, também, apresentaram uma melhoria nos escores dos sintomas clínicos. Salientando que embora a IgE não seja um efetor primário da enfermidade, poderia ter desempenhado um papel importante em um subgrupo de pacientes.

Os mecanismos da Colite Eosinofílica parecem ser mais complicados para serem elucidados. Isto se deve ao fato de poder haver substancial sobreposição com a Doença Inflamatória Intestinal, a qual pode apresentar-se com eosinofilia intestinal e aspectos clínicos semelhantes. Tudo indica haver diferenças especificas nas patogêneses, que podem diferenciar os pacientes entre essas duas enfermidades. Pacientes com Proctocolite Alérgica expressam a Eotaxina-2 de forma mais acentuada nos linfócitos intraepiteliais, e, demostram aumento da degranulação dos mastócitos em comparação com indivíduos controle ou mesmo em pacientes com Doença de Crohn ou Colite ulcerativa. Embora eosinófilos teciduais possam ser observados em ambos os casos, tanto em pacientes com as Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais como aqueles com Doença Inflamatória Intestinal, as Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais estão associadas a maior eosinofilia no sangue periférico, bem como níveis aumentados de citocinas que provocam a eosinofilia, em comparação com a Colite ulcerativa (Figuras 3 e 4).

Figura 3- Espécime de biópsia retal de paciente portador de Colite Alérgica evidenciando aumento significativo de eosinófilos na lâmina própria.

Figura 4- Espécime de biópsia retal em grande aumento de paciente portador de Colite Alérgica evidenciando aumento significativo de eosinófilos na lâmina própria e intraepetielial.

 

Tratamento das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas

O tratamento das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas, ainda permanece com limitações. Em pequenos grupos de pacientes, dietas a partir da eliminação de determinados alimentos tendem a beneficiar os pacientes e aplacar os sintomas clínicos  assim como as alterações histológicas, ainda que estas condutas possam ser menos efetivas nas Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais  não esofágicas do que as comprovadas na Esofagite Eosinofílica. O uso de corticoesteróides pode induzir remissão da enfermidade, mas, preparações tópicas que são efetivas em pacientes com Esofagite Eosinofílica, causam benefícios limitados em pacientes com enfermidades no trato gastrointestinal inferior. Para contornar essa dificuldade, preparações entéricas revestidas ou corticoesteróides sistêmicos devem ser utilizados, o que, entretanto, aumentam o risco de efeitos colaterais. Estudos recentes utilizando os medicamentos biológicos tais como Vedolizumab e Benralixumab têm se mostrado promissores na redução da eosinofilia gastrointestinal e mesmo quanto à necessidade de esteroides sistêmicos, porém, novos estudos são necessários para uma comprovação definitiva desta proposta terapêutica.

Perspectivas futuras

O campo das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais, tem se expandido rapidamente ao longo das últimas décadas. No caso das Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas, muita pesquisa faz-se necessária para alcançar os progressos vistos no tratamento da Esofagite Eosinofílica (Tabela 1). Em primeiro lugar, critérios diagnósticos mais específicos da Gastrite Eosinofílica, Gastroenterite Eosinofílica e a Colite Eosinofílica devem ser elaborados.



Em segundo lugar, mensurações de desfecho devem ser desenvolvidas incluindo aqueles relatados pelos pacientes além das avaliações endoscópicas e histológicas. Estas informações, pavimentarão os ensaios clínicos terapêuticos, e, dessa forma, evitarão alguns dos problemas observados nos primeiros ensaios clínicos no tratamento da Esofagite Eosinofílica.

Em terceiro lugar, é necessário um esforço adicional para o conhecimento da patogênese destas enfermidades. Como previamente discutido a análise transcriptomica tem demostrado diferenças entre a Esofagite Eosinofílica e a Gastrite Eosinofílica, e, isto posto estudos adicionais são necessários naqueles pacientes portadores outras Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas. Por exemplo, estudos em modelos envolvendo camundongos com Gastrite Eosinofílica e Gastroenterite Eosinofílica, a depleção dos eosinófilos, assim como dos anticorpos contra Siglec-8 e CCR3, têm demonstrado a normalização dos eosinófilos teciduais, bem como dos mediadores inflamatórios, o que tem permitido a identificação de potenciais alvos terapêuticos.

