terça-feira, 22 de setembro de 2009

Doença Celíaca: novos conhecimentos sobre uma antiga enfermidade

Recentemente no número de Maio de 2009, do Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, foram publicados 2 trabalhos bastante interessantes que buscam esclarecer alguns aspectos polêmicos da Doença Celíaca e que, portanto, merecem ser apresentados como algo de notória importância, muito embora ainda possam gerar inúmeras futuras discussões.

O primeiro deles versa a respeito da inexistência de uma ação deletéria da Aveia sobre a resposta sistêmica do auto-anticorpo transglutaminase e da ausência de lesão da mucosa do intestino delgado em pacientes portadores de Doença Celíaca (Oats do not induce systemic or mucosal autoantibody responsse in children with celic disease -Koskinen e cols. JPGN 48:559-65,2009).

Como é do conhecimento geral o único tratamento efetivo para a Doença Celíaca é a utilização permanente de uma dieta isenta de glúten ao longo de toda a vida, a qual exclui todos os produtos alimentares que contém trigo, cevada e centeio, bem como seus derivados. Por outro lado, a necessidade de se evitar Aveia permanece um aspecto controverso, posto que alguns relatos antigos sugiram que pacientes portadores de Doença Celíaca apresentavam exacerbação dos sintomas digestivos após a ingestão de Aveia. Entretanto, alguns estudos realizados in vitro têm questionado a toxidade da Aveia (Janatuinen e cols. Gut 2002;50:332-5 / Kilmartin e cols. Gut 2003:52:47-52). Além disso, há estudos na literatura que demonstram que os sintomas induzidos pela ingestão de Aveia não estão associados à lesão da mucosa do intestino delgado (Paraaho e cols. Scand J gastroenterol 2004;39:27-31 / Storsrud e cols. Eur J Clin Nutr 2003;57:163-9). Também é do conhecimento geral que a Aveia apresenta similaridades com o trigo na seqüência dos amino-ácidos, e, estudos in vitro têm demonstrado que a aveina é capaz de estimular a linhagem de célula T que reagem à gliadina (Arentz-Hansen e cols. Plos Med 2004;1:e1 / Kilmartin e cols. Dig Dis Sci 2006;51:2002-9). Assim sendo, a relevância clínica destes achados um tanto quanto discrepantes permanece obscuro, daí justificar-se outras investigações sobre a toxicidade e a imunogenicidade da Aveia na Doença Celíaca.

Objetivos

Neste trabalho os autores estudaram a toxicidade da Aveia em crianças portadoras de Doença Celíaca durante um período de acompanhamento de 2 anos por meio da investigação de depósitos na mucosa jejunal do anticorpo anti-transglutaminase 2 (TG2)-classe IgA, o qual é considerado um marcador potencialmente mais sensível para Doença Celíaca do que os anticorpos séricos ou a histologia convencional.
Desenho do Estudo
Foram selecionadas 23 crianças portadoras de Doença Celíaca em remissão com idade média de 13 anos, variando de 7 a 18 anos, 7 delas eram meninas, que no momento do diagnóstico apresentavam positividade para os anticorpos séricos anti-endomíseo da classe IgA e atrofia vilositária total com hiperplasia críptica da mucosa jejunal. Após terem sido colocadas em dieta isenta de glúten que incluiu restrição alimentar ao trigo, aveia, cevada e centeio, durante pelo menos 2 anos, todas as crianças tiveram evolução clínica, sorológica e histológica satisfatória. Desde o ponto de partida do estudo as crianças foram randomizadas para receber 2 tipos de dietas distintas, a saber: 13 foram submetidas a realizar teste de provocação com Aveia e, por outro lado, 10 crianças foram submetidas a realizar teste de provocação com glúten, por meio da liberação da dieta, tendo sido dada a permissão para ingerir trigo, centeio, cevada e aveia. No momento do início do teste de provocação todas as crianças encontravam-se em remissão da Doença Celíaca. Quando ocorreu uma evidente recidiva da lesão histológica durante o teste de provocação com glúten, os pacientes voltaram a receber uma dieta isenta de glúten, eliminando trigo, centeio e cevada, porém com a permissão de continuar consumindo Aveia. Biópsias de intestino delgado foram realizadas no início da investigação e após 6 e 24 meses naqueles pacientes que estavam consumindo apenas Aveia durante todo o período do estudo. Nos pacientes que foram submetidos ao teste de provocação com dieta contendo glúten, o primeiro exame de seguimento foi realizado quando os sintomas clínicos sugeriram uma recidiva da Doença Celíaca ou quando ocorreu a soroconversão positiva para os auto-anticorpos. Imediatamente após a recidiva e em seguida a liberação do consumo de Aveia na dieta, porém mantendo-os em dieta isenta de glúten (trigo, centeio e cevada), exames de seguimento foram realizados aos 6 e 24 meses. Durante os 2 anos de duração do ensaio clínico a Aveia não provocou qualquer efeito nocivo sobre a morfologia da mucosa intestinal, tendo sido preservada a estrutura vilositária, e o número de linfócitos intra-epiteliais. Em contraste, o grupo de crianças que recebeu dieta contendo glúten apresentou recidiva clínica entre 3 e 12 meses após o início do teste de provocação, porém todas as crianças demonstraram total recuperação da enfermidade durante os 2 anos de seguimento recebendo dieta isenta de glúten, mas consumindo Aveia.

