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quarta-feira, 2 de março de 2016

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (45)

1- A consolidação da tradição em Pesquisa, Produção e Divulgação do Conhecimento, Ensino e a sólida formação de Especialistas em Gastroenterologia e Nutrição em Pediatria (parte 1)


O artigo segundo do Estatuto da UNIFESP reza, desde sua fundação e reafirmado na sua última revisão, em 2011, o seguinte: “A UNIFESP tem por finalidade desempenhar com excelência atividades indissociáveis de ensino, pesquisa e extensão”.

Desde quando ingressei na carreira acadêmica, em 1974, tinha muito clara a ideia de que a atividade de pesquisa é um pilar fundamental na estrutura universitária, a qual tem de vir necessariamente acompanhada da produção e a consequente divulgação do conhecimento produzido. A realização da pesquisa é o passo inicial, porém, esta somente será considerada concretizada quando os resultados da mesma forem devidamente publicados nos periódicos científicos indexados da sua área de atuação. As nações mais desenvolvidas do mundo alcançaram esta condição porque se apoiaram fortemente no fomento à pesquisa. Essa tomada de decisão política lhes proporcionou serem detentores de tecnologia própria nos mais diversos setores das atividades profissionais, o que consequentemente abriu as portas para a aquisição da soberania. Nunca me esqueço de algo que li escrito em um enorme painel na chegada do aeroporto de Oslo, Noruega, em 1985, e que me impressionou sobremaneira porque reafirmava tudo aquilo que eu pensava sobre a importância da pesquisa para a humanidade, dizia: “Research is the future, without research there is no future” (Figuras 1-2-3-4-5-6-7-8). Foi uma viagem de 45 dias a convite do Karolinska Institute para visitar diferentes institutos de pesquisa localizados na Noruega, Suécia e Dinamarca. Abaixo algumas imagens da visita à Noruega, minha primeira parada.

Figura 1- Trajeto percorrido na Noruega, entre Oslo e Bergen.


Figura 2- Jovens desfrutando os raros momentos de calor do verão no jardim de uma praça no centro de Oslo.


Figura 3- Vista geral do Vigeland museum.


Figura 4- Esculturas expostas no Vigeland um espetacular museu a céu aberto em Oslo.

Figura 5- A viagem em direção a Bergen no oeste do país passa por lindas paisagens de campo.


Figura 6- Entre Oslo e Bergen cruzam-se vários fiordes, cenário típico da Noruega.


Figura 7- Nesta mesma viagem deparamos com fantásticos, enormes e perenes glaciais.


Figura 8- Bergen, que mais se parece a um presépio, está situada à beira de um braço do mar do Norte.


A nação que não busca desenvolver suas próprias tecnologias estará eternamente fadada a ser um satélite, nunca terá luz própria, posto que será sempre dependente de alguma outra nação que esteja disposta a lhe vender seus conhecimentos produzidos a partir do investimento aplicado à pesquisa. A qualidade do ensino de uma determinada instituição universitária, por sua vez, deve ter suas bases assentadas em uma relação diretamente proporcional à qualidade e à quantidade dos conhecimentos aí produzidos. Deve-se também sempre levar em consideração que aqueles conhecimentos já tradicionalmente consagrados e que, portanto, são do domínio geral não podem ser desprezados, mas sim, incorporados ao projeto pedagógico curricular. É esta associação de fatores que tornam indissociáveis pesquisa e ensino. A qualidade da extensão irá depender destas duas variáveis anteriormente mencionadas, o que no caso da Medicina, esta é essencialmente a atividade dedicada à assistência.

Quando Prof. Jamal Wehba e eu criamos a Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica tínhamos a clara visão de seguir os preceitos acima enunciados e, por estes motivos, tratamos desde o seu início colocar em prática estes valores. De fato, isto foi inaugurado após pouco mais de 1 ano de atividade, posto que no Congresso Pan-americano de Pediatria realizado em São Paulo, em outubro de 1975, tivemos a oportunidade de apresentar nossos primeiros trabalhos de pesquisa nas sessões de Temas Livres, os quais eram resultantes da nossa experiência clínica cuidadosamente compilada e revisada (Figura 9).