Em quarto lugar, ensaios longitudinais são necessários para alcançar uma melhor compreensão dos mecanismos da doença e os desfechos a longo prazo. Entretanto, como as Enfermidades Eosinofílicas Gastrointestinais não esofágicas são raras, este fato acarreta uma  dificuldade para a realização de ensaios clínicos longitudinais. Para contornar estas dificuldades, será necessário o desenvolvimento de grupos de pacientes e fontes cientificas de pesquisa envolvendo colaboração regional, nacional e internacional.

Referências Bibliográficas

1-    Dellon ES e cols. – Gastroenterology 2018;155:1022-33

2-    Mouwad FI e cols. – Gastrointest Endoscopy Clin N Am 2019;28:15-25

3-    Warners MJ e cols. – Am J Gastroenterol 2017;112:1658-69

4-    Grandinetti T e cols. – Dig Dis Sci 2019;64:2231-41

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

O elevado fardo sobre os pacientes causado pelas Doenças Gastrointestinais Eosinofílicas

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

 

A revista JPGN de outubro de 2020, publicou um importante artigo de autoria de Jensen E. T. e cols., intitulado “High Patient Disease Burden in a Cross-sectional, Multicenter Contact Registry Study of Eosinophilic Gastrointestinal Diseases” que a seguir passo a abordar em seus aspectos de maior relevância.

 

INTRODUÇÃO

As Doenças Gastrointestinais Eosinofílicas (DGE) que incluem a Esofagite Eosinofílica (EEo), Gastrite Eosinofílica (GE), a Gastroenterite  Eosinofílica (GEo) e a Colite Eosinofílica (CEo) são transtornos gastrointestinais raros, imunologicamente mediados, associados à presença de uma carga aumentada  de eosinofilia tissular específica, aspectos clínicos próprios, e ausência de outras condições clínicas associadas à eosinofilia. Até não mais do que 2 décadas atrás, as DGE não eram condições clínicas reconhecidas. O aumento na incidência e prevalência da EEo ao longo dessas duas décadas tem sido bem documentada e a prevalência atual estima-se ser de aproximadamente de 50 a 100 casos/100.000. Por outro lado, as demais enfermidades de DGE apresentam uma incidência bastante mais baixa com as seguintes estimativas: GE 6,3/100mil; GEo 5,1 /100mil; CEo 2,1 a 3,3/100mil.

MÉTODOS

O objetivo deste estudo foi elaborar um questionário a partir da criação de um Consórcio Internacional de experts na área, entre 2015-2018, para descrever e comparar os sintomas e as comorbidades relatadas pelos pacientes, de acordo com o tipo específico de cada DGE.

 RESULTADOS 

Características demográficas dos participantes pelo tipo de Enfermidade Gastrointestinal Eosinofílica

Dentre os 1.400 pacientes incluídos no registro do Consórcio, 52% (N=725) aceitaram responder o questionário. A maioria relatou o diagnóstico de EEo exclusiva, a saber n=525 versus n=210 portadores de GE, GEo e CEo, com ou sem concomitância da EEo. Diferenças significativas por sexo foram observadas, sendo 57% do sexo masculino para EEo versus 45% para as demais doenças. A idade média por ocasião do levantamento mostrou-se mais baixa entre os pacientes com EEo exclusiva versus para aqueles pacientes com as outras enfermidades (Tabela 1).

Sintomas gastrointestinais e comorbidades de acordo com os tipos de DGE.

De uma maneira geral, os pacientes relataram os seguintes sintomas mais frequentes, a saber: náusea, dor no abdômen superior e inferior, flatulência, constipação e diarreia. Náusea e dor no abdômen superior constituíram-se nos sintomas mais frequentemente observados correspondendo a um total 21% e 23%, respectivamente. Além disso, considerando-se todos os sintomas relatados, a frequência dos sintomas foi mais elevada entre aqueles que apresentavam GE, GEo, CEo em comparação com os pacientes com EEo exclusiva. Deficiências vitamínicas também foram comumente relatadas entre aqueles pacientes com GE, GEo e CEo, sendo que 49,7% dos participantes apresentavam alguma deficiência vitamínica em comparação com 28% daqueles que apresentavam EEo exclusiva. Diagnóstico de gastroparesia concomitante foi também mais comumente relatado entre os pacientes com GE, GEo, CEo, correspondendo a 27,3% dos participantes versus 13,4%  em relação a aqueles com EEo exclusiva.       