Métodos

Todos os fragmentos de intestino delgado obtidos por biópsia, utilizando-se a cápsula de Watson, foram apropriadamente tratados para a detecção de depósito do anticorpo anti-transglutaminase 2 (TG2)-classe IgA na mucosa jejunal, pela técnica da imunofluorescência direta. Nos fragmentos da mucosa intestinal normal a IgA é detectada somente no interior dos plasmócitos, presentes na lâmina própria, e das células epiteliais. Por outro lado na Doença Celíaca em atividade, na vigência de consumo de dieta contendo glúten, um nítido depósito do complexo autoanticorpo transglutaminase 2 (TG2)-classe IgA pode ser encontrada abaixo da membrana basal, ao longo do epitélio das vilosidades e das criptas, bem como ao redor dos capilares sanguíneos (Figura 1)(vale ressaltar que a IgA é corada em verde, a TG2 é corada em vermelho, e o complexo anticorpo anti-transglutaminase-classe IGA é corado em amarelo, conforme pode ser visto na Figura 1).
Figura 1- A- No momento do início do estudo o paciente estava sendo submetido a uma dieta isenta de glúten (eliminação de trigo, centeio, cevada e Aveia) durante 2 anos; evidencia uma mucosa jejunal normal, apresentando vilosidades digitiformes e ausência de depósito de IgA.
B- mesmo paciente após 6 meses submetido à dieta de provocação com dieta contendo glúten (trigo, centeio, cevada e Aveia); as vilosidades ainda permanecem normais, porém já nítido depósito de IgA (em amarelo) apontado pelas setas.
C- mesmo paciente após 12 meses de dieta de provocação evidenciando recaida da lesão morfológica da mucosa jejunal com intenso depósito de IgA (setas).
D- mesmo paciente após a adoção de dieta isenta de gluten, porém contendo Aveia, demonstrando diminuição significativa dos depósitos de IgA.
E- mesmo paciente após 2 anos recebendo dieta contendo Aveia evidenciando total desaparecimento do depósito de IgA.

Resultados

No momento inicial do estudo os anticorpos séricos anti-transglutaminase jejunal revelaram-se negativos em todos os 23 pacientes, porém em 7 deles (4/13 no grupo aveia e 3/10 no grupo dieta contendo glúten) houve mínimos depósitos do marcador na mucosa jejunal. No grupo que consumiu apenas Aveia não ocorreu alteração significativamente importante na intensidade dos depósitos de IgA na mucosa jejunal durante o período de 2 anos de duração do estudo. Por outro lado, no grupo que se submeteu à provocação com dieta contendo glúten, a intensidade dos depósitos de IgA aumentou de forma nítida na mucosa jejunal e foi acompanhada do aumento dos auto-anticorpos séricos. A intensidade dos depósitos de IgA mostraram uma relação direta com a intensidade das lesões morfológicas observadas na mucosa jejunal e nos níveis dos auto-anticorpos séricos (Figura 1).
Conclusão