Figura 9- Neste Congresso de 1975 demos início à nossa produção científica. Este foi um momento de congraçamento com nossos amigos argentinos. Da esquerda para a direita Silvia, Eurídice, eu, Ortiz, Mairon, Licastro, Toccalino e Reppeto.


Este evento teve o caráter da formação do embrião de uma vasta linha de pesquisa que foi se consolidando com o passar dos anos até alcançar uma sólida tradição em pesquisa, que se tornou de reconhecimento nacional e internacional. Como o ensino sempre fez parte de fundamental importância da nossa filosofia de trabalho, concomitantemente às atividades assistenciais abrimos as portas da nossa Disciplina para a formação de Especialistas. Passamos a oferecer um Programa de Especialização com 2 anos de duração baseado em atividades teórico-práticas em tempo integral, ainda com a possibilidade de se estender para a realização dos cursos de Pós-Graduação sentido estrito, Mestrado e Doutorado. Vale enfatizar que este programa, inédito no meio acadêmico nacional, quando da sua implantação em 1975, há poucos anos passou a ser considerado uma atividade oficial do MEC e da Sociedade Brasileira de Pediatria como modalidade de Residência Médica com 2 anos de duração após o término da Residência Médica em Pediatria também com 2 anos de duração. Atualmente ingressam por concurso 6 Médicos Residentes por ano para cumprir um extenso programa teórico-prático, de treinamento em serviço, que abrange todas as áreas da Especialidade, tanto do ponto de vista ambulatorial quanto hospitalar. Inclusive faz parte deste programa a realização dos inúmeros procedimentos invasivos e não invasivos próprios da especialidade, tais como, manometria ano-retal, pHmetria esofágica, testes do Hidrogênio no ar expirado, endoscopia digestiva alta, colonoscopia ente outros (Figuras 10-11-12-13).

Figura 10- Nossos Pós-Graduandos no Congresso Latino-Americano em Buenos Aires, em 1984. Da esquerda para a direita, Mário Bustos (Bolívia), Fernando Fernandes (meu colega de turma), Nabia, eu, Silvia Jové (argentina), Francisco Penna e Paulo (professores da UFMG), Teresa Medrado e Hugo Costa Ribeiro (Salvador), Regina Molinari, e sentadas Tânia Viaro e Márcia Kallas.  



Figuras 11-12- Festas da Gastropediatria com nossos Pós-Graduandos e amigos do Brasil e de Portugal.


Figura 13- Nossos Residentes de 3º e 4º anos no XIX Congresso Latino Americano em Natal, em 2014.


terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A inédita experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (5)


Meu querido mestre e amigo Horácio Toccalino: um exemplo de determinação e perseverança na vida pessoal e profissional



Assim que cheguei ao Posadas para trabalhar já no primeiro contato com Dr. Toccalino (Figuras 1-2) tive uma nítida sensação de que seria recebido com especial atenção, o que eu poderia traduzir com a expressão “empatia recíproca à primeira vista".

 
Figura 1- Toccalino (o terceiro da esquerda para a direita) participando da reunião da Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em Viña del Mar, Chile, em 1968.
Figura 2- Toccalino juntamente com Licastro e Ortiz participando da reunião da Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em 1975, dias antes da fundação da nossa Sociedade.


