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quinta-feira, 8 de junho de 2017

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se revelou de alta prevalência no mundo ocidental (Parte 1)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo

(I-GASTROPED)

A Doença Celíaca (DC) é uma enfermidade sistêmica autoimune decorrente da intolerância permanente ao glúten da dieta contido no trigo, centeio e cevada. A DC pode surgir em qualquer momento da vida nos indivíduos geneticamente susceptíveis que têm por hábito alimentar o consumo dos cereais que contém glúten. Trata-se de uma enfermidade de alta prevalência no mundo ocidental afetando aproximadamente 1 em cada 100 indivíduos, cujos sintomas apresentam um elevado grau de variabilidade.

Esta enfermidade apresenta uma característica peculiar, porque, para ser desencadeada associa um fator ambiental, o glúten, a outro genético, o complexo HLA DQ2/DQ8. 

Fator ambiental (glúten) + Genético (HLA DQ2/DQ8)

Na figura 1 abaixo estão representadas a evolução da raça humana desde seu surgimento há 2,5 milhões de anos até os dias atuais e suas respectivas modificações quanto ao seu comportamento social e seus hábitos alimentares. Depreende-se deste esquema que até há 10.000 anos não havia grãos contendo glúten na natureza, portanto, Não existia a DC. A partir das mudanças dos hábitos das sociedades humanas que passaram, de atividades coletoras/caçadoras e costumes nômades, a viver em comunidades sedentárias, durante o período Neolítico, deu-se início à revolução da agricultura como parte essencial na produção e consumo de alimentos. Os cereais passaram, então, a ser cultivados de forma extensiva devido à sua alta qualidade nutricional. Na figura 1 abaixo, também estão representadas a família das Gramíneas e suas respectivas subdivisões até a Tribo das Hordaceas, a qual engloba o trigo, a cevada e o centeio.

Figura 1- Representação esquemática da evolução do ser humano e ocultivo dos cereais.

O glúten do trigo é uma mistura proteica heterogênea elástico-viscosa solúvel em álcool de gliadinas e gluteninas. As gliadinas fazem parte de um grupo de proteinas vegetais denominadas prolaminas, as quais apresentam uma elevada concentração do amino-ácido prolina. As prolaminas encontram-se nos cereais e recebem diversos nomes de acordo com seu respectivo cereal, a saber: gliadinas no caso do trigo, hordeinas no caso da cevada e secalinas no caso do centeio. Estas proteínas, em geral, somente são solúveis em soluções alcoólicas.  

A viscosidade e a elasticidade são propriedades naturais dos elementos proteicos do glúten; a gliadina é uma proteína bastante extensível, mas pouco elástica, responsável pela ductibilidade e coesividade, enquanto que a glutenina é o polímero responsável pela elasticidade da estrutura. A complexa mistura dessas duas cadeias proteicas longas através de pontes de dissulfito com água (através as pontes de hidrogênio) resulta na formação de uma massa com propriedades de coesão e viscoelasticidade, onde o glúten retém a água nos interstícios das cadeias proteicas, conforme a representação da figura 2.

Figura 2- Representação esquemática da estrutura química do glúten.

As propriedades elástico-viscosas são essenciais para a formação da massa da farinha de trigo e são responsáveis por dar ao pão sua peculiar textura e sabor. Em virtude destas propriedades específicas o glúten é largamente utilizado na indústria alimentícia, não somente em produtos que estão diretamente associados ao trigo, tais como, pães, biscoitos e macarrão, mas também em alguns outros, de forma oculta, como por exemplo, ingredientes de molhos, sopas instantâneas e inclusive medicamentos. Uma consequência direta desta alta prevalência na dieta, faz com que a ingestão de glúten embutido nos alimentos, no mundo ocidental, seja elevada, ao redor de 15 a 20 gramas por dia.

A figura 3 representa a estrutura do grão do trigo e todos os seus componentes químicos. O endosperma é a fonte nutritiva para a planta durante seu crescimento e tem por base amido e semolina, e proteínas de depósito, entre elas o glúten, frutanos, glicolípides, fosfolípides, minerais e vitaminas. O farelo é a cobertura externa fibrosa do grão e é a maior fonte de polissacarídeos desprovida de amido (fibra). O germe é a parte do grão que irá brotar a nova planta. Ele contém proteínas metabólicas, tais como aglutininas do germe do trigo e inibidores da amilase/tripsina, triglicerídeos, polissacarídeos, bem como minerais e vitaminas.

