quinta-feira, 11 de julho de 2013

Fibrose Cística do Pâncreas: a abordagem para o século XXI (2)



DIAGNÓSTICO DA FIBROSE CÍSTICA

O diagnóstico da Fibrose Cística (FC) é usualmente suspeitado com base na presença de manifestações fenotípicas (doença pulmonar e das vias aéreas superiores, anormalidades gastrointestinais e nutricionais, síndrome da perda de sal, ou anormalidades urogenitais masculinas) com ou sem uma história familiar positiva. O diagnóstico é confirmado pela elevada alteração do Cloro no Teste do Suor, cuja anormalidade tem sido o pilar diagnóstico desde que o método do Teste do Suor foi descrito, em 1959, por Gibson-Cooke. O teste envolve a administração transdérmica de pilocarpina por iontoforese para estimular a secreção das glândulas sudoríparas e a correspondente análise da concentração do Cloro no suor coletado (Figura 1).




Nas crianças maiores de 6 meses de idade, é considerada normal a concentração de Cloro abaixo de 40mmol/L e valores acima de 60mmol/L são considerados anormalmente elevados. A realização de um segundo Teste do Suor é necessário para confirmar o diagnóstico da FC, ou então faz-se necessária a identificação de duas mutações anormais do CFTR. Para lactentes menores de 6 meses é considerada normal a concentração de Cloro no suor abaixo de 30mmol/L. Uma avaliação posterior (repetição do Teste do Suor, diferença de potencial nasal, análise da mutação CFTR) é recomendada para os pacientes que apresentam valores intermediários do Cloro no suor (Figura 2).




Muito embora a realização do Teste do Suor seja suficiente para o diagnóstico na maioria dos casos de FC, a análise do DNA para as mutações CFTR pode ser útil nos pacientes que apresentam valores intermediários da concentração de Cloro no suor. A identificação de dois alelos que estão associados às mutações provocadoras da enfermidade também pode ser considerado um método diagnóstico de confirmação de FC, porém, a ausência destes dois alelos não exclui a possibilidade da doença. Considerando-se que as mutações CFTR são etnicamente dependentes, um painel mutacional geral pode ser menos sensível para o rastreamento inicial da enfermidade. Embora exista uma pobre correlação entre genótipo e fenótipo, a identificação da mutação pode ser de auxilio para a caracterização do risco de insuficiência pancreática. De qualquer forma, em geral a análise do genótipo não pode ser utilizada para predizer o prognóstico de um determinado paciente com FC. Mutações CFRT específicas podem resultar em diferentes níveis de gravidade da doença em distintos pacientes, e são influenciadas por polimorfismos e modificações dos genes, e até mesmo por fatores ambientais (Figura 3).





Testes adicionais que podem ser úteis nos pacientes com Testes do Suor inconclusivos incluem a diferença de potencial nasal, tomografia computadorizada do tórax, dos seios da face, broncoscopia com lavagem bronquial para cultura de bactérias no trato respiratório inferior, imaginologia do pâncreas e ultrassonografia dos vasos deferentes em meninos.

RASTREAMENTO NEONATAL PARA O DIAGNÓSTICO DA FIBROSE CÍSTICA

Embora o Teste do Suor permaneça sendo considerado o padrão ouro para o diagnóstico da FC, o advento do teste de rastreamento neonatal tem modificado o paradigma diagnóstico da FC ao longo da última década, posto que proporciona a intervenção quando da identificação da doença em pacientes sintomáticos e também a sua prevenção  em pacientes pré-sintomáticos. Considerando-se que o rastreamento neonatal para FC tornou-se universal, a maioria dos recém-nascidos com suspeita da enfermidade atualmente dispõe de um teste diagnóstico com base em um rastreamento positivo, o que é muito mais vantajoso do que aguardar pelo aparecimento dos sintomas (Figura 4).


O rastreamento neonatal para FC baseia-se na identificação de altos níveis séricos do tripsinogênio imunorreativo (IRT), a qual pode ser obtida colocando-se gotas de sangue ressecado em cartões de papel de filtro. Quando são identificados níveis elevados de IRT deve-se repetir o teste após duas semanas e/ou realizar a análise do DNA para mutações CFTR. Ainda que ambas as estratégias estejam associadas com níveis superiores a 90% de sensibilidade, um rastreamento positivo no período neonatal não confirma o diagnóstico, o qual necessita ser confirmado pela realização do Teste do Suor. Por outro lado, um teste de rastreamento negativo não elimina a necessidade de se realizar o Teste do Suor em um lactente que apresenta sintomas clínicos de FC (Figura 5).