De fato, o tempo somente fez confirmar esta primeira impressão. Ao longo de todo o ano, tanto no campo profissional como no pessoal, sempre mantivemos um relacionamento extremamente amistoso, dava até a percepção de que já nos conhecíamos de longa data, eu me sentia muito à vontade em sua companhia, principalmente quando juntos atendíamos os pacientes no ambulatório de gastroenterologia. No intervalo entre as consultas sempre arranjávamos alguns minutos para conversar sobre assuntos de trabalho, de planos futuros ou mesmo de temas absolutamente informais, até de problemas pessoais e familiares. Enfim, sinto que ele me adotou e que eu me apropriei desta adoção com muita satisfação, mesmo porque este relacionamento tão afetivo perdurou nos anos que se seguiram até sua morte prematura em dezembro de 1977. Sim, Dr. Toccalino faleceu muito jovem, aos 48 anos, com muitos projetos pessoais e profissionais para serem desenvolvidos, o mais caro, no entanto, era a fundação da Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição, a qual se logrou concretizar em outubro de 1975, em São Paulo, durante o transcurso do Congresso Pan-Americano de Pediatria. Anteriormente, porém, em 1974, durante a realização do Congresso Mundial de Pediatria, em Buenos Aires, em um determinado dia, nos reunimos para almoçar em uma churrascaria denominada El Gaucho Imortal, Toccalino, Licastro, Martins Campos (José Vicente Martins Campos, gastroenterologista brasileiro, embora sendo especialista de adultos, tinha grandes interesses em investigação na área da gastroenterologia pediátrica, de quem me tornei amigo e admirador, participava ativamente dos eventos pediátricos e era um grande amigo de Toccalino desde longa data. Vale lembrar que Dr Martins Campos tornou-se posteriormente meu orientador no curso de Mestrado no IBEPEGE) e eu. Vínhamos de um encontro da Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em Escobar, cidade localizada nas vizinhanças de Buenos Aires. Durante o almoço Toccalino manifestou seu descontentamento com os rumos daquela Sociedade, porque entendia que a gastroenterologia estava sendo cada vez mais marginalizada em detrimento de outras especialidades pediátricas, em especial a endocrinologia e a nefrologia. Toccalino sentia que havia chegado o momento de se fundar uma Sociedade especificamente voltada à gastroenterologia, já haveria uma massa crítica suficiente para tal empreendimento. Ele conhecia alguns colegas no Uruguai que certamente adeririam à idéia, e também mesmo no Brasil já havia alguns embriões da especialidade sendo gestados (Figura 3).
Figura 3- Simpósio em Belo Horizonte, no início de 1975, como parte da divulgação da criação da nossa Sociedade. Da direita para a esquerda Toccalino, Martins Campos, Francisco Penna, eu e um colega nefrologista José Silvério.
Criaríamos uma Sociedade tendo como pilares de sustentação o eixo Argentina, Uruguai e Brasil, e pouco a pouco colegas de outros países seguramente viriam também a se incorporar nessa nova proposta. Martins Campos prontamente concordou com a idéia, o mesmo ocorrendo com Licastro. Eu também concordei de imediato, porque afinal das contas quem era eu para emitir qualquer opinião a respeito de um assunto sobre o qual não tinha a menor experiência, fiz o que meu mestre mandou. Ato seguinte, Martins Campos lançou mão de um guardanapo de papel do restaurante e elaborou a primeira ata de fundação desta nova Sociedade com a subscrição dos quatro presentes. Ficou então combinado que no ano seguinte durante o transcorrer do Congresso Pan-Americano, em São Paulo, nós criaríamos oficialmente a Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica. Toccalino e Martins Campos se ocuparam de contatar os potenciais membros da futura Sociedade, convidando-os para a reunião oficial da sua fundação. Tínhamos praticamente um ano inteiro para desenvolver essa empreitada com êxito, era tempo suficiente. Eu fiquei encarregado de organizar a reunião, a qual se realizou na Escola Paulista de Medicina, no anfiteatro de Pediatria do Hospital São Paulo, em outubro de 1975 (Figura 4). 

Figura 4- Reunião da fundação oficial da Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição realizada em São Paulo, na Escola Paulista de Medicina, em outubro de 1975. Da esquerda para a direita Elza Guatavino (1º Secretária), Horácio Toccalino (Presidente eleito) e José Vicente Martins Campos (Secretário Geral eleito) constituindo a primeira diretoria da Sociedade.


Vinte e cinco colegas latino americanos firmaram a constituição desta nova Sociedade; estava enfim, naquele dia, tornando-se realidade o tão almejado sonho de Toccalino (Vide cópia da ata abaixo).



Infelizmente, porém, naquela mesma ocasião ele tinha acabado de receber a notícia de que estava enfermo e o diagnóstico era de uma doença extremamente grave, ele sofria de um tipo muito raro de câncer, extremamente agressivo, incurável para os conhecimentos científicos daquela época e que teria uma evolução bastante rápida (Figura 5).
Figura 5- Festa de abertura do Congresso Pan-Americano de Pediatria realizado em São paulo, em outubro de 1975. Horácio Toccalino já enfermo viajaria dias depois para os EUA para tentar tratamento para sua enfermidade.


