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segunda-feira, 14 de março de 2022

Estresse nos lactentes e pré-escolares: não responsabilize o refluxo ácido

  

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition publicou um artigo de pesquisa, em outubro de 2020, intitulado “Distress in infants and young children: don’t blame acid reflux”, de Salvatore, S. e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.

Introdução

O papel do Refluxo Ácido (RA), nos lactentes que choram continuamente e que se mostram estressados, tem sido debatido há muitos anos, e, ainda não está devidamente esclarecido. Os pais destas crianças geralmente se sentem muito ansiosos e estressados quando seus filhos estão chorando, e ficam muito preocupados se eles estão sentindo alguma dor e/ou uma doença orgânica.

Entretanto, estresse persistente e choro inconsolável pode resultar de um processo normal do desenvolvimento, atribuídos a transtornos funcionais que se diferenciam de doenças orgânicas, tais como, alergia alimentar, infecção, trauma ou condições cirúrgicas. O manejo desses episódios é desafiador para ambos, pais e médicos. O discernimento entre comportamento normal e estressado e cólica do lactente, relacionado ou não ao Refluxo Gastroesofágico (RGE) ou Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE), é desafiador e dependente da percepção, dos cuidadores e dos profissionais de saúde, na forma de como lidar com a situação, e, bem como, na sua respectiva interpretação.

A transmissão de uma garantia de segurança aos pais, combinada com recomendações dietéticas são geralmente suficientes para reduzir a ansiedade dos mesmos e diminuir a sintomatologia da DRGE. Considerando-se que a queimação retroesternal é o principal sintoma apresentado pela DRGE em adultos, o estresse e o choro em lactentes, é geralmente percebido pelos profissionais da saúde como uma consequência do DRGE ácido. Por esta razão, antiácidos são frequentemente prescritos para os lactentes que apresentam choro inconsolável e estresse constante, e que podem se apresentar com ou sem regurgitação.

O reconhecimento e a quantificação da dor é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para propor o melhor tratamento e aliviar o sofrimento desnecessário. O escore “The Face, Legs, Activity, Cry, Consolability” (FLACC) é uma mensuração validada para avaliar a dor em lactentes e pré-escolares. O objetivo do presente estudo foi avaliar a relação entre o escore de estresse, utilizando a escala FLACC e o RGE, investigado pela monitoração da Impedância intraluminal de múltiplos canais–pHmetria (IIMC-pH) esofágica, que é considerada a melhor técnica diagnóstica para mensurar o refluxo gastroesofágico ácido e não ácido, e, ao mesmo tempo, identificar a possível associação do sintoma com o Refluxo.

Pacientes e Métodos     

Desenho do Estudo

O estudo foi realizado de forma prospectiva e consecutiva incluindo todos os lactentes e pré-escolares abaixo de 24 meses de idade, encaminhados para a realização da IIMC-pH monitorada por 24horas, com queixa de estresse recorrente, choro inconsolável e inexplicável, como sintoma predominante ou associado a RGE. De acordo com a percepção dos pais, nenhuma criança apresentou melhora clínica suficiente após pelo menos 10 dias de educação e reforço aos pais, aconselhamento comportamental e dietético que incluiu correção do volume ingerido, espessamento e uso de fórmula com proteína hidrolisada, de acordo com a recomendação das guias de conduta para RGE.    

Objetivos

O desfecho primário foi avaliar a associação temporal entre o estresse inexplicável com choro e o RGE detectado pela IIMC-pH. Os desfechos secundários foram avaliar a relação entre o escore FLACC e os resultados do IIMC-pH, para refluxo ácido e para refluxo não ácido, a duração do refluxo, a extensão esofágica e o índice de refluxo.

Avaliação do Estresse

Os pais foram instruídos a preencher um diário dos sintomas e a escala FLACC para todos os episódios de choro inexplicável, estresse ou agitação que tenham ocorrido durante a realização do teste IIMC-pH. A escala FLACC apresenta uma avaliação de 0 a 10, sendo que 0 representa ausência e 2 a máxima expressão para qualquer um dos 5 itens do FLACC (expressão facial, posição da perna, nível de atividade, tipo de choro e choro inconsolável).

Monitoração da Impedanciometria Intraluminal de Múltiplos Canais-pHmetria

Os sintomas foram considerados como temporalmente associados com RGE, caso eles tenham ocorrido 2 minutos antes ou após um episódio de refluxo. Refluxo ácido foi definido quando o pH esofágico foi <4, enquanto que Refluxo não-ácido foi definido como um episodio de pH >4.   

Resultados

Os critérios do estudo foram preenchidos por 62 pacientes (36meninos, mediana de idade 3,5meses, variando de 15 dias a 23 meses, idade média 5,5±5,1 meses). Durante o período de monitoração, 452 episódios de estresse foram registrados e pontuados pelos pais na escala FLACC. Os números de episódios de estresse variaram de 1 a 32 episódios por paciente com uma mediana de 5 episódios e uma média de 7,3 episódios. Foram temporalmente associados ao RGE 217/452 (48%) períodos de estresse e 235 (52%) não mostraram essa associação. De acordo com o intervalo de tempo predefinido, o RGE precedeu o estresse em 128/217 (59%) dos episódios de estresse relacionados ao RGE, ao passo que a ocorrência de RGE após um episódio de estresse foi observado somente em 41/217 (19%) dos episódios de estresse relacionados ao RGE. O RGE e o estresse ocorreram simultaneamente em 48/217 (22%) episódios de estresse relacionados aos RGE (Figura 1).



No computo geral, ocorreram 361 (80%) episódios de estresse nos pacientes com índice de refluxo ácido <7% e 91(20%) nos pacientes com índice de refluxo ácido patológico. A mediana do FLACC foi significativamente mais baixo nos 12 lactentes (19%) com um índice de refluxo patológico comparado com os 50 lactentes (81%) com índice de refluxo normal. Por outro lado, em 128 episódios de estresse (28% do total de eventos, 59% dos eventos temporalmente associados ao RGE), coincidiram com refluxo não-ácido e apresentaram significância estatisticamente maior no score do FLACC em comparação com 89 eventos associados ao refluxo ácido. A duração de todos os episódios de RGE variou de 3 a 1495 segundos, apresentando uma significância de correlação negativa com os escores FLACC (Tabela 1 e 2).