A habilidade para identificar pacientes antes do surgimento dos sintomas pode proporcionar importantes benefícios à saúde das crianças com FC. Estudos de coorte e ensaios populacionais de rastreamento neonatal têm demonstrado universalmente uma grande vantagem nutricional quando se utilizada este procedimento para FC. O estabelecimento diagnóstico da FC através do rastreamento tem estado associado com a melhoria do crescimento  a qual persiste até a adolescência e, por esta razão, possibilita a prevenção da baixa estatura nos pacientes com FC, em comparação com aqueles pacientes que são diagnosticados utilizando-se as estratégias convencionais. Outros benefícios nutricionais demonstrados em estudos de coortes de rastreamento neonatal incluem a prevenção de deficiências dos micronutrientes, tais como as da vitamina E, e também reduzem o risco de disfunções cognitivas devidas à desnutrição. Embora ainda não esteja consistentemente demonstrado, alguns estudos sugerem que o diagnóstico precoce da FC, por meio do rastreamento neonatal, parece retardar a instalação da infecção por Pseudomonas aeruginosa, reduzem a progressão da doença pulmonar e possivelmente prolongam a sobrevivência.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Fibrose Cística do Pâncreas: a abordagem para o século XXI (1)



Introdução

Em 2011, o Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition publicou a íntegra de um simpósio realizado em Minneapolis, Minnesota intituladoA 21st-Century approach to cystic fibrosis: optimizing outcomes across the disease spectrum, organizado por Joel R. Rosh, Arthur B. Atlas, Willian F. Balistreri, David C. Whitcomb e Julie Messick, renomados experts neste campo do conhecimento, para discutir aspectos de relevância para os profissionais que dão assistência à saúde a pacientes portadores de Fibrose Cística (FC). Foram abordados os aspectos de maior importância quanto ao diagnóstico da FC, as complicações hepatobiliares, suas consequências e o manejo da enfermidade pancreática. A seguir, passo a transcrever os tópicos de maior interesse médico-científico discutidos no referido simpósio.



Visão geral da Fibrose Cística

A FC é a doença genética potencialmente fatal mais frequente nos caucasianos, e afeta aproximadamente 30 mil indivíduos nos Estados Unidos. A FC é uma enfermidade autossômica recessiva causada por mutações em um gene do cromossoma 7. Este gene, que foi identificado pela primeira vez em 1989, codifica a proteína reguladora transmembranosa FC (CFTR) a qual funciona como um canal de monofosfato de adenosina cíclico (cAMP)-cloro. A CFTR está localizada na membrana apical das células epiteliais secretoras e absortivas pertencentes às vias respiratórias, pâncreas, fígado, intestino, glândulas sudoríparas e vasos deferentes. Alguma lesão neste gene encontra-se presente em praticamente todos os indivíduos que apresentam a síndrome clínica da FC. A mutação mais comum, é a delta 508, e está presente em mais de dois terços dos cromossomas da FC nos indivíduos, universalmente (Imagem 1).



Atualmente, foram descritas mais de 1.600 mutações do gene CFTR. Estas mutações foram organizadas em 6 classes de acordo com a disfunção das mutações do CFTR, na tentativa de auxiliar a relação entre o genótipo e o fenótipo. Entretanto, em virtude do grande número de mutações torna-se extremamente difícil predizer os efeitos do genótipo FC sobre a expressão clínica da doença. As mutações Classe I são caracterizadas por um defeito da síntese protéica, enquanto que as mutações das Classes II e III estão relacionadas com defeitos no tráfego e no processamento da proteína, respectivamente. As mutações Classe IV resultam em condutância anormal e as mutações Classe V estão associadas com uma divisão anormal do mRNA, e consequentemente acarretando uma capacidade menor de funcionamento normal do CFTR na superfície apical. Mutações Classe VI produzem uma proteína funcional que é instável na superfície da membrana apical. Enfermidade mais grave pode ser antecipada quando ocorrem as mutações Classes I, II, III e VI, as quais provocam pouco ou nenhum funcionamento da CFTR na membrana apical. Enfermidade de moderada intensidade pode estar associada com as mutações Classes IV e V posto que alguma função da CFTR permanece em atividade (Figura 1).

As manifestações clínicas da FC surgem em virtude da disfunção dos sistemas de órgãos que expressam a CFTR, posto que o transporte iônico defeituoso acarreta um entupimento dos ductos e outras estruturas, usualmente devido à presença de secreções muito espessas e muco pegajoso (Figura 2).

A doença pulmonar permanece como a primeira causa de morbidade e mortalidade nos pacientes com FC e está caracterizada por ciclos progressivos de infecção e inflamação com evolução para falência respiratória (Figura 3).


A ausência do funcionamento normal da CFTR (a qual é abundantemente expressa no epitélio intestinal), pode acarretar o desenvolvimento de obstrução intestinal, insuficiência pancreática e doença hepática. Cerca de até 20% dos recém-nascidos com FC apresentam íleo meconial e aproximadamente 85% deles sofrem de insuficiência pancreática. A maioria dos pacientes desenvolve sinais e sintomas de insuficiência pancreática durante o período de lactente, enquanto que alguns outros ainda permanecem com função pancreática inicialmente adequada, antes de desenvolver a perda progressiva desta função durante o período pré-escolar. A perda da atividade enzimática do pâncreas e a redução das concentrações de sais biliares no lumem intestinal acarretam má absorção dos nutrientes da dieta (particularmente as gorduras), cuja manifestação ocorre por diarreia, esteatorréia e failure to thrive. Além do envolvimento respiratório e da doença pancreática, outros sinais e sintomas da FC incluem desequilíbrio eletrolítico, pólipos nasais e dos seios da face, prolapso retal e complicações reprodutoras.