Entretanto, em um ato de enorme bravura e autocontrole, para não prejudicar os andamentos da fundação da Sociedade, o que era para ele uma questão primordial, decidiu não contar a ninguém o seu padecimento e assim que terminou o Congresso, de São Paulo mesmo viajou diretamente para Nova Iorque, na tentativa desesperadora de encontrar alguma solução, ainda que paliativa fosse, para sua doença (Vide trecho da carta por ele escrita e a mim dirigida abaixo).


Desafortunadamente, porém, apesar do tratamento quimioterápico proposto e realizado, a cura era inviável, e o prognóstico emitido foi que inexoravelmente o câncer progrediria e ele não teria muito mais tempo de vida, provavelmente não mais que seis meses (na realidade ainda viveu três anos mais após o diagnóstico). Mas, apesar de todo este sofrimento e frustração quanto ao futuro próximo, ele não deixou se abater animicamente, ao contrário, o florescimento da nova Sociedade passou a ser o grande estímulo da sua existência daí em diante. Durante sua estada em Nova Iorque me escrevia cartas, nas quais vislumbrava o sucesso futuro da nossa Sociedade, mas para que tal êxito fosse alcançado deveríamos seguir rigorosamente determinados postulados e a mim ele atribuía a responsabilidade de assim fazê-los cumprir.

Toccalino retornou dos Estados Unidos, recobrou suas forças, e continuou sua missão de fortalecer nossa Sociedade de forma obstinada, viajando freqüentemente enquanto sua saúde assim o permitiu, para consolidar a recém nascida Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição. Eu assumi com ele um compromisso irrestrito, continuar a luta de manter viva a chama que com tanto sacrifício foi por ele acesa e, mais ainda, fazer florescer nossa Sociedade, tornando-a reconhecida mundialmente. O destino foi extremamente generoso comigo, também é verdade que o esforço foi gigantesco, mas valeu a pena o desafio. Nossa Sociedade passou a se reunir regularmente a cada dois anos nos mais diversos países da América Latina desde a Argentina até o México, estive presente na quase totalidade das reuniões, nestes trinta e seis anos somente me ausentei de duas delas, organizei o Congresso de 1996, em são Paulo, e fui presidente da mesma de 1996 a 1998. A Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição, em decorrência da sua importância conquistada como conseqüência do trabalho incessante de longo prazo desenvolvido pelos seus membros associados, tornou-se reconhecida pelas existentes congêneres internacionais, a saber: européia, norte-americana e asiática. Assim, finalmente, a partir deste reconhecimento foi criado o evento Congresso Mundial, congregando todas as sociedades internacionais, o qual, foi inaugurado em 2000, em Boston (Figuras 6-7), seguindo-se em 2004, em Paris, com o compromisso de ser realizado a cada quatro anos, em forma de rodízio, em cada um dos continentes.



Figura 6- Comissão organizadora do I Congresso Mundial reunida em Denver, em outubro de 1999. Da esquerda para a direita, Ron Sokol (EUA), Samy Cadranel (Bélgica), eu, Yushiro Yamashiro (Japão) e Harland Winter (EUA).
 
Figura 7- Parte da delegação da Disciplina de Gastropediatria da Escola Paulista de Medicina, UNIFESP, docentes, pós-graduandos e especializandos, presente ao I Congresso Mundial, em Boston, em agosto de 2000.


O terceiro Congresso Mundial foi realizado em Foz do Iguaçu, em agosto de 2008, o qual eu tive a imensa alegria e honra de presidir. Revestiu-se de um extraordinário sucesso, com mais de 2500 participantes, vindos de 102 países, tendo sido apresentados 1025 trabalhos de pesquisa na área. Na sessão de abertura do Congresso Mundial, durante meu discurso, pude então, com muito orgulho e tomado de emoção, reverenciar publicamente a figura de Horácio Toccalino, por tudo aquilo que havia batalhado e realizado em pró do engrandecimento da nossa Sociedade (Vide abaixo parte transcrita do discurso de abertura) (Figuras 8-9). 




