terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Esofagite Eosinofílica: uma enfermidade emergente (Parte 2)

Ana Beatriz Rocha Gabriel e Ulysses Fagundes Neto


Diagnóstico

É importante assinalar que não existe um único exame complementar capaz de definir a presença da EEo. O diagnóstico da EEo deve basear-se na avaliação conjunta dos achados clínicos, endoscópicos e histológicos.

Segundo os critérios atuais, o diagnóstico é estabelecido no paciente que apresenta quadro clínico compatível, no qual a biópsia esofágica demonstra a presença de mais de 15 eosinófilos/CGA e que não responde ao tratamento com medicamento à base de inibidores da bomba de próton (IBP) (por 8 semanas), além da exclusão de eosinofilia secundária. Eosinofilia periférica (5-35% eosinófilos) é observada em 55-80% dos pacientes.

O estudo radiológico contrastado pode ser benéfico em crianças com vômitos para se excluir etiologias de anormalidades anatômicas, como por exemplo, vício de má rotação intestinal.

Alguns achados radiológicos também podem ser característicos de EEo, embora não patognomônicos, tais como, estenoses esofágicas e impactação. As alterações radiológicas tais como estreitamento da luz esofágica, podem ou não ser observadas na endoscopia digestiva alta (EDA) e vice-versa. O exame radiológico contrastado pode ser útil para a EDA subsequente, pois pode alertar o endoscopista a usar um endoscópio de menor calibre devido à presença de estenose, para, portanto, proceder o estudo com maior cautela ou mesmo alertá-lo para a necessidade de realização de dilatação esofágica.

Menard-Katcher et al., em 2015, demonstraram que a realização do esofagograma pode trazer uma significativa contribuição para detectar lesões esofágicas, em especial, estenoses que não seriam observadas pela EDA. Em um estudo retrospectivo avaliando 22 crianças portadoras de EEo constataram que estenoses esofágicas foram identificadas em 55% destas crianças sem terem sido detectadas à EDA. Os autores concluem que o esofagograma é um exame de grande valia para avaliar a anatomia esofágica em crianças portadoras de EEo grave, pois é capaz de identificar fibroestenoses leves mais precocemente na história natural da enfermidade do que a EDA, como se observa na Figura 2 abaixo.


Vale ressaltar que os sintomas de disfagia e impactação alimentar geralmente ocorrem por alteração na motilidade e não pelas estenoses. Por esta razão, pacientes que apresentam impactação alimentar devem ser investigados com EDA e realização de biópsia esofágica.

Alterações à EDA:

Os achados endoscópicos podem apresentar uma grande variedade de anomalias dependendo de cada paciente e do tempo de duração dos sintomas, tais como:

}  Mucosa com aspecto granular e friável
}  Perda do padrão vascular
}  Exsudatos esbranquiçados (microabscessos eosinofílicos)
}  Estrias verticais
}  Estenoses esofágicas
}  Anéis esofágicos concêntricos (esôfago semelhante à traqueia)


Figura 3- Representação esquemática das lesões macroscópicas que podem ser observadas na mucosa esofágica à EDA: anéis concêntricos, placas esbranquiçadas, estenose, estrias verticais e fibrose.




Figuras 4-5-6- Lesões macroscópicas verificadas na EEo à EDA: estrias verticais e traqueização do esôfago.

Deve-se também levar em consideração que cerca de 30% dos pacientes revelam exame endoscópico normal à macroscopia, o que implica na necessidade de realização de biópsia esofágica quando as evidências clínicas são altamente suspeitas de EEo.

É importante enfatizar que as biópsias esofágicas devem ser realizadas em pelo menos 3 locais distintos devido à distribuição desigual das lesões, a saber: terço proximal, médio e distal do esôfago.

Algumas diferenciações nas lesões esofágicas entre a EEo e a DRGE devem ser levadas em conta. A esofagite associada ao refluxo acomete geralmente o terço distal, diferentemente da EEo que acomete qualquer região do esôfago, e, além disso, a DRGE apresenta, usualmente, um número menor de eosinófilos, cerca de 1-10/CGA.