Conclusão

Metade dos episódios de estresse relatados durante a realização do IIMC-pH, mostrou-se estar associado com RGE nessa população estudada. Quando o estresse ocorreu associado ao RGE, ele foi mais frequente com RGE não ácido (59%). Na população estudada o escore FLACC para refluxo não-ácido, foi maior estatisticamente significante do que o refluxo ácido (6 vs. 5; p=0.01), embora esta diferença não pareça ser clinicamente importante. Estes achados, entretanto, sugerem que o volume do material refluído ou a distensão esofágica, podem desempenhar um papel na gênese dos sintomas, especialmente porque ficou demonstrado que o RGE precede o estresse. A utilização medicamentosa de antiácido para os lactentes e pré-escolares com estresse, somente deve ser prescrita naqueles pacientes nos quais tenha sido demonstrado a associação temporal entre estresse e RGE ácido, posto que na maioria dos pacientes tal associação não ocorreu.     

Meus Comentários

 

Este estudo conduzido de forma prospectiva e consecutiva trata-se da primeira investigação realizada para avaliar irritabilidade, choro inconsolável e estresse em lactentes e pré-escolares e sua associação com RGE, a quantificação dos sintomas e sua respectiva avaliação simultânea utilizando o escore FLACC e a IIMC-pH. Neste grupo de pacientes que apresentavam queixa de estresse inexplicável e ausentes de quaisquer outras enfermidades orgânicas, que não responderam satisfatoriamente durante as próximas 2 semanas de observação, levando-se em consideração as  recomendações aos pais e os aconselhamentos dietéticos, foi caracterizada uma associação temporal entre choro inconsolável e RGE em metade dos episódios de estresse. Vale enfatizar que os escores FLACC não mostraram diferenças significativas que os episódios de estresse estivessem associados ou não ao RGE. Os escores FLACC mostraram-se menores quando associados ao RGE ácido do que aos RGE não-ácidos. Este fato nos leva a supor que o refluxo não-ácido é tão doloroso quanto o refluxo ácido.

É do conhecimento geral que a prescrição de anti-ácidos tem aumentado consideravelmente nos últimos anos para os lactentes que apresentam choro inconsolável e estresse, a despeito da falta de confirmação objetiva da existência da DRGE. Portanto, a administração empírica de anti-ácidos não deve ser recomendada para os lactentes que apresentam sintomas de estresse e choro inconsolável. Entendo que nestes casos se faz necessário uma abordagem diagnóstica de investigação mais profunda para poder oferecer o melhor tratamento para estes pacientes.

Referências Bibliográficas

1-          Salvatore S e cols. - JPGN 2020;71: 465-469

2-          Birnie KA e cols. – Pain 2019;160: 5-18

3-          Yadlapati R e cols. – J Allergy Clin Immunol 2018;141: 79-81

4-          Rosen R e cols. – JPGN 2018;66: 516-54

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Avanços na motilidade e na Neurogastroenterologia

                                      Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

 

O número Agosto de 2020, da tradicional revista Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, traz um artigo intitulado “Proceedings of the 2018 advances in motility and neurogastroenterology: AIMING for the future single topic symposium” de autoria de Ambartsumyan L. e cols., que a seguir passo a resumir.

Introdução

Transtornos funcionais da motilidade gastrointestinais são frequentes na infância, geralmente causam situações debilitantes e permanecem um desafio para um tratamento eficaz. Em outubro de 2018, a NASPGHAN organizou um simpósio cujo objetivo principal foi abordar os avanços mais recentes no campo da Neurogastroenterologia. Os tópicos foram divididos em 3 módulos, que abaixo passo a resumir.

Módulo 1 - O Esôfago: Diagnóstico e manejo da disfagia, dor, tosse e algo mais

Detalhes da fisiologia e função esofágicas para a compreensão da saúde e doença, e como se relacionam com sintomas extra-esofágicos

Transtornos da motilidade esofágica são pouco compreendidos pelos seus sintomas extra-esofágicos incluindo tosse crônica e pneumonia. Os sintomas da dismotilidade esofágica podem ser idênticos ao do refluxo gastroesofágico (RGE), incluindo regurgitação, tosse, incomodo na garganta, dificuldade para comer (incluindo aversão à textura do alimento e sintomas respiratórios ao se alimentar) e voz úmida. Anormalidades motoras desde a orofaringe até o estômago, podem causar sintomas extra-esofágicos. Na faringe, baixas pressões faríngeas, duração prolongada na faringe e relaxamento incompleto e incoordenado do esfíncter esofágico superior, podem resultar em impedimento para a propulsão do bolus e mesmo parada do bolus na orofaringe. Estes pacientes apresentam-se com respiração ruidosa, voz úmida e infecções recorrentes do trato respiratório, e, também, com risco de aspiração. No corpo esofágico, a peristalse débil ou ausente, como ocorre nos pacientes com atresia esofágica, acalasia ou transtornos do tecido conetivo, podem resultar em estase do bolus no esôfago médio, o que aumenta o risco de aspiração. Estes pacientes podem apresentar saciedade precoce, disfagia, tosse noturna, regurgitação, incomodo na garganta e pneumonia, mesmo na ausência da disfagia. Finalmente, obstrução ao nível da junção gastroesofágica devido a fundoplicatura anterior ou acalasia, apresenta-se de forma similar aos transtornos peristálticos, onde a estase esofágica prevalece e os sintomas apresentados são similares. O índice de suspeição da dismotilidade passa a ser alto e a impedanciomanometria de alta resolução é o teste mais confiável na avaliação das crianças com sintomas extra-esofágicos.  

O advento do surgimento da impedanciomanometria de alta resolução transformou a compreensão da fisiologia esofágica devido ao pareamento das medidas de pressão e impedância em múltiplos seguimentos esofágicos, o que tem permitido o estudo do trânsito do bolus e sua relação com a motilidade. 

Além da avaliação dos transtornos da motilidade, a avaliação do refluxo também sofreu modificações. Testes de refluxo focalizando tanto a mensuração quantitativa do refluxo e sua associação com sintomas, permitiram uma nova classificação funcional esofágica ou pela utilização de marcadores que indiretamente sugerem a presença de refluxo subjacente (biópsias, pepsinas). Na Pediatria, o teste da impedanciometria tem se tornado o critério padrão, e deve ser realizado sem o tratamento com supressão de ácido, exceto nos pacientes cuja doença do refluxo já tenha sido comprovada, e na qual o estudo é realizado para avaliar a resposta ao tratamento.