Figura 8- Momento da abertura do III Congresso Mundial de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição em Pediatria.



Figura 9- Os membros componentes do Comitê Científico durante o jantar de confraternização ao final do Congresso Mundial. Da esquerda para a direita: Jaime Gerson (México), Joaquin Kohn (Argentina), Daniel Dagostino (Argentina), Ricardo Uauy (Chile), Eduardo Salazar-Lindo (Perú), Ulysses Fagundes-Neto (Brasil), José Vicente Spolidoro (Brasil) e Domingo Jaen (Venezuela).
Finalmente, meu compromisso de vida com meu mestre e amigo Horácio Toccalino havia sido cumprido. A partir daquele momento passei a me sentir em paz com a minha consciência, a missão estava concretizada!
O término da Especialização, o retorno ao Brasil e a criação da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina
Em meados de outubro tive a grande alegria de receber a visita do Prof. Azarias Andrade de Carvalho, Chefe do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina. Ele fez questão de conhecer o Policlínico Alejandro Posadas e conversar com Dr. Toccalino a respeito do meu aproveitamento. Ficou muito bem impressionado com as instalações que conheceu e também ficou bastante satisfeito em ouvir do Dr. Toccalino que meu rendimento estava sendo ótimo, sendo que ele até mesmo recomendava minha contratação quando voltasse ao Brasil, para implantar o Serviço de Gastroenterologia Pediátrica. Prof. Azarias muito gentilmente deu-me a segurança que eu necessitava, assim que houvesse concurso para ingresso na carreira do magistério superior ele apoiaria minha candidatura. Desta forma pude respirar aliviado e seguir os últimos dias da minha especialização com maior tranqüilidade e assim escrevi em meu diário, em novembro de 1973:

“Creio que esta será a última vez que escrevo, a verdade é que o tempo é inexorável e sempre caminha em um mesmo sentido, tudo que começa tem que ter um final. No meu caso parece que o final está chegando e o faz muito mais rapidamente do que eu poderia esperar. Já estou aqui há 10 meses e logo mais estarei de volta. O interessante, e ao mesmo tempo pode parecer uma contradição, é que tudo se passou tão rapidamente que nem deu bem para sentir, mas, por outro lado, parece que estou aqui há muitos anos, ou melhor, que aqui sempre foi o lugar do meu trabalho; adaptei-me tão bem, sou muito bem tratado e respeitado que talvez seja essa a razão do meu sentimento... Nunca poderei me esquecer de todos estes médicos que constituem o serviço da gastropediatria (Figuras 10-11-12)...


Figura 10- Almoço da minha despedida do Policlínico Alejandro Posadas, em dezembro de 1973, com a participação da equipe de médicos da Gastropediatria.

 

Figura 11- Enfermeira Anita, responsável pelos cuidados dos pacientes durante os procedimentos de investigação clínica, e eu em frente a entrada principal do Policlínico Alejandro Posadas.
 

Figura 12- Festa da minha despedida do Policlínico Alejandro Posadas realizada na casa da enfermeira Anita, em dezembro de 1973.

Por fim, o grande chefe do circo todo, o comandante genial, o cérebro de toda a coisa, o homem prático e matemático, o conselheiro de todas as horas, o amigo irrestrito. Este homem, Horácio Toccalino, eu não poderei nunca deixar de lembrar a cada momento da minha existência como médico e cidadão. Para que se tenha idéia, um dia quando me queixava de que no Brasil não havia possibilidades de se montar um serviço como o dele, ele me disse: Lá não é nada diferente daqui, e o que é necessário é trabalhar, trabalhar, trabalhar e acima de tudo formar uma equipe coesa.
Pensei muito a respeito dessas palavras e depois de algum tempo cheguei à conclusão de que tudo é possível de se realizar basta haver determinação para tal. EU VOU FAZER O QUE ELE PREGA.”