Figura 3- Representação esquemática do grão de trigo.

A massa proteica do trigo é composta por 80% de glúten (68% de gliadina e 32% de glutenina), 13% de globulina e 7% de albumina. Cada variedade de trigo expressa múltiplas gliadinas (, ϒ, Ѡ) que são ligadas a gluteninas de baixo e de alto peso molecular.

As variedades modernas de trigo contêm 3 genomas completos que codificam gliadinas e gluteninas. Até 100 proteínas diferentes de glúten podem estar presentes em uma simples variedade de trigo, e, portanto, muitas delas podem estar envolvidas na patogênese da DC. Como exemplo, na figura 4 está representado o mapeamento genético da gliadina.

A gliadina apresenta o seguinte mapeamento, como se lê abaixo: vermelho – efeito citotóxico; amarelo – atividade imunomoduladora; azul – liberação da zonulina e permeabilidade intestinal; verde – liberação de IL8 na DC.


Figura 4- Representação esquemática do mapeamento genético da gliadina.

Histórico

A DC foi inicialmente relatada por Areteu da Capadócia, no século I da era cristã. Areteu descreveu as fezes características, o caráter crônico da enfermidade, a maior incidência no sexo feminino e a maior probabilidade de que crianças viriam a ser afetadas. Areteu propôs a denominação desta enfermidade de “koiliakos” que em grego significa “ventre abaulado”, pelo aspecto clínico frequentemente observado nos estágios mais avançados da forma clássica da enfermidade, conforme pode ser comprovado na figura 5.   

Figura 5- Aspecto clínico da manifestação clássica da DC.

Entretanto, deveu-se a Samuel Gee, em 1888, na Inglaterra a descrição do quadro clínico clássico da DC nos tempos modernos, em uma aula para estudantes de Medicina intitulada “On the celiac affection”, a saber: ”indigestão crônica encontrada em pessoas de todas as idades, especialmente entre 1 e 5 anos”. Além da descrição detalhada do quadro clínico da DC, Gee afirmava que “se porventura pudesse haver cura para a DC, esta deveria vir através da dieta, e que a permissão para a ingestão de farináceos deveria ser escassa”. Gee também observou que “uma criança portadora de DC que havia sido alimentada exclusivamente com os melhores mexilhões holandeses diariamente, desenvolveu-se maravilhosamente bem, mas que havia sofrido recidiva da enfermidade quando a temporada dos mexilhões se extinguiu”. Desta forma, Gee pode documentar a melhoria clínica do paciente utilizando-se uma dieta isenta de glúten e o surgimento da recidiva após a reintrodução do glúten na dieta da criança.

 Entretanto, apesar desta descrição de Gee, durante mais de 60 anos a etiologia da DC permaneceu desconhecida apesar das inúmeras hipóteses etiológicas levantadas pelos investigadores para explicar sua causa, assim como as mais variadas tentativas frustrantes de tratamento. Por exemplo, Shultz, em 1904, atribuia a uma alteração da flora putrefativa intestinal a responsável pela DC, enquanto que, Herter e Host, em 1908, propunham que a etiologia se devia à flora lactobacilar. Por outro lado, Henfner, em 1909, considerou que a DC se devia a existência de uma grave insuficiência digestiva após o desmame e preconizava a utilização do leite humano para seu tratamento. Na década de 1920, o médico alemão Sydnei Hass revolucionou o tratamento dietético propondo algo inédito à época, ou seja, o uso de uma dieta de bananas, inclusive excluindo os carboidratos dos cereais. Esta proposta terapêutica chamou a atenção por ter baixado de forma espetacular a alta mortalidade da DC, e, por isto, tornou-se muito recomendada durante algumas décadas. Stheeman, em 1932, observou que um dos seus pacientes com DC apresentava um agravo da diarreia após a ingestão de alimentos contendo amido, pois a criança revelava intensa idiossincrasia a alimentos contendo biscoitos, pães e farináceos. Parsons, ainda em 1932, ao fazer a revisão de 94 casos de DC ocorridos durante a infância reconheceu que as crianças enquanto recebiam aleitamento natural exclusivo não apresentavam sintomas sugestivos da DC, o que somente viria a ocorrer após a introdução dos alimentos do desmame. Afirmava, também, que a DC podia afetar crianças e adultos, e, chamava a atenção para a grande variabilidade dos sintomas e para o papel que os carboidratos desempenhavam para o desencadeamento da enfermidade. Luel e Campos, em 1934, descreveram as alterações radiológicas presentes na DC, tais como, motilidade intestinal diminuída, alterações no padrão da mucosa jejunal com desaparecimento do seu pregueado característico e a nítida fragmentação da coluna de bário. 