Sintomas extra intestinais, comorbidades e agravo psicossocial

A frequência diária de sintomas extraintestinais foi relatada pelos pacientes que apresentavam EEo exclusiva, e, também, para aqueles com GE, GEo e CEo; por exemplo, um a cada três participantes (33%) relatou sensações diárias de fadiga. Sentimentos diários de isolamento foram relatados em 30% dos participantes. Aqueles pacientes com DGE excluindo a EEo, geralmente relataram com maior frequência sintomas extra intestinais, comorbidades e agravo psicossocial.

Análise secundária dos sentimentos de isolamento.

Dentre os pacientes adultos com EEo exclusiva ocorreu uma proporção significativamente maior com sentimento de isolamento diário e semanal, quando tratados com uma dieta de eliminação específica em comparação com aqueles que apresentavam uma menor frequência da sensação de isolamento (80,6% versus 59,5%; p<0.01). O questionário apresentado pelo Consórcio Internacional teve como respostas, nos pacientes com EEo que foram submetidos à terapia com dieta elementar, um aumento na frequência da sensação de isolamento diário e semanal (Tabela 4). Com relação aos participantes portadores de GE, GEo e CEo, o aumento na frequência da sensação de isolamento somente esteve associado com o uso do inibidor da bomba de próton, e, este fato, foi verificado somente em pacientes adultos.  


DISCUSSÃO

Uma alta proporção de pacientes com DGE relataou a existência de comorbidades e, também, uma elevada frequência de sintomas extra intestinais. Há uma diferença significativa de sintomas e comorbidades entre aqueles pacientes com EEo exclusiva versus os outros grupos com sintomas mais intensos e a existência mais elevada de comorbidades. Além disso, a alta frequência da ocorrência concomitante de comorbidades tem sido relatada na literatura, particularmente para as condições atópicas, bem como para enfermidades autoimunes e do tecido conetivo. O presente estudo revela que há uma associação entre a abordagem terapêutica e a sensação de isolamento, o que sugere que a escolha do tratamento pode contribuir para o aumento da sensação de isolamento. Tudo indica, pela evidência obtida dos pacientes com outras enfermidades atópicas, que restrições dietéticas podem ter implicações psicossociais, particularmente entre os adolescentes. As restrições dietéticas também podem ter impactações no bem estar psicossocial dos pais.

Novas abordagens terapêuticas que não requeiram dietas altamente restritivas, poderiam potencialmente auxiliar para mitigar a percepção do dano psicossocial da doença sobre o paciente. Abordagens holísticas e a utilização de recursos adicionais ao paciente devem ser necessárias para direcionar possíveis fatores psicossociais que venham a se apresentar durante o curso do tratamento da enfermidade. A identificação de possíveis fatores de resiliência ou fatores protetores, poderiam fornecer um discernimento no qual os pacientes possam estar a um risco mais elevado de desfechos psicossociais adversos. Finalmente, os resultados deste estudo demonstram a necessidade de pesquisas mais aprofundadas para mitigar o agravo sobre os pacientes decorrentes destas enfermidades.

 MEUS COMENTÁRIOS

Este artigo, até onde meus conhecimentos alcançam, traz uma contribuição inédita, porque aborda um aspecto de elevada importância que vai além das manifestações clínicas orgânicas clássicas, ou seja, também se dedica a abordar os aspectos dos agravos psico-sociais dos pacientes. É do conhecimento geral que as doenças crônicas, de alguma forma, geralmente afetam o comportamento emocional das pessoas, porém, nem sempre é dada a sua ênfase necessária. No caso das enfermidades gastrointestinais eosinofílicas este aspecto torna-se ainda mais relevante, posto que estamos lidando com situações que não são passíveis de cura, somente controle, e mesmo assim por tempos intermitentes. Diante desta situação que se apresenta para o paciente e para o clínico, o presente artigo evidencia claramente que além da atenção medicamentosa obrigatória também deve-se ter, de forma imperiosa, a mesma preocupação para com a saúde mental dos nossos pacientes. 

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1)   Jensen E.T e cols. JPGN 2020; 71:524-529.

2)   Aceves S. e cols. J Allergy Clin Immunol 2020; 145:28-37.

3)   Pesek RD. e cols. J Am Gastroenterology 2019;114;984-94.

4)   Dellon Es. E cols. Gastroenterology 2018;154:319-23.     

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Colite Ulcerativa: consenso no seu manejo pelas ECCO e ESPGHAN (2)



Avaliando e prevendo a atividade da doença

 A avaliação endoscópica está recomendada no momento do diagnóstico, antes de intervenções terapêuticas de maior monta e quando a avaliação clínica é questionada; a avaliação endoscópica nas crianças não está rotineiramente recomendada durante as exacerbações, quando estas não são intensas ou durante a remissão clínica, exceto quanto à vigilância para câncer (Figura 1).
  