Dito e feito retornei ao Brasil, houve concurso para ingresso no magistério superior, fui aprovado, iniciei a carreira docente e juntamente com Prof. Jamal Wehba, montamos o Setor de Gastropediatria. Trabalhamos ombro a ombro durante bons anos, começamos a receber especializandos da nossa instituição e de outros serviços. Em pouco tempo mais começamos a produzir conhecimento, nos transformamos em Disciplina do Departamento de Pediatria, abrimos programas para a Pós-Graduação sentido restrito, Mestrado e Doutorado. A Disciplina cresceu, novos docentes foram incorporados, passamos a receber especializandos de todo o país e mesmo de outros países da América Latina (Figuras 13-14).

 

Figura 13- Cena de uma reunião clínica da Disciplina de Gastropediatria, no início dos anos 1990. Da esquerda para a direita Profa. Elisabete Kawakami, Prof. Jamal Wehba e Prof. Mauro Batista de Morais.

Figura 14- Parte da delegação da Disciplina de Gastropediatria, docentes, pós-graduandos e especializandos, presentes no V Congresso da Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia e Nutrição realizado em Buenos Aires, em 1984.

Enfim, nossa missão está sendo cumprida e nossa Disciplina é atualmente reconhecida pela sua excelência nacional e internacionalmente. Seguimos com sucesso o lema de Horácio Toccalino!

terça-feira, 10 de março de 2009

A experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (1)

As motivações, os preâmbulos e as tratativas para a viagem de especialização

A Residência Médica

Corria o ano de 1970, eu estava cursando o último ano de Medicina (naquela época já era denominado internato), na Escola Paulista de Medicina. Havia muito tempo que eu me decidira pela Pediatria e tinha uma meta obsessiva que era fazer a Residência Médica no Hospital São Paulo, posto que tinha absoluta consciência de que não me sentiria seguro em exercer a profissão sem ter passado por esta extraordinária vivência de treinamento em serviço. A instituição Residência Médica vivia um momento de grande prestígio, representava o passaporte de garantia da qualidade do profissional e a perspectiva de poder seguir uma carreira acadêmica. Entretanto, eram poucos os programas oficialmente credenciados em todo o Estado de São Paulo, o que tornava o exame de ingresso extremamente concorrido. Além disso, as vagas disponíveis para a Pediatria eram apenas cinco, portanto, era de fundamental importância aproveitar ao máximo o aprendizado oferecido naquele ano de internato para obter tão almejado êxito. Naquele tempo, isto era tudo o que meu pensamento alcançava, até então, em termos futuros como médico e possivelmente como professor universitário. Para minha felicidade terminado o curso médico prestei o exame de ingresso na Residência Médica no programa de Pediatria, fui aprovado, e assim, um novo horizonte surgiu na minha vida profissional, pelo menos para os três anos seguintes haveria uma definição clara dos próximos desafios a serem enfrentados.

Antes, porém, durante o internato, quando eu estava fazendo o estágio na Pediatria, por coincidência, concomitantemente como parte dos eventos comemorativos dos 50 anos de fundação da Associação Paulista de Medicina, foi organizado um curso de atualização em várias especialidades médicas, inclusive em Pediatria. Convidado pelo preceptor do internato e residência naquela época, professor Jamal Wehba, fui assistir às aulas que eram ministradas por três professores convidados do exterior. Dois deles eram professores seniores, Svoboda, alemão, especialista em ortopedia e o outro Fred Bamater, suíço, generalista que ministravam aulas magistrais. Mas quem mais me chamou a atenção foi um jovem professor argentino, Horácio Nestor Toccalino, gastroenterologista, que ministrava aulas sobre temas extremamente práticos condizentes com a nossa dura e crua realidade daqueles tempos. Abordava, sobretudo, aspectos objetivos a respeito de diarréia aguda e diarréia crônica, demonstrando uma grande experiência pessoal no manejo destes tópicos tão freqüentemente vivenciados por nós e que causavam grandes taxas de morbidade e mortalidade em nossas crianças, em especial, naquelas pertencentes às famílias sócio-economicamente desfavorecidas. Como grande novidade abordou também uma enfermidade que para nós era, naquele tempo, totalmente desconhecida a Doença Celíaca. Fiquei altamente interessado e impressionado com tudo que aprendi naqueles dias e creio que aí começou minha inclinação pela Gastroenterologia Pediátrica, a qual se tornou irremediavelmente irreversível.