 Ferramentas diagnósticas para uma melhor compreensão da fisiologia esofágica em adultos têm sido recentemente introduzidas no estudo da população pediátrica. A sondagem funcional para a imagem do lúmen pode ser realizada durante a endoscopia e tem surgido como uma importante ferramenta de avaliação dos transtornos esofágicos. A sondagem utiliza a impedancioplanimetria de alta resolução com a finalidade de mensurar a distensibilidade da parede tecidual como uma função da pressão e da área transversal, o que permite avaliar a contratilidade esofágica induzida por distensão.  

 

Transtorno motor esofágico: diagnóstico e manejo da acalasia, atresia esofágica e o esôfago pós fundoplicatura 

Os transtornos da motilidade esofágica que se apresentam com disfagia, podem ser devidos a causas primárias, tais como acalasia ou secundárias, após cirurgia de atresia esofágica ou fundoplicatura. O estudo radiológico contrastado é usualmente o primeiro teste realizado na criança com disfagia para avaliar possível estenose esofágica, acalasia, obstrução da junção gastroesofágica, anéis e fibrose. A impedanciomanometria de alta resolução é fundamental para o diagnóstico dos transtornos de motilidade primários (acalasia) e secundários.

As opções preferenciais de tratamento para acalasia são a dilatação com balão pneumático, miotomia de Heller geralmente associada a fundoplicatura parcial ou miotomia per-oral endoscópica (MPE).

A disfagia na criança com uma história de atresia esofágica/fístula traqueo-esofágica, previamente reparada pode ser devida tanto a estenose anastomótica com dilatação proximal, inflamação esofágica (péptica ou eosinofílica), dismotilidade esofágica ou esvaziamento esofágico prejudicado devido a complicações da fundoplicatura. Estudo radiológico contrastado, endoscopia digestiva alta e impedanciometria de alta resolução, são técnicas úteis para distinguir essas causas e auxiliar na terapêutica de reparação. Idealmente, uma equipe aero digestiva deve estar envolvida para avaliar a possível existência de fístula recorrente associadamente com broncoscopia, laringoscopia e endoscopia, simultaneamente.

A disfagia nos pacientes após a fundoplicatura pode ser causada por um envolvimento (nó) muito apertado, deslizamento do mesmo ou formação de hérnia. O estudo radiológico contrastado é útil para delinear a anatomia da fundoplicatura e contribui diretamente para o tratamento. A impedanciometria de alta resolução é extremamente importante para caracterizar o diagnóstico de elevadas pressões residuais do esfíncter esofágico inferior, altas zonas de pressão na área da fundoplicatura e quando associadas com a impedanciometria caracterizar a estase do bolus.

Vale ressaltar que o aspecto mais desafiador para o diagnóstico nos pacientes com disfagia pós cirúrgica reside no fato de que os métodos diagnósticos, acima citados, são incapazes de relacionar os sintomas funcionais, tais como disfagia, com os transtornos esofágicos motores. Para se poder contornar esta dificuldade, recentemente um método foi incorporado denominado análise do fluxo de pressão. A análise do fluxo de pressão utiliza simultaneamente mensurações adquiridas pela impedanciometria e manometria, e aplica uma análise integrada destes dados para obter uma métrica quantitativa do fluxo de pressão. Estas métricas do fluxo de pressão permitem detectar a interação entre o fluxo do bolus, padrões motores e a sintomatologia por meio de uma combinação de dados entre o trânsito do bolus, e a resistência do fluxo do bolus. Este novo método possui um potencial para guiar decisões terapêuticas para situações pós cirúrgicas de dismotilidade esofágica.

 

Transtornos esofágicos não erosivos: diagnóstico e tratamento.                    

Os transtornos esofágicos não erosivos que se apresentam com queimação retroesternal, disfagia, globus, sensibilidade ao refluxo e dor torácica, são reconhecidos como síndromes específicas que são baseadas nos sintomas relatados pelos pacientes. Esses transtornos permanecem em um espectro complexo como parte de enfermidades “orgânicas”. Considerando que os sintomas podem ser mediados por hipersensibilidade visceral, hipervigilância e estresses psicossociais, uma abordagem terapêutica e integrada é recomendável.

O diagnóstico desses transtornos requer a exclusão do refluxo gastroesofágico, transtornos na motilidade esofágica e anormalidades estruturais ou da mucosa esofágica. Nos pacientes adultos o algoritmo de abordagem para distinguir a causa dos sintomas de refluxo ou disfagia está disponível utilizando-se a endoscopia com biópsia, pHmetria/impedanciometria e manometria esofágica, aos quais podem ser aplicáveis a DRGE em pediatria (Figura 1).

 


O tratamento dos transtornos esofágicos relacionados ao refluxo nos adultos está condicionado baseando-se no fenótipo e na avaliação da anatomia e a existência de lesão, padrão do agravo do refluxo, mecanismo do refluxo, efetores da depuração esofágica, sensibilidade visceral/permeabilidade tecidual, e interações cognitivas (Figura 2). A identificação destes atributos impacta o plano de cuidado incluindo fator educacional, modificação comportamental e farmacoterapia. 



O tratamento envolve a educação a respeito da interação cérebro- trato digestivo e um plano integrado para aliviar os sintomas. Na população pediátrica, até o presente momento, há uma lacuna nos agentes farmacológicos baseados em evidência para serem recomendados para o tratamento dos transtornos esofágicos não erosivos.

 

Módulo 2 – A sensibilidade gástrica e do intestino delgado e a disfunção motora

Motilidade Gástrica: como ela funciona, como nós a sentimos e como a testamos

A função da inervação motora e sensorial do estômago é fundamental para a resposta coordenada na ingestão e sensação.  Os métodos para avaliar a dismotilidade gástrica geralmente variam de instituição para instituição, embora a cintilografia de esvaziamento gástrico permanece sendo o teste mais utilizado. Um estudo da fase sólida de quatro horas é recomendado para crianças maiores, mas não se mostra factível para lactentes e pré-escolares. A manometria antro-duodenal é menos disponível e usualmente é indicada quando se suspeita da síndrome da pseudo-obstrução intestinal. O uso da cápsula de motilidade wireless a qual monitora o pH, a pressão e a temperatura, para avaliar o trânsito gastrointestinal localizado, pode se tornar mais prevalente na avaliação das crianças em breve futuro. O teste respiratório de esvaziamento gástrico utilizando ácido octanóico C13 ainda não está largamente disponível, mas tem a vantagem de não ser invasivo, não ser radioativo e não necessitar equipamento especial.