 Figura 1- Diferentes níveis de visão da lesão da Colite Ulcerativa.

Pontos Práticos



1)   A obtenção da remissão está associada com uma melhoria dos desfechos de longo prazo; entretanto não há qualquer evidência para sugerir que a avaliação endoscópica da reparação da mucosa seja suficientemente superior ao juízo clínico quanto à remissão (Figura 2).

Figura 2- Visões macro e microscópicas comparativas entre a morfologia normal e a lesão da Colite Ulcerativa.

2)   O índice de atividade da Colite Ulcerativa em pediatria (PUCAI) é um escore validado que não inclui endoscopia ou marcadores laboratoriais e é facilmente realizado diariamente. Geralmente PUCAI menor do que 10 indica remissão, entre 10 e 34 atividade leve da doença, entre 35 e 64 atividade moderada e acima de 65 pontos atividade intensa. Uma resposta clínica significativa é indicada por uma queda no PUCAI de pelo menos 20 pontos. Na prática, os clínicos devem ter como padrão de referência para tomar uma decisão a respeito da resposta clínica os valores acima referidos, porém estes valores podem variar individualmente de acordo com o critério de avaliação do clínico.



3)   Nos ensaios terapêuticos o escore PUCAI pode ser utilizado como uma medida de desfecho primário não invasivo, posto que ficou demonstrado ser ele um índice válido e que possui alta correlação com a colonoscopia.



4)   Antes de se indicar alterações no manejo terapêutico da doença em atividade, é necessário assegurar-se que os sintomas estejam  relacionados à atividade da enfermidade e que não sejam o resultado de outros problemas clínicos, tais como: Síndrome do Intestino Irritável, dismotilidade, sobrecrescimento bacteriano, complicações da própria Colite Ulcerativa (por exemplo estenose), Doença Celíaca, Intolerância ao ácido Aminosalicílico (5/ASA) ou infecção pelo Costridium difficile ou Citomegalovirus.



5)   Os seguintes exames laboratoriais devem ser realizados periodicamente: hemograma completo, albumina sérica, enzimas hepáticos e marcadores da atividade inflamatória.



6)   Níveis de calprotectina fecal entre 100 e 150 ug/g indicam inflamação da mucosa colônica. O seu papel em predizer uma recidiva clínica necessita ser futuramente estudado de forma prospectiva correlacionando-o com variáveis clínicas, antes de se poder utilizar os níveis da calprotectina fecal como referência para serem propostas alterações terapêuticas.



MANEJO CLÍNICO 


Terapêutica com 5-ASA pelas vias oral e retal



  1) Regimes de terapêutica com 5-ASA por via oral são recomendados como a primeira linha de indução terapêutica para a Colite Ulcerativa com atividade leve a moderada, e para a manutenção da remissão independentemente de outros tratamentos iniciais (Figura 3).
 


  2) Monoterapia com 5-ASA tópica pode ser eficaz em um grupo selecionado de crianças com proctite de leve a moderada; entretanto, este fato é um fenótipo raro em Pediatria.



  3) A combinação terapêutica com 5-ASA pelas vias oral e retal é mais efetiva do que a via oral isoladamente. Portanto, sempre que tolerados, enemas com 5-ASA (ou enemas com esteróides caso a 5-ASA não seja tolerada) devem ser oferecidos juntamente com a terapêutica por via oral para induzir a remissão da doença mesmo nos casos mais extensos.



  4) O uso de 5-ASA por via retal é superior ao uso de corticoesteróides por via retal e, portanto sua prática deve ser a preferida.      



Pontos Práticos




1)   Mesalazina e Sulfasalazina são as 5-ASAs de escolha. Mesalazina por via oral deve ser usada na dose de 60 a 80mg/kg de peso/dia dividida em duas doses até o máximo de 4,8g diariamente. O uso de 5-ASA por via retal deve ser a dose de 25mg/kg de peso até ao máximo de 1g diariamente.  A Sulfasalazina deve ser usada a dose de 40 a 70 mg/kg de peso/dia por via oral dividida em duas doses com uma dose máxima de 4g/dia. A dose máxima combinada pelas vias oral e retal não deve exceder a dose oral padrão em mais de 50% (Figura 4).