Os autores concluem que este estudo demonstrou que o consumo de Aveia deve ser considerado seguro na maioria das crianças portadoras de Doença Celíaca, porém com a ressalva de que os pacientes, que optarem por incorporar este cereal em suas dietas, devem ser estreitamente acompanhados durante toda a vida.
Este interessante trabalho traz uma nova visão sobre a inexistência de toxicidade da Aveia na Doença Celíaca, quebrando assim, uma longa tradição que perdura desde quando Dr. Dicke, o famoso pediatra holandês, demonstrou a etiologia desta enfermidade no início da década de 1950. No entanto, os autores se mostraram também suficientemente cautelosos quanto aos resultados obtidos quando recomendam que os pacientes portadores de Doença Celíaca que decidirem consumir Aveia deverão ser rotineiramente acompanhados durante toda a vida. Em outras palavras, trata-se de uma proposta não definitivamente conclusiva e que permanece aguardando confirmações de outros estudos de natureza semelhante.
No nosso próximo encontro apresentarei o segundo trabalho que também me despertou a atenção pela sua característica inovadora.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (9)

A2. Dor Abdominal Relacionada às AFGs (continuação)

6- Dor Abdominal Funcional da Infância e
7- Síndrome da Dor Abdominal na Infância

Nestas duas entidades uma limitada, porém, razoável investigação laboratorial de rastreamento para descartar algumas enfermidades de origem orgânica deve incluir hemograma completo, velocidade de hemosedimentação, proteína C reativa, urina tipo I e cultura. Outros perfis bioquímicos, tais como, hepáticos e renais, bem como exames diagnósticos (cultura de fezes, parasitológico de fezes e teste do Hidrogênio no ar expirado para detectar má absorção aos caboidratos) também são recomendáveis dependendo dos sintomas predominantes referidos pelo paciente, do grau de limitação funcional ou mesmo da intensidade da ansiedade familiar.

Para a caracterização diagnóstica da Dor Abdominal Funcional da Infância devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1. As manifestações clínicas devem ocorrer pelo menos uma vez por semana durante pelo menos 2 meses.
2. A dor abdominal pode ser episódica ou contínua.
3. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.

Para a caracterização diagnóstica da Síndrome da Dor Abdominal Funcional da Infância a dor abdominal deve estar presente em pelo menos 25% do tempo e 1 ou mais dos seguintes sintomas devem estar incluídos:
1. Alguma perda da capacidade funcional diariamente.
2. Algum sintoma somático adicional, tal como dor de cabeça, dores nos membros e/ou dificuldade para dormir, deve estar presente.

Em minha opinião levando-se em consideração os muitos anos de experiência profissional intensamente por mim vividos nesta especialidade, entendo que estas duas entidades rotuladas pelo Comitê de experts de forma individualizada, representam nada mais do que uma discreta variante da Síndrome do Intestino Irritável. Ao meu ver esta dicotomia da classificação traz mais confusão do que esclarecimento diagnóstico.
B. Constipação e Incontinência Fecal
1- Constipação Funcional
O termo Constipação Funcional é utilizado para designar todas as crianças nas quais a constipação não apresenta uma etiologia orgânica. Estima-se que a incidência da constipação esteja presente entre 0,3% a 8% da população pediátrica e representa de 3% a 5% das visitas ao consultório do Pediatra generalista. Entretanto, representa uma taxa de até 25% das consultas ao Gastropediatra. Pesquisas clínicas têm demonstrado que uma história familiar positiva para constipação está presente entre 28% a 50% das crianças portadoras de constipação, e mais ainda, tem sido descrita uma incidência mais elevada em gêmeos monozigóticos do que em dizigóticos. O pico da incidência costuma ocorrer durante o treinamento do controle esfincteriano, entre os 2 e os 4 anos de idade, com maior prevalência entre os meninos. É importante ressaltar que a ocorrência de escape fecal (a passagem involuntária de material fecal na forma semi-líquida sujando a roupa íntima) é uma das manifestações clínicas mais comuns na criança com constipação funcional de longa duração e está presente em cerca de 85% dos casos. Esta situação profundamente desagradável é uma causa de grande desconforto social para criança e mesmo para seus familiares. A existência do escape fecal é um importante marcador para estabelecer a gravidade da constipação e também funciona como um bom monitoramento para avaliar a eficácia do tratamento.
A queixa de evacuação dolorosa tem sido considerada um valoroso dado da história clínica como um fator causal do comportamento de retenção das fezes. A presença de um grande bolo fecal palpável na fossa ilíaca esquerda antes da criança ter evacuado, ou até mesmo após uma evacuação que freqüentemente obstrui o vaso sanitário, é um sinal marcante da constipação. A evacuação dolorosa dessa massa fecal provoca grande temor na criança e acarreta um desejo de evitar a exoneração fecal posteriormente.