 

Pseudo-Obstrução: apresentação clínica, etiologia, métodos diagnósticos e intervenção terapêutica.

A síndrome da Pseudo-Obstrução Intestinal (POI) em pediatria, caracteriza-se por sintomas de obstrução intestinal, na ausência de oclusão luminal física. A distensão abdominal é o sintoma mais comum, seguido de vômitos, constipação e failure to thrive. Há dois tipos de POI, a saber, a primária que inclui formas familiares de miopatia, neuropatia e mesenquimopatia, e a secundária que resulta de condições que afetam o músculo liso ou o sistema nervoso entérico.  Aproximadamente 20% dos pacientes apresentam a POI no pré-natal, 67% neonatal e 80% ao redor de 1 ano de vida. As crianças com início neonatal da POI apresentam maior incidência de envolvimento urinário, dependência de nutrição parenteral, colocação de estoma e cirurgias complexas do trato gastrointestinal em comparação com aqueles pacientes que apresentam POI mais tardiamente. A manometria antro-duodenal pode diferenciar os tipos de POI, neuropática ou miopática, e pode identificar quais regiões do trato gastrointestinal estão afetadas.

Experts enfatizam que o diagnóstico precoce da POI e a abordagem multidisciplinar desempenham papel chave nos cuidados dos pacientes. As necessidades nutricionais devem ser fornecidas por via enteral e/ou parenteral e as medicações que tratam do sobrecrescimento bacteriano e aquelas que diminuem a dismotilidade devem ser utilizadas. Vólvulo intestinal e obstrução mecânica não são incomuns e podem ser ameaçadoras da vida. Intervenções cirúrgicas incluindo a colocação de gastrostomia e/ou jejunostomia, ou a criação de uma ileostomia com colectomia associada ou não, podem ser necessárias dependendo da gravidade da enfermidade.  O desfecho das crianças com POI incluem fracasso intestinal irreversível, dependência de nutrição parenteral e hospitalizações prolongadas.     

 

Enxaqueca abdominal, dispepsia funcional, vômitos cíclicos e tudo aquilo que acompanha estes transtornos.

Os transtornos funcionais do trato gastrointestinal superior incluem aqueles que são acompanhados de dor (dispepsia funcional e enxaqueca abdominal) e outros com náusea/vômitos/regurgitação (náusea funcional/vômito funcional/síndrome dos vômitos cíclicos e ruminação).  Fatores fisiopatológicos incluem alteração da motilidade, acomodação diminuída, e sensibilidade aumentada, e infecções tais como H. pylori, regulação alterada do eixo cérebro-trato digestivo, ansiedade e predisposição genética (transportador de serotonina ou receptor transitório do potencial de canal de cation da subfamília V). Embora os grupos das síndromes de estresse pós-prandial e a síndrome da dor epigástrica não diferem em medidas de motilidade, aqueles 50% que se sobrepõem apresentam a mais alta intensidade de sintomas.

A síndrome dos vômitos cíclicos apresenta-se com episódios de vômitos recorrentes, estereotipados, geralmente acompanhados de dor. Recentemente, foram reconhecidos aspectos da síndrome dos vômitos cíclicos que incluem padrão temporal atípico, comorbidades múltiplas (como por exemplo: ansiedade, taquicardia postural ortostática e fadiga crônica). Na opinião dos experts deve ser enfatizada a natureza empírica da terapia para a síndrome dos vômitos cíclicos baseando-se nos mecanismos subjacentes, a saber: enxaqueca (agentes anti-enxaqueca), hiperativação do eixo de estresse (Amitriptilina), autonômica (tratamento da taquicardia postural ortostática) e disfunção mitocondrial (suplementos). A abordagem inclui modificações no estilo de vida e o tratamento da ansiedade (Tabela 1).     

 


 

Manejo das náuseas e vômitos

As náuseas e os vômitos são sintomas complexos que envolvem fatores psicossociais, motilidade alterada e acomodação e esvaziamento gástricos reduzidos, com sensação visceral aumentada. A manometria antro-duodenal permanece o critério padrão para o estudo da disfunção da motilidade gástrica e do intestino delgado. Os sintomas clínicos, entretanto, apresentam uma pobre concordância com os resultados destes testes de motilidade, presumivelmente porque a disfunção sensorial periférica e as alterações dos sinais de processamento do sistema nervoso central (devido a ansiedade e hiper vigilância), são causas importantes dos sintomas que não são avaliados nos testes de motilidade. Tradicionalmente, náusea e vômitos têm sido manejados com drogas pro-cinéticas (por exemplo, eritromicina, donperidona, cisaprida e metoclopramida) para melhorar a motilidade gástrica. A metoclopramida apresenta maiores efeitos adversos do que a eritromicina nas crianças, e o potencial para causar discinesia tardia com seu uso a longo prazo. Neuromoduladores, tais como, a amitriptilina são comumente prescritos a despeito do reduzido número dos ensaios clínicos. Medicamentos antieméticos, tais como, ondansetrona, também tem algum papel no alívio dos sintomas. Abordagens alternativas tais como dietéticas e modificação do comportamento, também tem um papel associado ao manejo dos sintomas refratários, bem como terapias endoscópicas com injeção de toxina botulínica no esfíncter pilórico, dilatação do piloro com balão. Manejo cirúrgico incluindo piloromiotomia e colocação de sondas para alimentação, também podem ter valor em crianças especialmente selecionadas. Finalmente, a estimulação elétrica gástrica alivia sintomas de gastroparesia idiopática e diabética em adultos e tem sido utilizada para os casos de náuseas/vômitos refratários, para aliviar os sintomas nas crianças.

 

Opções de manejo para dor abdominal e síndrome do intestino irritável

A dieta exerce um papel importante nos sintomas nas crianças com síndrome do intestino irritável (SII). Mais de 90% dos indivíduos com SII identificam que pelo menos um alimento provoca exacerbação dos sintomas. Os Fodmaps vêm ganhando um aumento da atenção como os responsáveis da SII. Embora o mecanismo ainda esteja sob investigação, a restrição dos Fodmaps da dieta provoca alívio dos sintomas nos pacientes com SII.   