No entanto, deveu-se ao pediatra holandês Willem Karen van Dicke a comprovação do efeito deletério do trigo, ao demonstrar que sua fração proteica, o glúten, em especial a gliadina, se constitui no agente etiológico provocador da DC. Dicke buscava incessantemente o agente causador da DC desde o início dos anos 1940, em sua clínica em Ultrecht, mas foi somente em 1950 que este pesquisador conseguiu comprovar, na apresentação de sua tese de doutoramento, de forma definitiva, que o trigo é o agente causador da DC. Dicke observou que no período da Segunda Guerra Mundial (1939-45), durante a ocupação nazista na Holanda, em virtude da grande escassez de alimentos, em especial o pão e outros derivados do trigo, paradoxalmente à sua expectativa, as crianças portadoras de DC apresentaram uma nítida melhoria clínica. Por outro lado, Dicke, para sua surpresa, notou também, que após o término da guerra quando os Aliados passaram a suprir alimentos à população, inclusive os cereais, como o trigo, estas mesmas crianças vieram a apresentar novamente os sintomas da DC e deterioração clínica evidente. Foi a partir destas observações que Dicke finalmente pode concluir que o trigo era o fator deletério causador da DC, mesmo sem ainda dispor da possibilidade de realização da biópsia duodenal e consequentemente comprovar as alterações morfológicas características da DC. Em 1954, Dicke e Charlotte Anderson, trabalhando em Birminghan, Inglaterra, descreveram a lesão histológica da mucosa intestinal da DC e confirmaram que o tratamento deveria ser apenas dietético com a introdução de uma dieta isenta de glúten.

Uma grande conquista para o diagnóstico da DC ocorreu em meados da década de 1950 quando Margot Shiner descreveu um equipamento para a realização da biópsia duodenal e publicou o resultado desta novidade em um paciente portador de DC na revista Lancet, em 1956 (Figura 6).

Figura 6- O grande avanço que Margot Shiner introduziu para o diagnóstico histológico da DC.

Outro grande avanço para o diagnóstico da DC, veio logo a seguir, e deveu-se ao tenente-coronel médico Crosby. No início do inverno de 1952-53, Crosby era o diretor médico do Hospital das Forças Armadas americanas na Coréia, e, foi neste período de tempo que ele teve conhecimento de que alguns soldados e suas esposas poderiam sofrer de DC. Ao retornar aos Estados Unidos, em 1963, no Hospital Walter Reed, em Washington, Crosby organizou uma equipe de trabalho para investigar o que era denominado “Sprue”. Para tal ele desenvolveu juntamente com o engenheiro mecânico Kugler um instrumento menos invasivo que o de Shiner, para a obtenção de fragmentos de biópsia intestinal, o qual passou a ser conhecido pela denominação de “cápsula de Crosby-Kugler”. A partir da introdução desta nova cápsula foi possível a realização das biópsias de intestinal delgado de forma rotineira para a investigação da DC. Esta nova técnica de investigação resultou no avanço mais espetacular para a época, pois, passou a proporcionar o estudo detalhado das lesões da mucosa do intestino delgado tornando-se, desde então, até os dias atuais, no padrão ouro para o diagnóstico da DC. Nas figuras 7 e 8 podem ser visualizadas a “cápsula de Crosby-Kugler” com o orifício de abertura lateral que obtém o fragmento de mucosa intestinal e parte do procedimento de biópsia.    
Figura 7- Cápsula de Crosby-Kugler.