Os dois primeiros anos de residência reforçaram a idéia da necessidade imperiosa de escolher uma super-especialidade dentro da Pediatria, porém sem jamais negar a formação generalista. Naquela época eram raras as especialidades pediátricas reconhecidas, tais como, neonatologia, neurologia, cirurgia pediátrica, genética para citar as mais consolidadas, as outras encontravam-se em estágio ainda muito incipiente de implantação. O Pediatra tinha uma formação de generalista e quando necessitava a opinião de um especialista era chamado um clínico de adultos, o que não trazia na prática, na maioria das vezes, grande contribuição para a solução dos problemas. Esta situação associada ao fato de que eu não conseguia dominar com segurança todas as diversas patologias que tinha que enfrentar no dia a dia me gerava grande angústia e insatisfação. Acabava por conhecer um pouco de tudo, mas apenas na superficialidade, o que me deixava profundamente frustrado, queria conhecer as patologias mais profundamente, queria entender as causas dos processos, não apenas as conseqüências. Além disso, uma das principais causas de internação nas nossas enfermarias era por diarréia aguda e/ou crônica associada à desnutrição e que acarretavam altíssimas taxas de mortalidade. Eu não me conformava com esta situação, era freqüente deixar o hospital no fim do dia com os leitos ocupados com vários pacientes com diarréia e quando voltava na manhã seguinte encontrava estes mesmos leitos vazios porque os pacientes haviam falecido. A impotência frente àquela situação me deixava inconformado, não era possível que não houvesse uma solução para estes problemas tão freqüentes e tão graves, era preciso conhecer mais a fundo os mecanismos de produção da doença, a íntima interação entre o agente agressor e o hospedeiro, para poder combatê-los com sucesso, era fundamental enveredar para a especialização. Por outro lado, esta era uma aspiração que vinha cercada de conflitos, posto que as resistências contra a especialização no campo da Pediatria eram consideráveis. Afinal de contas era com grande e justificado orgulho que se catalogava o Pediatra como o último guardião do médico generalista, o assim chamado médico da família. Os conflitos existiam, pois, a perspectiva de me tornar um médico generalista, ao estilo clássico da época provocava um fascínio inegável, mesmo porque estaria seguindo um modelo que havia sido consagrado ao longo da história; mas, em contrapartida, o meu grande sonho era encaminhar-me para a vida universitária, e para ter êxito neste desejo era imperioso que eu viesse a agregar valores, aprofundar meus conhecimentos em uma determinada área, para que eu pudesse desenvolver uma atividade de pesquisa mais dirigida, e, portanto, de maior peso específico.

O Grupo de Estudo

No início do segundo ano da Residência, como conseqüência de todas as angústias e frustrações decorrentes dos insucessos frequentemente observados no manejo dos pacientes portadores de diarréia e desnutrição, resolvemos constituir um grupo de estudo composto pelo nosso preceptor Prof. Jamal e por um grande amigo desde os bancos do curso universitário e agora colega na Residência Dr. Fernando Fernandes, para nos aprimorar nos novos conhecimentos que se avolumavam na literatura a respeito deste terrível binômio diarréia-desnutrição. Passamos, então, a nos reunir semanalmente, à noite, após o jantar na casa do Prof. Jamal para ler os artigos mais recentemente publicados na literatura médica sobre os principais aspectos relacionados com a fisiologia dos processos digestivo-absortivos e os mecanismos fisiopatológicos que envolviam a interação dos diferentes agentes enteropatogênicos e o hospedeiro, e suas conseqüentes intolerâncias alimentares. À medida que avançávamos em nossos estudos mais e mais nos conscientizávamos do quanto ignorávamos sobre o tema; isto, no entanto, serviu sempre de estímulo desafiador para que nos mantivéssemos em permanente contato. Entrávamos, assim, no mundo recentemente descrito das intolerâncias aos carboidratos da dieta, em especial da lactose, fatores perpetuadores da diarréia e agravantes da desnutrição. Começava a surgir uma nova luz na perspectiva de oferecermos uma melhor conduta nutricional aos nossos pacientes, porém, eram conhecimentos teóricos, faltava uma experiência prática para podermos ter mais segurança nas nossas propostas terapêuticas. Foi aí, então, que começamos a esbarrar nos primeiros obstáculos que viriam gradualmente a se nos antepor, impedindo a consecução dos nossos projetos, causando mais desesperança do que satisfação. Ficava claro que havíamos construído uma sólida base teórica, mas, não dispúnhamos do domínio da tecnologia, nem dos métodos mais rudimentares para levar avante os procedimentos mais fundamentais da especialidade. Estávamos praticamente bloqueados, era necessário encontrar uma saída e foi a partir destas discussões que surgiu a idéia de tentar uma especialização nesta área de atuação, e, imediatamente, nos veio à lembrança o nome do Dr. Horácio Toccalino.