 

Módulo 3 – Avanços na avaliação e no manejo da disfunção colônica e anorretal   

Avaliação da função anorretal   

Avaliação radiográfica e/ou manométrica fornece o conhecimento da fisiopatologia da função anorretal em crianças que não respondem às terapias convencionais medicamentosas e comportamentais. O defecograma permite a avaliação, em tempo real, do momento da evacuação, do movimento da junção anorretal, a mudança do ângulo anorretal e a atividade do esfíncter anal durante a evacuação.

A manometria anorretal é utilizada para avaliar as propriedades voluntárias e involuntárias anorretais e para identificar possível neuropatia localizada na medula espinhal. Pressões anais de repouso e o reflexo inibidor retoanal permitem uma avaliação detalhada da integridade neuromuscular anorretal, incluindo a triagem da Doença de Hirschsprung, e a avaliação pós operatória dessa patologia. Além disso, a manometria anorretal permite a avaliação do controle sensorial e voluntário do assoalho pélvico por meio de manobras específicas.

 

Avaliação da função colônica

Crianças com constipação refratária e incontinência fecal devem ser submetidas a avaliação diagnóstica radiográfica e manométrica da função colônica. O trânsito colônico pode ser avaliado utilizando-se marcados radiopacos e trânsito cintilográfico colônico. A cintilografia colônica permite estabelecer a diferença entre constipação com trânsito normal, constipação com trânsito retardado e retenção anorretal. A manometria colônica avalia a integridade neuromuscular do colón por meio da mensuração das modificações da pressão intraluminal. A manometria colônica permite diferenciar neuropatia e miopatia da constipação funcional e, pode identificar a dismotilidade colônica total ou segmentar, e a inercia colônica.  A motilidade colônica permite auxiliar no desfecho dos enemas de continência anterógrados e auxiliam na tomada de decisão cirúrgica nos pacientes com constipação refratária. 

 

Manejo clínico da constipação intratável

Estudos recentes indicam que a fisioterapia do assoalho pélvico alivia sintomas da constipação funcional e a incontinência fecal. Terapêuticas tradicionais para constipação crônica nas crianças, incluem agentes que aumentam o bolo fecal, substâncias que tornam as fezes mais pastosas, laxantes osmóticos e estimulantes do peristaltismo. O polietilenoglicol é recomendado prioritariamente como tratamento de manutenção nas crianças com constipação, e tem sido demonstrado ser mais eficaz e mais bem tolerado do que a lactulose, óleo mineral, leite de magnésia e placebo. Medicamentos para as situações de trânsito colônico lento, incluem secretagogos, agentes serotonérgicos e inibidores do transporte de ácido biliar no íleo. Recentemente, estimulação elétrica interferencial transabdominal mostrou-se ser eficaz no aumento da frequência da evacuação, diminuição da dor abdominal e da incontinência fecal, nas crianças com constipação refratária devido a trânsito colônico lento.

 

Manejo cirúrgico da constipação intratável

A intervenção cirúrgica deve ser considerada nas crianças com constipação refratária cujo tratamento clínico fracassou. De acordo com experts na área, a avaliação de um paciente antes do procedimento cirúrgico deve incluir enema colônico contrastado, estudo radiológico do trânsito colônico, manometria anorretal e manometria colônica. Enemas de continência anterógrados permitem a administração de fluxos para proporcionar de forma eficaz evacuações diárias. Estudos recentes estão em evolução para determinar a utilidade e o momento da ressecção colônica quando da aplicação dos enemas anterógrados. A manometria colônica pode ser de auxílio para guiar a decisão da realização cirúrgica e deve ser repetida antes da ressecção ou da retirada da ostomia. Ressecção colônica segmentar deve ser reservada para aqueles pacientes cujo enema anterógrado tenha fracassado e que ainda continuam a apresentar anormalidades segmentares na motilidade colônica. Uma derivação da ileostomia ou da colostomia deve ser considerada naqueles pacientes cujo enema anterógrado tenha fracassado ou naqueles pacientes que apresentam disfunção colônica total ou inércia colônica. Tem sido demonstrado que a derivação colônica pode permitir a recuperação da motilidade colônica.

 

Conclusões

Neurogastroenterologia Pediátrica: onde ela começou e onde ela é liderada

O termo neurogastroenterologia apropriadamente salienta que os transtornos mais frequentes da motilidade e aqueles transtornos que são tradicionalmente rotulados como transtornos funcionais gastrointestinais, são resultados de patologia entérica e/ou interações anormais cérebro-trato digestivo. Tecnologia sofisticada para mensurar as características motora e sensorial do trato gastrointestinal superior e inferior, estão sendo desenvolvidas para promover um melhor conhecimento da fisiopatologia da maioria dos transtornos neurogastroenterológicos na infância. A tendência atual neste campo é tentar desenvolver testes diagnósticos menos invasivos, mas igualmente confiáveis, para substituir os testes mais invasivos de manometria anorretal nas crianças. Uma compreensão mais profunda dos mecanismos de doença, para desenhar terapêuticas baseadas nos seus respectivos mecanismos, faz-se necessária. Nós ainda temos muito que aprender acerca da genética dos transtornos de motilidade intestinal e acerca dos fatores não genéticos que afetam a motilidade nas crianças. Opções terapêuticas para crianças com transtornos neurogastroenterológicos, incluem medicamentos, cujo alvo por um lado, é o trato intestinal e outros que são dirigidos para o cérebro. O tratamento deve ser desenhado no contexto do modelo biopsicossocial. Técnicas que no futuro serão desenvolvidas para auxiliar as crianças com as formas mais graves de transtornos da motilidade intestinal, incluem neuromodulação e manipulação seletiva da microbiota colônica.

 

Meus Comentários

Os transtornos funcionais do trato digestivo têm assumido uma importância cada vez maior no cenário clínico da gastroenterologia devido, em primeiro lugar a seu reconhecimento pelos gastroenterologistas, em segundo lugar por sua crescente prevalência no mundo ocidental e em terceiro lugar por sua característica etiologia multifatorial. Com o avanço das técnicas de investigação dos modelos fisiopatológicos envolvidos nas gêneses dos diversos tipos de manifestações clínicas, que em muitas situações são superponíveis, pode-se cada vez mais individualizar os diagnósticos clínicos e conhecer seus mecanismos fisiopatológicos. A partir desta individualização específica de cada entidade clínica tem sido possível, cada vez mais, a proposição de ações terapêuticas visando atuar no alvo das causas dos processos, ao invés de apenas agir sobre as consequências de forma inespecífica, como até há pouco tempo se fazia. Uma grande conquista obtida mais recentemente foi o reconhecimento da transcendental importância do eixo cérebro-trato digestivo, o que tem permitido a proposição de ações terapêuticas novas que, até então, não faziam parte do arsenal terapêutico disponível. Quanto mais se avança na metodologia investigativa maiores são os novos conhecimentos adquiridos como muito bem está abordado neste artigo. Quanto mais respostas são esclarecidas mais perguntas continuam a ser feitas, e, isto espelha a grandeza e a inquietude do espírito do investigador.     