2)   A dose de manutenção deve ser similar à dose utilizada na terapêutica de indução, mas, doses mais baixas podem ser levadas em consideração após um período de remissão sustentável da Colite Ulcerativa (não menor do que 40mg/kg de peso ou 2,4g/dia; a dose mínima efetiva em adultos é 1,2g/dia). Não há qualquer evidência que suporte a superioridade da Sulfasalazina sobre a Mesalazina. A Sulfasalazina pode ser particularmente útil nos pacientes que apresentam artropatia associada; ela é consideravelmente mais barata e também é a única que apresenta formulação disponível na forma líquida. Por outro lado, ela está, entretanto, associada a mais efeitos adversos. O aumento gradual da Sulfasalazina entre 7 e 14 dias pode diminuir a taxa de efeitos adversos dose-dependente tais como cefaléias e distúrbios gastrointestinais.



3)   A ausência de resposta à Mesalazina por via oral após duas semanas de terapia é uma indicação para se considerar um tratamento alternativo, como por exemplo, a adição de terapêutica tópica ou corticoesteróides por via oral.



4)   A manutenção da 5-ASA deve ser continuada indefinidamente ao menos que surja intolerância, em virtude da sua reconhecida alta efetividade e excelente perfil de segurança.



5)   A intolerância aguda ao 5-ASA pode simular um broto de colite. Uma resposta positiva a retirada da 5-ASA e consequente recidiva dos sintomas após nova provocação fornece a chave para este diagnóstico, o que indica a não utilização posterior de quaisquer medicamentos que contenham 5-ASA.



6)   O emprego terapêutico por via retal deve ser oferecido para a criança, mas não deve ser forçado porque existem outras alternativas efetivas.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Colite Alérgica: a evolução clínica de uma enfermidade de caráter transitório com forte evidência de herança genética (3)

Discussão


Atualmente é do reconhecimento geral que existe uma predisposição genética para alergia a qual age em associação com um ou mais fatores desencadeantes (17). Particularmente, no caso da alergia alimentar alguns fatores que desempenham papel de importância no seu desencadeamento tem sido descritos, tais como, dieta materna, dieta do lactente, prematuridade, ausência de aleitamento natural exclusivo, deficiência de IgA secretora, deficiência da barreira de permeabilidade intestinal (18,19,20) etc. Entretanto, a ocorrência de colite alérgica em grupos familiares, como o verificado no presente estudo, parece sugerir uma forte evidência de predisposição genética familiar. Casos de colite alérgica têm sido raramente descritos entre irmãos ou parentes próximos. Nossos achados confirmam os de Nowak-Wegrzyn (21), em 2003, que descreveu caso de colite alérgica provocada pela proteína da soja em um par de gêmeos, bem como, os de Hill e Milla (22), em 1990, que descreveram quadro de colite alérgica em 3 irmãos, em um grupo de 13 pacientes com história de atopia em parentes de primeiro grau.



Está bem estabelecido que o principal alérgeno da dieta nos primeiros meses de vida é o leite de vaca secundado pela soja (23), porém outros alimentos também podem desencadear alergia alimentar, tais como: leite de outros mamíferos, ovos, trigo, peixe, frutos do mar, nozes e amêndoas, amendoim e côco. Estes reconhecidos alergenos alimentares ao fazerem parte da dieta da nutriz podem ser veiculados pelo leite humano. Por esta razão, lactentes que estejam recebendo aleitamento natural exclusivo e que apresentem predisposição genética para alergia, também podem apresentar sintomas de colite alérgica, ainda que muitas vezes de forma não florida (24,25,26). Kilshaw e Cant (27), por exemplo, demonstraram que a beta-lactoglobulina do leite de vaca pode ser detectada em amostras de leite humano entre 4 e 6 horas após a nutriz ter ingerido leite de vaca. Vale enfatizar que todos os nossos 5 pacientes receberam aleitamento natural durante um período de suas vidas e que 4 deles ainda estavam recebendo  aleitamento natural exclusivo quando os sinais de colite surgiram. A tentativa de eliminar da dieta da mãe os principais alérgenos resultou exitosa em apenas 1 caso (VCA), visto que nos outros 2 casos, as mães decidiram suspender a lactação por não haverem conseguido levar adiante a adesão à dieta de exclusão. Inclusive a mãe de (SVBP) decidiu por algo tempo levar adiante a amamentação, porém como ao ingerir doce de côco pela segunda vez, os sintomas de colite em sua filha recrudescessem, levou-a a suspender a lactação de forma definitiva. Vale ressaltar que nessa paciente, ao atingir a idade de receber dieta sólida (6 meses), foi introduzida uma dieta à base de mistura de aminoácidos (Neocate semi-solid food). Entretanto, ao cabo de 1 semana de receber tal dieta, surgiram lesões eczematosas nos membros superiores e inferiores, as quais desapareceram prontamente com a eliminação deste alimento. Verificou-se que a composição produto em questão continha óleo de côco não hidrogenado à concentração de 6%, e, possivelmente, alguma fração peptídica presente nesta dieta, tenha causado a manifestação alérgica. Interessante notar, que sua prima (STBP) havia feito anteriormente uso deste mesmo produto nutricional sem que houvesse revelado quaisquer sintomas de alergia e/ou intolerância. Ficou confirmado desta intercorrência que as manifestações de alergia podem ser amplas às mais diversas proteínas heterólogas da dieta e cujas reações não obedecem a um critério universal para todos os pacientes, ou seja, podem variar de indivíduo para indivíduo (28).