Na visão microscópica, na EEo a mucosa encontra-se espessada, com hiperplasia da zona basal e com alongamento papilar mais pronunciado do que na DRGE. A presença de microabscessos eosinofílicos (agregados de 4 ou mais eosinófilos) é observada exclusivamente em pacientes com EEo, associada a degranulação dos eosinófilos e pode também haver fibrose da lâmina própria.

As Figuras A e B abaixo são uma representação esquemática das alterações histológicas que habitualmente são descritas na EEo e DRGE, respectivamente.

A– Esofagite eosinofílica

B– Refluxo Gastroesofágico


A realização concomitante de biópsias do estômago e duodeno estão indicadas para afastar a possibilidade da existência de Gastroenteropatia Eosinofílica.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Esofagite Eosinofílica: uma enfermidade emergente (Parte 1)

Ana Beatriz Rocha Gabriel e Ulysses Fagundes Neto

Introdução   
      
Nas duas últimas décadas tem se constatado um aumento crescente no número de pacientes que apresentam eosinofilia esofágica e que não respondem ao tratamento convencional da DRGE. Vários trabalhos passaram a ser publicados demonstrando o surgimento de uma “nova doença”, que recebeu a denominação de Esofagite Eosinofilica (EEo).

Os transtornos digestivos eosinofílicos constituem-se em enfermidades inflamatórias caracterizadas pela presença de eosinófilos ao longo do tubo digestivo, na ausência de doenças que cursam com eosinofilia secundária. Atualmente a EEo é considerada a enfermidade mais comum tanto em crianças quanto em adultos. A etiologia e a fisiopatologia da EEo ainda não estão completamente elucidadas, porém, é sabido que ocorre uma nítida associação com atopia, devido a participação de aeroalergenos e antígenos alimentares em sua patogênese. Dados da literatura apontam que 80% dos pacientes apresentam doenças atópicas, sendo 62% por sensibilização a alimentos e, além disso, 16% dos pacientes apresentam casos semelhantes na família.

Definição

A EEo caracteriza-se por importante infiltrado eosinofílico no esôfago, associado a sintomas semelhantes aos da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), mas que não respondem ao tratamento com bloqueadores da secreção ácida gástrica de modo isolado. Segundo Markowitz et al. 8-10% dos casos pediátricos que não respondem ao tratamento clássico para DRGE apresentam EEo. Na Tabela 1 estão relacionados os critérios diagnósticos da EEo.

Tabela 1- Critérios Diagnósticos

A- Sintomas clínicos de disfunção esofágica
B- Ausência de resposta a elevadas doses de inibidores da bomba de Hidrogênio
C- Presença de ≥15 eosinófilos em campo de grande aumento (CGA) na mucosa esofágica
D- Estudo de pHmetria do esôfago distal normal 

É importante ressaltar que a eosinofilia esofágica não é característica exclusiva da EEo, podendo estar também presente em outras patologias do trato digestivo discriminadas na Tabela 2, abaixo.

Tabela 2- Diagnóstico diferencial das eosinofilias esofágicas

Doença do refluxo gastro-esofágico
Gastroenterite eosinofílica
Doença de Crohn
Doença do tecido conetivo
Síndrome hipereosinofílica
Infecção
Resposta de hipersensibilidade a drogas
  
Em condições normais eosinófilos caracteristicamente não devem estar presentes no esôfago, entretanto, tem sido observado que a presença de eosinófilos no trato digestivo pode ocorrer em algumas circunstâncias. Nestes casos, os eosinófilos estão presentes em baixa concentração principalmente na lâmina própria, bem menores na superfície epitelial e no epitélio das criptas e das glândulas.