Referências Bibliográficas       

1-    Ambartsumyan L e cols – JPGN 2020:71;e59-e67

2-   Rosen B e cols – Neurogast Motil 2018: 30

3-   Thapar N e cols – Jpgn 2018:66;991-1019

4-   Diamanti A e cols – JPGN 2019:69;212-7

      

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Doença do Refluxo Gastroesofágico: uma atualização da apresentação, prevalência, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento (Parte 3 - A)


Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto


Parte 3: Avaliação dos testes diagnósticos tradicionais e das novas propostas

A Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE) é uma condição clínica de elevada prevalência, que afeta até 20% da população do mundo ocidental. A identificação dos pacientes portadores da DRGE torna-se um desafio devido ao desempenho sub-ótimo dos testes diagnósticos. Pacientes suspeitados de sofrer da DRGE são inicialmente testados pela resposta terapêutica à supressão ácida, geralmente com o emprego de um inibidor de bomba de próton (IBP). Esta abordagem, conhecida sob a denominação de ensaio do IBP é utilizada com base nos sintomas que se creem causados pela DRGE. Queimação retroesternal (azia) e regurgitação, são os dois sintomas principais da DRGE, embora esta enfermidade possa causar outras queixas, tais como: dor torácica ou sintomas pulmonares, no ouvido, no nariz ou na garganta. Entretanto, os sintomas isolados não são apropriadamente sensíveis ou específicos para orientar as estratégias terapêuticas. Por outro lado, a resposta ou a falta dela devido a utilização de um ensaio inicial terapêutico com o IBP, não descartam e nem tão pouco confirmam, que a DRGE seja uma possível etiologia caso os sintomas persistam.   

Os testes diagnósticos para a DRGE são utilizados nas intervenções pré-cirúrgicas ou endoscópicas, para assegurar que os pacientes realmente apresentam a DRGE, e, também, nos pacientes com sintomas persistentes, a despeito do ensaio terapêutico inicial com o IBP. A persistência dos sintomas apesar do uso dos IBP, é a indicação mais frequente e mais desafiadora para o diagnóstico da DRGE. Considerando-se a complexidade dos sintomas apresentados pelos pacientes e os avanços técnicos no campo da pesquisa da DGRE, é importante e ao mesmo tempo desafiador, determinar se o refluxo contribui para os sintomas nos pacientes que não respondem a uma supressão agressiva dos IBP. A otimização de estratégias para aprimorar o diagnóstico da DGRE torna-se crítico para o êxito terapêutico e, ao mesmo tempo, reduzir o custo desnecessário da realização de testes diagnósticos sub-ótimos.

Esta revisão tem por objetivo avaliar o desenvolvimento técnico dos testes diagnósticos da DRGE, ao longo das décadas passadas, analisar a capacidade para identificar e/ou excluir a DRGE, e prever adequadamente a resposta ao tratamento. Estas competências são importantes para o desenvolvimento de novas drogas bloqueadoras de ácido e antirrefluxo, bem como os tratamentos endoscópicos e cirúrgicos da DRGE (Figura 1 e Tabela 1).
Figura 1- Teste diagnósticos da DRGE.


Tabela 1 – Principais avanços nos métodos diagnósticos da DRGE e suas desvantagens.

Endoscopia e Biópsia

Nos pacientes com sintomas da DRGE a realização precoce da endoscopia deve ser considerada no caso de seus sintomas fornecerem evidências de doença com complicações (por exemplo disfagia, perda de peso, hematêmese), Esofagite Eosinofílica (EEo), infecção ou lesão medicamentosa. A ausência de resposta ao tratamento apropriado com a terapia antisecretora, também deve ser prontamente levada em consideração para a realização da esôfagogastroduodenoscopia. Além disso, a endoscopia deve ser utilizada para o diagnóstico de esôfago de Barret, bem como, deve geralmente fazer parte da avaliação pré-operatória, naqueles pacientes considerados para serem submetidos à cirurgia antirrefluxo. A DRGE pode ser diagnosticada com segurança quando a endoscopia revela esofagite, porém, deve-se considerar que a endoscopia pode mostrar-se normal em aproximadamente 2/3 dos pacientes desprovidos de tratamento e que sofrem de azia e regurgitação.

Nos pacientes com sintomas típicos de refluxo os achados endoscópicos podem incluir esofagite, estenoses, esôfago de Barret e aspectos típicos de EEo. A endoscopia identifica estas enfermidades com altos graus de especificidade. Por outro lado, a endoscopia detecta a DRGE com baixo nível de sensibilidade e rendimento diagnóstico, porque muitos pacientes não apresentam erosões esofágicas decorrentes tanto da existência da DRGE não erosiva como por tratamentos recentes com os IBP.

Nos pacientes portadores da DRGE não erosiva, a avaliação histológica das biópsias da mucosa esofágica pode demonstrar papilas alongadas, hiperplasia das células basais, dilatação dos espaços intercelulares e infiltrado neutrofílico e/ou eosinofílico. Uma pontuação histológica global que incluiu todos esses achados diferenciou pacientes com a DRGE não erosiva, daqueles que apresentaram azia funcional e indivíduos sadios. Esta investigação utilizou como padrão de referência a monitoração com o teste da impedância–pHmetria.

Estudo radiológico contrastado do esôfago

O rastreamento fluoroscópico, após a ingestão de bário, pode detectar refluxo gastroesofágico espontâneo ou provocado. Vale ressaltar que a detecção do refluxo durante o exame contrastado identifica a DRGE com baixas sensibilidade e especificidade. O refluxo espontâneo ou induzido por este tipo de estudo pode ser observado em indivíduos sadios e pode estar ausente em pacientes com a DRGE.  