No presente estudo foi possível demonstrar claramente que esta manifestação de alergia é transitória conforme é referido por outros autores (28,29,30), diferentemente de algumas intolerâncias/alergias alimentares, tais como a doença celíaca, por exemplo, a qual se trata de uma intolerância permanente ao trigo e derivados da dieta (31). Neste estudo tivemos a oportunidade de acompanhar os 5 pacientes desde o diagnóstico inicial até o momento em que foi realizado o desencadeamento com sucesso após um longo período de evolução que perdurou entre os 11 e os 18 meses de idade dos nossos pacientes. Além disso, também tivemos a possibilidade de seguir estes 5 pacientes por um período mínimo de 18 meses e máximo de 33 meses. Pudemos constatar que nenhum deles apresentou quaisquer manifestações clínicas de processo inflamatório colônico durante este longo período de seguimento; este fato permite-nos especular que o quadro clínico de colite deveu-se realmente à alergia alimentar e não a qualquer das outras conhecidas etiologias de colite, o que coincidiu com a experiência de outros autores (10,28).



As lesões colônicas macroscópicas revelaram os mesmos aspectos característicos descritos por outros autores (21,30), porém em um deles a lesão no colon direito simulando granuloma, não é um achado comum da colite alérgica (VCA). Por esta razão, foi inclusive levantada a suspeita diagnóstica de doença de Crohn, muito embora a idade precoce do paciente fosse um fator que contrariaria esta hipótese. De qualquer forma foram solicitados os testes para investigar doença inflamatória intestinal, os quais resultaram negativos, e a própria evolução clínica do paciente demonstrou tratar-se realmente de colite alérgica. Outro paciente (STBP), além das características lesões inflamatórias apresentava também uma exuberância de nódulos linfóides visíveis macroscopicamente, o que está de acordo com a experiência descrita por outros autores (11,32). A análise microscópica das lesões coincidiu plenamente com nossa experiência anteriormente descrita e confirma o que tem sido descrito na literatura (12,13,33).



Vale ressaltar, que apesar do reconhecido caráter auto-limitado da colite alérgica em 3 dos 5 pacientes optou-se por introduzir uma medicação anti-inflamatória (dexametasona) por curta duração devido à intensidade do processo inflamatório observado durante a realização do procedimento endoscópico e a comprovação da gravidade das lesões observadas no estudo microscópico das biópsias retais, visando, assim, uma mais rápida restituição ad integrum da mucosa colônica.



Em conclusão, tudo indica que a manifestação de colite alérgica no primeiro semestre de vida apresenta globalmente um aumento na sua incidência; cólicas intensas associada a diarréia sanguinolenta é a principal manifestação clínica desta enfermidade, a qual é transitória, que pode surgir em lactentes que estejam em aleitamento natural exclusivo e cuja resolução se dá com dieta de exclusão dos principais alergenos reconhecidos até o presente ou com fórmulas hipoalergênicas.

 

 Referências Bibliográficas

17-                    Rothemberg ME. Eosinophilic gastrointestinal disorders (EGID). J All Clin Immunol 2004; 113:11-28.



18-                    Björkstén B. Genetic and Environmental Risk Factors for the Development of Food Allergy Curr Opin Allergy Clin Immunol 2005; 5:249-253.



19-                    Martine H. Gut barrier dysfunction in food allergy. Eur J Gastroenterol Hepatol 2005; 17: 1279-85.



20-                    Brandtzaeg P. Current Understanding of Gastrointestinal Immunoregulation and Its Relation to Food Allergy. Ann NY Acad Sci 2002; 964: 13–45.



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