Figura 8- Procedimento da realização da biópsia de intestino delgado.

Nesta ocasião alcançava-se assim o conhecimento de 3 importantes elementos, a saber: 1- que o glúten é o agente desencadeador da DC; 2- que havia uma indiscutível e facilmente identificável lesão da mucosa do intestino delgado; 3- a disponibilidade de um instrumento para a realização rotineira de biópsias do intestino delgado e com isto possibilitar o início da solução do mistério da patogênese da DC.

No nosso meio, após minha especialização no Policlínico Alejandro Posadas em Buenos-Aires, em 1973, aonde tive a possibilidade de reconhecer a existência da DC e desenvolver a experiência no seu manuseio, em 1974, ao retornar à minha prática no Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina, descrevemos o primeiro caso com documentação completa da DC. Nas figuras 9 e 10 abaixo, podem ser observadas as diferentes fases do nosso paciente antes, durante e após o tratamento.


Figura 9- Paciente antes do tratamento no momento do diagnóstico e após o início da dieta isenta de glúten com comprovação diagnóstica pela realização da biópsia de intestino delgado.


Figura 10- Paciente após alguns meses em dieta isenta de glúten em comparação com o momento do diagnóstico.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (50)

1- A consolidação da tradição em Pesquisa, Produção e Divulgação do Conhecimento, Ensino e a sólida formação de Especialistas em Gastroenterologia e Nutrição em Pediatria (parte 6)

1.2 – A produção dos conhecimentos acumulados que resultou na publicação do Tratado de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria
 
À medida que nossa formação acadêmica foi se consolidando até alcançar uma massa crítica nacionalmente respeitável no meio acadêmico e dos profissionais de saúde, foi sendo maturada a ideia de escrevermos um livro sobre os mais diversos aspetos da fisiologia e das patologias da nossa especialidade. Considerando-se que havíamos construído uma forte ligação científica e de amizade com o grupo de Belo Horizonte da UFMG, liderado pelo Professor Francisco José Penna, foi criado um caminho natural para escrevermos o que viria a se constituir no primeiro Tratado da Especialidade na língua portuguesa. Uma vez tomada a decisão de levar adiante esta ambiciosa empreitada, passamos a nos reunir periodicamente para decidirmos qual seria o conteúdo programático do livro e quais seriam os autores convidados para escrever os inúmeros capítulos que um Tratado de Medicina exige. Foi um esforço hercúleo desenvolvido pelos 3 autores, Penna, Jamal Wehba e eu, pois além de nos comprometermos a escrever a maioria dos capítulos, posto que o livro teria obrigatoriamente que ter a nossa visão científica dos temas escolhidos, os capítulos escritos pelos autores convidados também teriam que receber a nossa chancela para que pudéssemos garantir a excelência de qualidade dos mesmos. Isto posto, a tarefa que se impunha era compartilhar entre nós três o compromisso de lermos e darmos nossa opinião crítica sobre todos os capítulos escritos. Tratou-se de um imenso trabalho de ampla colaboração do qual participaram 90 autores brasileiros e internacionais, sendo que a primeira edição foi publicada em 1985 pela Editora Medsi. Confesso que pela primeira vez em minha vida, quando do lançamento do livro, tive a verdadeira sensação da Maternidade, senti que era algo que brotava do meu mais profundo âmago, o trabalho intelectual estava ali materializado, era visível e palpável, foi uma emoção indescritível. O sucesso desta edição foi estrondoso, rapidamente se esgotou, o que nos obrigou a uma nova tarefa, o que resultou na publicação da segunda edição do nosso Tratado, em 1991, agora revisada e ampliada. Esta foi a segunda sensação da Maternidade, embora sendo a segunda em nada menor foi a emoção em relação à primeira.
 
Figura 15

Figura 16



Figura 17- Jamal e eu em Buenos-Aires, em 1972, nos primórdios do que viria a ser a futura colaboração recíproca para a formação da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da EPM.