Monitoração ambulatorial do refluxo

Indicações

O papel original da pHmetria ambulatorial foi para determinar a presença de refluxo nos pacientes sintomáticos com endoscopia esofágica normal. Os pacientes com sintomas clássicos de refluxo, tais como, azia e regurgitação, que apresentavam achados endoscópicos normais, realizaram o teste da pHmetria ambulatorial durante 24 horas, para determinar se seus sintomas eram causados por uma exposição esofágica anormal de ácido, antes de iniciar o tratamento medicamentoso. Esta situação ocorreu em uma época em que a terapêutica supressiva de ácido era sub-ótima, o que necessitava de uma confirmação adicional fisiológica para o diagnóstico da DRGE. Entretanto, com o passar do tempo e com o uso de métodos de supressão ácida mais agressiva (IBP), a pHmetria começou a detectar a DRGE em níveis mais baixos de especificidade. Atualmente, a monitoração do refluxo esofágico está reservada para os pacientes que apresentam sintomas refratários ao uso dos IBP. Este objetivo pode ser alcançado tanto com a pHmetria isolada quanto com a impedanciometria associada a pHmetria.

 Indicações para a monitorização do refluxo:
·   Para documentar uma exposição esofágica anormal de ácido, nos pacientes que apresentam endoscopia negativa e considerados para serem submetidos a procedimentos endoscópicos ou cirurgia antirrefluxo;
·   Para os pacientes que tenham sido submetidos a um procedimento endoscópico, terapêutico ou a cirurgia antirrefluxo, que persistem em apresentar sintomas da DRGE;
· Para avaliar a suficiência no controle de ácido nos pacientes com DRGE complicada, tal como, o esôfago de Barret;
· Para avaliar pacientes refratários ao tratamento com os IBP (indicação mais comum).

Referências Bibliográficas

·        Vaezi MF et al; Sifrim D - Gastroenterology 2018;154:289-301
·        Zerbibi et al – Clin Gastroenterol Hepatol 2013;11:366-372
·        Vieth et al -Clin Gastroenterol Hepatol 2016;14:1544-1551
·         Vakil et al – Aliment Pharmmacol Ther 2017;45:1350-1357      


quinta-feira, 18 de abril de 2019

Doença do Refluxo Gastroesofágico: uma atualização da apresentação, prevalência, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento (Parte 2 - B)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto


Mecanismos de Refluxo      
          
Em geral o refluxo ocorre por meio de quatro mecanismos, a saber: relações transitórias do EEI (rtEEI), baixa pressão do EEI, relaxamentos do EEI associados a deglutição e a tensão durante os períodos de baixa pressão do EEI. Os mecanismos que previnem contra o refluxo variam com as circunstâncias fisiológicas e a anatomia da junção esôfago-gástrica. Por exemplo, o diafragma crural pode ser de capital importância devido ao aumento abrupto da pressão intra-abdominal e o esforço. Em contraste a pressão basal do EEI, pode ser de importância primária durante a posição de repouso recumbente e no estado pós-prandial, e uma hipotensão do EEI pode predispor os pacientes a sofrerem mais episódios de refluxo à noite e após as refeições. Quando estes mecanismos protetores estão comprometidos os efeitos prejudiciais tornam-se somatórios, aumentando os números dos eventos de refluxo e uma exposição anormal aos refluxos esofágicos (Figura 8).

Figura 8

Há uma evidência convincente de que os rtEEI são os mecanismos mais frequentes de refluxo durante os períodos de pressão normal do EEI (acima de 10mmHg). Por definição relaxamentos transitórios da EEI ocorrem independentemente da deglutição, não são acompanhados por peristaltismo, são acompanhados por inibição diafragmática, e persistem por mais longos períodos do que os relaxamentos da EEI induzidos pela deglutição. O estímulo dominante da rtEEI é a distensão do estômago proximal, a qual estimula as fibras intraglanglionares terminais encontradas nos receptores finais dos aferentes vagais.

A DRGE pode ocorrer em decorrência de uma diminuição da pressão do EEI, tanto por esforço induzido ou por refluxo livre. O refluxo induzido por esforço ocorre quando há um episódio de hipotensão do EEI em associação com um aumento abrupto da pressão intra-abdominal. Dados de estudos de manometria indicam que este fato raramente ocorre quando a pressão do EEI é superior a 10 mmHg. O refluxo livre é caracterizado por uma diminuição do pH intra-esofágico na ausência de uma alteração identificável, tanto na pressão intragástrica quanto na pressão do EEI.

Episódios de refluxos livres são observados somente quando a pressão da EEI se encontra entre 0-4 mmHg da pressão intragástrica; este fato é observado em pacientes no estágio final da esclerodermia ou após a miotomia cirúrgica em pacientes com acalasia.        

Depuração Esofágica

Após ocorrer um evento de refluxo, a duração que a mucosa esofágica permanece exposta ao suco gástrico é denominada tempo de exposição ao refluxo ou tempo de contato do bolus. A exposição da mucosa aos componentes cáusticos e irritantes do suco gástrico provoca lesão, inflamação e sintomas; a depuração prolongada do ácido, se correlaciona com a intensidade da esofagite e a presença de metaplasia de Barret. Entretanto, o limiar para estas respostas e complicações variam, e, tudo indica, sejam influenciadas pela integridade do epitélio. A avaliação convencional da depuração esofágica, tem focado, portanto, na mensuração do pH, e o tempo de depuração ácida esofágica é determinado pelo tempo no qual o lúmen esofágico permanece acidificado pelo pH menor que 4, após o evento de um refluxo. Embora esta análise focalize sobre a acidez, novas metodologias têm utilizado a impedância como um sinal para analisar a presença e a depuração do bolus. Estas ferramentas têm sido úteis para identificar subpopulações que responderão à supressão ácida, e isto enfatiza a importância da exposição do refluxo além do ácido. 

A depuração esofágica do bolus e do ácido inicia-se com o peristaltismo após a ocorrência de um evento de refluxo, e esta ação é complementada por um tamponamento adicional causado pela saliva deglutida.  Portanto, as duas principais causas potenciais de exposição prolongada ao refluxo e da depuração ácida são decorrentes de uma disfunção que prejudica o esvaziamento esofágico via peristaltismo e da função salivar prejudicada. Entretanto, outro componente importante que pode impedir a depuração do refluxo é a hérnia de hiato, posto que esta anormalidade anatômica está associada ao re-refluxo durante a deglutição, a qual burla a função de esvaziamento pelo peristaltismo.