É necessária a obtenção de uma história clínica detalhada do hábito intestinal desde o nascimento, identificar o momento que surgiu o problema, investigar as características das fezes (freqüência, consistência, calibre e volume), saber da presença de sintomas associados (dor à evacuação, dor abdominal, presença de sangue nas fezes ou no papel higiênico e escape fecal), comportamento de retenção, problemas urinários e deficiências neurológicas. Em algumas circunstâncias o escape fecal é confundido com diarréia pelos familiares em virtude do seu aspecto ser líquido ou semi-líquido. É importante realizar a inspeção clínica da região perineal e peri-anal para excluir defeitos da medula espinhal. O toque retal deve sempre ser realizado após ter sido obtida a confiança da criança.

Para a caracterização diagnóstica da Constipação Funcional devem ser incluídas 2 ou mais das seguintes manifestações clínicas em uma criança de pelo menos 4 anos de idade:
1. Duas ou menos evacuações por semana.
2. Pelo menos 1 episódio de escape fecal por semana.
3. História de postura de retenção ou retenção consciente excessiva das fezes.
4. História de evacuação dolorosa ou fezes endurecidas.
5. Presença de bolo fecal no reto.
6. História de fezes de grande calibre que obstrui o vaso sanitário.
7. Estas manifestações devem ocorrer pelo menos uma vez por semana durante pelo menos 2 meses antes do diagnóstico.

2- Incontinência Fecal Não Retentora
A incontinência fecal não retentora se caracteriza pela evacuação completa do conteúdo do reto em local inapropriado, fora do vaso sanitário, por uma criança acima dos 4 anos de idade e que não apresenta evidências de retenção fecal.

A incontinência fecal tem sido relatada ocorrer em cerca de 3% das consultas da especialidade, sendo a prevalência mais alta nas crianças entre 5 a 6 anos de idade (4,1%) do que nos adolescentes entre 11 e 12 anos (1,6%); além disso tem sido mais freqüentemente descrita entre meninos do que em meninas pertencentes a famílias de nível sócio-econômico mais vulnerável.

Para a caracterização diagnóstica da Incontinência Fecal Não Retentora devem ser incluídas todas as seguintes manifestações nas crianças acima dos 4 anos de idade e que perdurem por pelo menos 2 meses:
1. Evacuação completa em locais inapropriados ao contexto social pelo menos uma vez por mês.
2. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.
3. Não há evidência de retenção fecal.

As AFGs continuam a ser um grande dasafio para o clínico, quer seja na compreensão dos mecanismos fisiopatológicos deflagradores dos sinais e sintomas, bem como na própria abordagem terapêutica dos mesmos. Muitas questões referentes aos mecanismos íntimos da fisiopatologia, tais como as interações entre o sistema nervoso central, o sistema nervoso entérico e o sistema imunológico, um melhor conhecimento do comportamento biopsicosocial dos pacientes e eventuais propostas terapêuticas ainda permanecem obscuras. Faz-se necessário, portanto, que esforços sejam concentrados em trabalhos de pesquisa para a aquisição de maiores esclarecimentos a respeito de um problema que afeta um grande número de crianças e adolescentes em todo o universo.

Os Comitês de experts de ambos os grupos etários considerados, - lactentes e pré-escolares - escolares e adolescentes -, conscientes das limitações existentes quanto às deficiências dos conhecimentos acima referidos, fazem recomendações para que os pesquisadores da área realizem pesquisas, cujos desenhos de estudo possam contemplar as lacunas científicas ainda pendentes. Entretanto, a iniciativa de propor uma classificação das AFGs em Pediatria, o que ocorreu pela primeira vez com a elaboração dos critérios de Roma II, e que avançou sobremaneira com os critérios de Roma III, constituiu-se em um passo extremamente importante para estabelecer parâmetros diagnósticos e possivelmente melhores compreensões sobre os seus transtornos fisiopatológicos, até o presente desconhecidos. Esperamos, portanto, com entusiasmo a chegada para dentro em breve dos critérios de Roma IV. Da minha parte, assim que novos conhecimentos cientificamente comprovados e de significativa importância clínica estejam disponíveis na literatura médica, retornarei a discutir este fascinante capítulo da Gastropediatria.