Figura 18- Da esquerda para a direita eu, minha mulher Fábia, Francisco Penna e Luciano Peret em Lisboa, em 1994.
 
O desejo de conhecer profundamente a realidade de vida de uma enorme parcela da nossa população que vive nas favelas em condições totalmente insalubres, nos levou a realização de inúmeros trabalhos de pesquisa para tentar entender os efeitos prejudiciais deste meio ambiente sobre o estado de saúde e nutricional das crianças deste habitat nocivo. A ideia original resultou na descrição de uma nova entidade clínica, que passou a ser internacionalmente reconhecida nos meios científicos, denominada por nós de Enteropatia Ambiental. A compilação destes trabalhos possibilitou a elaboração de um livro de minha autoria, no qual está descrita com riqueza de detalhes a história natural desta vergonhosa chaga social. O livro foi publicado pela editora RevinteR em 1996.
 
Figura 19



Figura 20
 
 Figura 21- Foto aérea da favela Cidade Leonor aonde com meus alunos de Pós-Graduação desenvolvemos o extraordinário trabalho de campo que nos permitiu descrever a história natural da Enteropatia Ambiental.
 
1.3 – Bolsas de financiamento à Pesquisa outorgadas pelas instituições públicas de fomento à Pesquisa
 
Quando da realização do meu Pós-Doutorado nos Estados Unidos fiz uma aplicação junto a FAPESP para solicitar uma Bolsa Pós-Doc a qual foi aprovada pelo prazo de 2 anos condicionada à realização de um projeto de pesquisa. No meu retorno à EPM fiz nova aplicação à FAPESP com o intuito de poder implantar no nosso laboratório de pesquisa a metodologia de perfusão intestinal in vivo. Novamente o projeto foi aprovado o que permitiu que realizássemos inúmeros projetos de pesquisa utilizando esta metodologia inovadora em nosso meio. A partir destes projetos de pesquisa inúmeras outras aplicações para financiamento de outras pesquisas foram realizadas e aprovadas pelo CNPQ, juntamente com a bolsa de Produtividade em Pesquisa.
 
Além destes projetos específicos também realizei aplicação para receber financiamento na modalidade de projetos temáticos junto à FINEP (Financiadora de Estudos e Pesquisas), com o tema “Diarreia-Desnutrição” para financiar os trabalhos de pesquisa na favela Cidade Leonor. Foram 2 projetos sequenciais ambos aprovados.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (38)

Minha trajetória na carreira Acadêmica na Escola Paulista de Medicina (EPM) – Parte 4

A inédita experiência vivenciada no trabalho de campo na Favela Cidade Leonor (2)

Algumas áreas da favela dispunham de água encanada comunitária, mas nenhuma delas possuía rede de esgoto ou cisternas, os dejetos eram despejados diretamente no córrego, que veio a ser transformado em uma verdadeira fossa séptica a céu aberto (Figuras 6-7-8).


Figura 6- Vista aérea dos barracos margeando o córrego da Água Espraiada.


Figura 7- Visão do córrego da Água Espraiada repleto de lixo e alguns moradores, adultos e crianças nas suas imediações.


Figura 8- Visão do córrego da Água Espraiada e dos barracos erguidos às suas margens, servindo como uma verdadeira cloaca a céu aberto.


 Frequentemente podia-se observar crianças moradoras do local brincando nas águas do córrego (Figuras 9-10-11).




Figuras 9-10-11- Crianças moradoras da favela brincando dentro e às margens do córrego.