Consenso Internacional sobre EEo: First International Gastrointestinal Eosinophil Research Symposium (FINGERS)

Em 2007, nos EUA, um grupo de experts se reuniu para discutir as peculiaridades da EEo que resultou na publicação de um documento baseado nas revisões sistemáticas da literatura. Naquele encontro ficou estabelecido que a EEo é uma doença caracterizada por:

A- Recusa alimentar e sintomas semelhantes à DRGE na criança menor, disfagia e impactação alimentar nas crianças maiores e adultos

B- Contagem de eosinófilos igual ou superior a 15 eosinófilos por CGA na biopsia esofágica

C- Eosinofilia mantida após uso de Inibidor de Bomba de Protons

D- Exclusão de outras doenças que cursam com eosinofilia secundária

Epidemiologia

Atualmente está bem estabelecido que a prevalência da EEo tem aumentado nas últimas décadas, acomete prioritariamente indivíduos da raça branca, e o sexo masculino é o mais afetado (80%).

A EEo acomete pacientes de todas as faixas etárias, mas principalmente aqueles da idade escolar, com pico de diagnóstico aos 10 anos.

Na Austrália observou-se que entre 1995 e 2004 ocorreu aumento de 18 vezes no número de casos diagnosticados. Nos EUA, Noel et al. demonstraram que a incidência de EEo é de 1/10.000 crianças por ano e a prevalência de 4/10.000 crianças, sendo que 90% dos casos foram diagnosticados após o ano 2000.

Este vertiginoso aumento no número de casos provavelmente reflete alguns aspectos que devem ser levados em consideração, tais como, um aumento real da incidência, aumento da ocorrência das doenças atópicas, um melhor reconhecimento dessa entidade devido a maior conscientização de sua existência, pela maior valorização dos sintomas e pela realização de um maior número de endoscopias digestivas com biópsia esofágica.

Etiopatogenia

Eosinofilia, associada com alergia alimentar e outras condições atópicas, além dos testes cutâneos e patch test positivos para diferentes alergenos demonstram que há reação de hipersensibilidade IgE mediada, e, também, não IgE mediada, devendo ser incluída no espectro das doenças atópicas. Os principais alergenos alimentares mais envolvidos são: leite de vaca, soja, trigo, peixe, frutos do mar, frutos oleaginosos e ovo. Entre os aerolergenos, o pólen é o principal deles.

A exposição da mucosa do esôfago aos alergenos promove uma resposta imunológica Th2, levando à produção de interleucinas (IL-4, IL-5, IL-13), que irá estimular a produção de eosinófilos e IgE. A IL-5 regula a produção, diferenciação, recrutamento, ativação e sobrevida dos esinófilos, a IL-13 promove infiltração eosinofílica, pelo aumento da expressão da eotaxina-3, mediador envolvido na quimiotaxia de eosinófilos.

Há dúvidas se o uso de medicamentos supressores da produção de HCl poderia predispor ao desenvolvimento da EEo, visto que o aumento do pH gástrico pode alterar a digestão das proteínas e como consequência promoveria maior absorção de proteínas intactas com potencial de indução de resposta imune. Além disso, poderia induzir o aumento da permeabilidade da mucosa do tubo digestivo em pacientes em uso de supressão ácida.

Eosinófilos produzem o Fator de Transformação do Crescimento (TGF) beta, o qual ativa as células epiteliais, acarreta hiperplasia, fibrose e dismotilidade, tudo em conjunto levando ao remodelamento esofágico.

Manifestações Clínicas

As manifestações clínicas da EEo são inespecíficas e usualmente variam conforme a idade:
1- Menores de 2 anos: recusa alimentar e baixo ganho de peso
2- Até 12 anos: vômitos, dor abdominal, sintomas de refluxo gastroesofágico
3- Adolescentes e adultos: disfagia e impactação alimentar. Estas complicações podem ser decorrentes de transtornos da motilidade esofágica.

A Tabela 3, abaixo, apresenta os principais sintomas sugestivos de EEo em crianças e adultos.


  Estudos sugerem que EEo é uma condição crônica, de curso persistente ou recorrente em mais de 90% dos casos, que pode evoluir com complicações importantes como estenose do esôfago e menos comumente perfuração esofágica.