Sintomas não esofágicos da DRGE

Devido a exposição do esôfago ao material refluído, a DRGE provoca sintomas esofágicos (queimação retroesternal, regurgitação e dor torácica) e lesões (esofagite de refluxo, estenoses e esôfago de Barret). Entretanto, a DRGE também tem sido envolvida na patogênese de um número significativo de manifestações sintomáticas denominadas atípicas ou extra esofágicas, incluindo o ouvido, nariz e garganta (laringite e faringite); transtornos pulmonares (asma e tosse) e dentárias (erosão dentária). Há alguma controvérsia a respeito do papel da DRGE na patogênese destes transtornos e pouco se conhece acerca da fisiopatologia das manifestações extra esofágicas da DGRE.

As manifestações da DRGE podem surgir por meio de um mecanismo direto de refluxo, no qual a microaspiração do conteúdo gástrico causa lesão ao ouvido, nariz e garganta ou no epitélio respiratório.  Esse mecanismo encontra-se apoiado por estudos demonstrando a ocorrência de refluxo para as vias respiratórias superiores ao utilizar monitoramento do pH faríngeo ou análise dos componentes do suco gástrico (pepsina e bile) no fluido de lavagem brônquio-alveolar.  

Sensibilidade aos episódios de refluxo

A sensibilidade aumentada ao refluxo ácido tem sido implicada na baixa resposta terapêutica à supressão ácida nos pacientes com DRGE não erosiva. A sensibilidade mecânica poderia também contribuir para os sintomas relacionados ao refluxo. Pacientes com a DRGE erosiva não apresentam sensibilidade mecânica alterada do esôfago em comparação com controles, porém, pacientes com esôfago sensível ao ácido apresentam sensibilidade aumentada à distensão esofágica com balão. Estudos utilizando distensão com balão têm demonstrado a indução de queimação retroesternal e, também, que o esôfago proximal é mais sensível do que o distal. A ativação das vias aferentes mecânico-sensíveis quando o esôfago é distendido durante os eventos de refluxo, é, portanto, um importante mecanismo de geração de sintomas durante um episódio de refluxo fracamente ácido. Por exemplo, isso poderia ocorrer nos pacientes sintomáticos a despeito de uma terapia de supressão ácida adequada (Figura 9).  
 
   Figura 9


Mecanismos periféricos

Terminações nervosas que supostamente intermediam a sensibilidade dos conteúdos gástricos refluídos estão presentes na camada submucosa do esôfago, o que determina que o sinal do refluído necessita cruzar a barreira mucosa para possibilitar a percepção dos sintomas. A resistência diminuída pela penetração transmucosa dos componentes do material refluído é um potencial mecanismo periférico para a hipersensibilidade esofágica ao refluxo. A correlação morfológica desta perda da integridade da mucosa se deve ao achado de espaços intercelulares dilatados, quando as biópsias esofágicas são estudadas pela histologia, ou de forma mais acurada, pela microscopia eletrônica. Uma série de estudos têm demonstrado a existência de receptores ácidos sensíveis, expressos nas terminações nervosas da submucosa, e que são os transdutores sensoriais para os sintomas induzidos pelo refluxo. Estes estudos fornecem evidências de que os espaços intercelulares dilatados são uma consequência dos fatores agressivos do material refluído, que induzem o conteúdo do lúmen esofágico a ativar as terminações nervosas, levando à geração dos sintomas (Figura 10).  
    Figura 10
 
Mecanismos centrais

Mecanismos centrais, atribuídos às alterações do processamento dos sinais aferentes desde o esôfago, também têm sido explicados na patogênese da hipersensibilidade esofágica. Esses mecanismos poderiam envolver a amplificação dos sinais de entrada e a falta de inibição das vias descendentes anti-noceptivas. Estas vias são reguladas por fatores que afetam os mecanismos centrais, tais como: estresse, ansiedade e características da personalidade.

Sistemas de neurotransmissores envolvidos nos efeitos anti-noceptivos centrais incluem opioides endógenos, endocanabinóides e serotonina.

Inúmeros pacientes com DRGE relatam que o estresse exacerba seus sintomas. Estudos realizados por Fass e cols. e Bradley e cols. evidenciaram que estressores agudos exacerbaram os sintomas de queimação retroesternal em pacientes com DRGE, por acentuarem a resposta perceptiva à exposição ácida no esôfago. O estresse está frequentemente associado a alterações do processamento central dos sinais aferentes, como por exemplo, a queimação retroesternal.

Comorbidades psicossociais também determinam a intensidade da DRGE e a resposta à terapêutica. Pacientes com sintomas de refluxo geralmente sofrem de ansiedade e depressão. Estes pacientes apresentam acentuados efeitos dos sintomas e referem baixa qualidade de vida, mesmo quando os parâmetros de refluxo não diferem daqueles pacientes que não apresentam essas comorbidades.   

Conclusões

A fisiopatologia da DRGE continua a ser uma área de progressos na pesquisa, graças aos avanços tecnológicos que têm contribuído para as mudanças de conceitos. O conhecimento atual origina-se de pesquisas que têm focalizado na exposição ao refluxo e na respectiva sensibilidade esofágica à exposição do material refluído. A consideração de fatores motores e anatômicos tem permitido uma melhor compreensão das causas da exposição do refluxo. A natureza do material refluído determina seu impacto na existência de sintomas, lesões e complicações. Mecanismos sensoriais determinam a relação entre a exposição ao refluxo e a geração dos sintomas. Fatores primordiais são a função de barreira da mucosa, a expressão dos nervos sensoriais e o nível da modulação no sistema nervoso central. As respostas do sistema nervoso central são moduladas por vários fatores, tais como: estresse e comorbidades psicossociais. Uma maior compreensão dos mecanismos fisiopatológicos dos sintomas da DRGE, e suas consequentes lesões, devem acarretar novos e mais eficazes opções para um melhor alvo no tratamento de cada paciente individualmente.    

Referências Bibliográficas

       1) Tack J & Pandolfino JE – Gastroenterology 2018;154:277-288
       2)Fass & cols. – Gastroenterology 2008;134:696-705
       3)Bradley & cols. – Gastroenterology 1993;88:11-19
       4)Jansson & cols. -Aliment Pharmacol Ther 2007;26:683-691