Uma vez conhecida a área de potencial futura atuação fui apresentado pelo Sr. Armando Borges aos dirigentes da Associação dos Favelados da Cidade Leonor. Fomos então recebidos por uma Comissão de moradores da comunidade para expor nosso plano de trabalho, que consistia em proporcionar assistência à saúde para a população pediátrica local, visando fundamentalmente contemplar ações assistenciais básicas tendo como retaguarda técnico-científica o Hospital São Paulo. Nossa proposta foi inteiramente acolhida pela comunidade e em seguida passamos a operacionalizar nossas atividades. Para executar nosso projeto contávamos com uma equipe constituída pelos nossos Pos-Graduandos e também envolvemos os próprios moradores da comunidade, em especial o sr. Henrique, líder político local, a sra. Magnólia, que era atendente de enfermagem, e o sr. Tuta, morador local que se voluntariou para participar do projeto. Inicialmente, tratamos de aproveitar a extraordinária experiência de trabalho de campo que eu havia obtido no Parque Indígena do Xingu, o que significava divulgar por toda a comunidade a existência do novo serviço de saúde totalmente gratuito. Para este fim, delimitamos geograficamente a área de abrangência da nossa atuação e juntamente com sr. Henrique visitei casa por casa para anunciar nossos serviços e convidar a população pediátrica a fazer uso dos mesmos. Em pouquíssimo tempo passamos a atender uma enorme clientela de crianças que 2 vezes por semana vinham ao barracão da Associação em busca de atenção à saúde (Figuras 13-14-15-16-17).


Figura 13- Nossa equipe de trabalho com os moradores locais: da esquerda para a direita Tuta, Magnólia e Henrique, com algumas crianças da comunidade.


Figura 14- A sede da Associação dos Favelados aonde funcionava nosso ambulatório.



Figura 15- Magnólia e eu revisando as fichas dos nossos pacientes.


 
Figura 16- Tuta após ser devidamente instruído tornou-se responsável por obter as medidas antropométricas dos nossos pacientes.


Figura 17- Dra. Márcia Kallas e a atendente Magnólia em atividade assistencial. 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (37)

Minha trajetória na carreira Acadêmica na Escola Paulista de Medicina (EPM) – Parte 4

A inédita experiência vivenciada no trabalho de campo na Favela Cidade Leonor (1)

A partir das pesquisas realizadas nesta localidade resultou a descrição da Enteropatia Ambiental, a qual se tornou universalmente reconhecida na comunidade científica. 

Desde o início das atividades na nossa especialidade, nos anos 1970, o problema mais grave de saúde pública nos países chamados subdesenvolvidos, aí incluído o Brasil e praticamente todos os países da América Latina, em maior ou menor extensão, dizia respeito ao terrível binômio Diarreia-Desnutrição, responsável pelas altíssimas taxas de mortalidade infantil, bem como naquelas crianças menores de 5 anos. Tanto no nosso Ambulatório quanto na nossa Enfermaria de Pediatria do Hospital São Paulo, aonde eram internados os casos mais graves, a imensa maioria dos pacientes por nós atendidos, lactentes menores de 1 ano idade, apresentava queixa de diarreia crônica sempre acompanhada de algum grau de desnutrição, inclusive marasmo era bastante frequente ser observado. Por maiores que fossem nossos esforços para tratar adequadamente estes pacientes, esbarrávamos a miúde em um obstáculo praticamente intransponível, a persistência da diarreia associada à desnutrição. Naquela ocasião, por coincidência, começavam a surgir na literatura médica as primeiras publicações descrevendo as intolerâncias alimentares, em especial as intolerâncias aos carboidratos da dieta, mais especificamente a intolerância à lactose, que cursavam com diarreia crônica. Estas intolerâncias eram mais prevalentes em lactentes e crianças de baixa idade e acarretavam também agravo nutricional de variável intensidade, mas geralmente ocorriam em famílias de baixo poder econômico vivendo em condições desprovidas de saneamento básico e ausência de água potável. Todas estas particularidades eram idênticas a aquelas vistas em nossos pacientes, o que nos dava uma perspectiva de oferecer um tratamento dietético apropriado para superar o problema. Quando os pacientes encontravam-se internados conseguíamos debelar o processo diarreico e dar alta hospitalar com a prescrição de uma dieta especialmente por nós elaborada, a denominada Fórmula de Frango, composta por uma mistura de carne de frango, óleo de milho, glicose, polivitamínicos e Cálcio, visto que ainda não existiam no mercado brasileiro as fórmulas especiais atualmente disponíveis. Esta dieta era prescrita no momento da alta e os pacientes eram encaminhados para nosso Ambulatório de ex-internados, totalmente assintomáticos, para acompanhamento clínico da recuperação nutricional. Porém, para nossa surpresa, porque não dizer frustração, eles retornavam a miúde com a mesma queixa anterior, ou seja, diarreia associada a desnutrição. Diante desta nua e crua realidade decidimos por uma completa mudança de atitude, pois como não era possível obter o sucesso desejado pela forma que vínhamos atuando, em um número significativo de pacientes, invertemos a situação, em vez de continuarmos atendendo no nosso Ambulatório, fui ao encontro aonde eles viviam, teria que conhecer com riqueza de detalhes as condições de vida da nossa clientela. Era preciso travar contato direto com suas dificuldades, seus anseios, seus usos e costumes, enfim tínhamos que aprender uma nova forma de nos relacionar com nossos pacientes, era preciso mudar a velha atitude contemplativa, aonde o Serviço de Saúde funcionava como centro de referência para acolher a clientela. Tornava-se fundamental, portanto, conhecer o habitat natural dos nossos pacientes para melhor entender toda sua problemática de vida; mudávamos, assim, um conceito tradicional da Medicina, iríamos passar a oferecer aos pacientes o que poderia ser o melhor para eles dentro das suas realidades de vida e das condições do seu meio ambiente. 

De fato no início de 1981 esta oportunidade se ofereceu por inteiro. Como a maioria dos nossos pacientes era proveniente da zona sul de São Paulo, e vivia em condições precárias, com alto grau de insalubridade ambiental, em um encontro casual com o Sub-Prefeito da Vila Mariana, sr. Armando Borges de quem era um antigo amigo, comentei a nossa constante frustração quanto aos insucessos terapêuticos em relação aos nossos pacientes. Ele comentou sobre a existência de uma grande favela localizada próxima ao aeroporto de Congonhas denominada Cidade Leonor que poderia vir a ser um campo avançado de trabalho caso viesse a ser do meu interesse. Fui então com ele conhecer o local para avaliar a possibilidade de efetivamente desenvolver ali as atividades de campo que havíamos imaginado. A favela Cidade Leonor foi erguida às margens do córrego da Água Espraiada na década de 1940, em uma área da municipalidade denominada de fundo de vale, tem uma extensão aproximada de 3 km, desde a rua Califórnia até a rua Pedro Bueno, aonde atualmente está construída a Avenida Roberto Marinho, no bairro de Santa Catarina. O córrego da Água Espraiada nasce na região do ABCD paulista e percorre uma longa distância até desaguar no rio Pinheiros na região do Brooklin, entre as pontes do Morumbi e a Estaiada (Figuras 1-2).


Figura 1- Visão aérea de uma parte da favela, aonde se visualizam os barracos e o córrego da Água Espraiada.


Figura 2- Foto aérea obtida desde a favela avistando uma das cabeceiras da pista do aeroporto de Congonhas.

A favela Cidade Leonor é constituída pela construção de barracos erguidos em ambas as margens do córrego e se estendem ao longo do mesmo, constituindo contornos irregulares que chegam a se expandir lateralmente por cerca de 50 metros das suas margens. Seus limites, no entanto, são contidos pela existência de casas residenciais construídas em áreas urbanizadas providas de saneamento básico. O tamanho dos barracos é variável, medindo cerca de 3x4 metros, em sua maioria são construídos de madeira ou em alvenaria proveniente de restos de construção, pelos próprios moradores. O teto é geralmente coberto com telhas Brasilit, o chão, em algumas casas é cimentado, mas na maioria delas é de terra batida. Usualmente o interior do barraco é dividido em 2 cômodos e, para tal, os moradores costumam utilizar algum mobiliário (Figuras 3-4-5).


Figura 3- Vista aérea da região da Vila Santa Catarina aonde a favela cidade Leonor está implantada.


Figura 4- Vista aérea panorâmica da favela cidade Leonor e sua conexão com a região urbanizada.


Figura 5- Vista aérea mais detalhada do conglomerado de barracos e o contato direto com a área urbanizada.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (14)

A história da realização de um Pós-Doutorado no North Shore University Hospital, Cornell University, Nova Iorque: pessoal e científica



Resultados

Evolução Clínica dos Pacientes
Todos os pacientes apresentavam queixa de diarreia crônica (diarreia superior a 14 dias de duração) no momento da internação, sendo que 20 (90,1%) deles já haviam sofrido pelo menos 1 internação anterior por diarreia e/ou broncopneumonia (entre 1 e 10 internações anteriores). O tempo médio da presente internação foi de 45 dias, variando de 21 a 114 dias (Figura 6).

Figura 6- Paciente portador de desnutrição proteico-calórica com diarreia persistente em recuperação nutricional plena e tentativa de relactação.

Dentre os 22 pacientes 20 (90,9%) deles apresentaram evolução satisfatória e receberam alta hospitalar em boas condições de saúde em franco processo de recuperação nutricional; 2 (9,1%) pacientes vieram a falecer durante a internação, 1 deles por diarreia intratável e sepsis por Enterobacter após 72 dias de hospitalização, e o outro por broncopneumonia após 25 dias de internação.

Intolerância à Lactose foi detectada em 16 (73%) pacientes, intolerância à Sacarose (carboidrato da fórmula de soja) foi caracterizada em 5 (23%) pacientes e apenas 1 (2,2%) paciente apresentou intolerância à Glicose.

Teste de absorção da D-xilose
O valor médio do teste foi de 24,8 +/- 9,8 mg% significativamente menor do que aquele verificado em indivíduos normais que é de 42,4 +/- 9,6 mg%. Estes dados refletem um estado de insuficiência absortiva da mucosa entérica, muito provavelmente, em decorrência das extensas lesões da morfologia do intestino delgado que estes pacientes apresentam.

Biópsia do Intestino Delgado
A análise morfológica da mucosa do intestino delgado revelou alterações na imensa maioria dos casos, muito embora o grau de lesão tenha sido variável de moderada a intensa (Figuras 7-8-9). Atrofia vilositária parcial e inclusive subtotal foram descritas em todos os pacientes, com exceção de apenas um paciente cujas vilosidades intestinais mostravam-se inalteradas.


Figura 7- Fotografia em aumento médio de espécime de intestino delgado obtido por biópsia evidenciando atrofia vilositária moderada, chamando a atenção para a "População VIlositária Diminuida".


Figura 8- Fotografia em maior aumento de espécime de intestino delgado obtido por biópsia; notar o espaço nitidamente aumentado entre 2 vilosidades adjacentes.


Figura 9- Fotografia em aumento maior de espécime de intestino delgado obtido por biópsia demonstrando atrofia vilositária subtotal e intenso infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Um aspecto altamente chamativo por nós observado em 12 (54,5%) pacientes foi a nítida redução do número de vilosidades intestinais em comparação com as normalmente verificadas e que nos levou a propor a denominação de “População Vilositária Diminuída”.


Este estudo pode demonstrar as inúmeras alterações funcionais e morfológicas da mucosa intestinal que são diretamente responsáveis pelas intolerâncias alimentares, as quais, por sua vez, desencadeiam a perpetuação do processo diarreico acarretando importante agravo nutricional e elevado risco de morte neste grupo de pacientes.

Naquela época, há mais de 40 anos já identificávamos os graves problemas gerados pelo binômio diarreia-desnutrição em crianças de tenra idade e chamávamos a atenção para a necessidade de se encontrar um tratamento dietético apropriado para a recuperação nutricional destes pacientes. Muitos anos se passaram e atualmente 3 fatos altamente positivos vieram a ocorrer, a saber: em primeiro lugar as prevalências deste tipo de desnutrição proteico-calórica diminuíram sensivelmente, em segundo lugar, encontram-se à inteira disposição fórmulas alimentares extremamente sofisticadas, as quais praticamente atendem à totalidade das nossas necessidades no cuidado de pacientes com as mais graves intolerâncias alimentares, e, por fim, mas não menos importante, diz respeito ao reconhecimento definitivo que a promoção da prática do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado é a única profilaxia segura e efetiva para evitar a ocorrência do binômio diarreia-desnutrição (Figuras 10-11).

Figura 10- Representação esquemática da ausência de aleitamento natural como contribuição para a instalação da desnutrição.


Figura 11- Representação esquemática da profilaxia da desnutrição quando o aleitamento natural está presente de
forma exclusiva e por tempo prolongado.