Os problemas a serem vencidos e a viagem a Córdoba

Diante da situação de imobilismo que se nos apresentava, para tentar dar uma solução prática para tal impasse, eu me dispus a tentar um contato com Dr. Toccalino para solicitar a realização do treinamento na especialidade em seu serviço, posto que no terceiro ano da Residência tínhamos a permissão para realizar um estágio eletivo. Havia, no entanto, dois problemas a serem enfrentados e vencidos; o primeiro deles dizia respeito a realizar um estágio no exterior, coisa que era absolutamente inédita até então nos programas da Residência Médica da Escola Paulista de Medicina, não sabíamos como reagiriam nossos dirigentes a esta proposta. O segundo problema era saber se Dr. Toccalino me aceitaria como especializando em seu serviço, posto que não o conhecia pessoalmente e tampouco tinha qualquer informação da possível existência deste tipo de programa em seu serviço. Em relação ao segundo problema recebemos uma notícia alvissareira da parte do Prof. Fernando Nóbrega, naquela época chefe do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, que nos informou que uma residente de terceiro ano da sua Faculdade estava estagiando no serviço do Dr. Toccalino, portanto, uma porta começava a se abrir. Em seguida havia que ser solucionado o primeiro problema, a permissão para realizar o estágio eletivo no exterior. Conversando com o Prof. Azarias Andrade de Carvalho, chefe do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina, ele viu com grande entusiasmo essa possibilidade e se responsabilizou pela autorização da possível viagem.

Estávamos em 1972, em outubro realizava-se o Congresso Panamericano de Pediatria, por coincidência, em Córdoba, Argentina, e, imaginávamos que muito provavelmente Dr. Toccalino deveria estar presente no aludido evento; seria, portanto, a oportunidade ideal para contatá-lo para solicitar a permissão para trabalhar em seu serviço em 1973. Como Prof. Jamal tivesse aprovado um trabalho de pesquisa para ser apresentado no Congresso e dispunha de duas passagens aéreas, com a autorização do Prof. Azarias, viajamos os dois para Córdoba esperançosos em alcançar nossos objetivos, ou seja, encontrar Dr. Toccalino e dele receber a aprovação sobre a minha especialização em seu serviço em Buenos Aires.
Como era esperado Dr. Toccalino estava em Córdoba, em determinado momento nos recebeu com toda gentileza e para nossa agradabilíssima surpresa disse que me receberia em seu serviço com a maior satisfação a partir de janeiro de 1973. A alegria foi tamanha que antes de voltarmos ao Brasil, como era fim de semana, decidimos comemorar o êxito da nossa missão visitando Buenos Aires, cidade que viria a ser a minha morada no ano vindouro (Figuras 1 & 2).

Figua 1- Imagem ao fundo da tradicional Casa Rosada, sede do Governo da Argentina.

Figura 2- Prof. Jamal e eu à beira o rio da Prata, famoso local turístico portenho.

A viagem com destino a Buenos Aires


Finalmente, ambos os problemas foram devidamente superados, e, a tênue e nebulosa idéia inicial havia definitivamente se materializado, surgia límpida e cristalina, totalmente delineável e palpável. Agora eu e minha família (mulher e filho) estávamos prontos e ansiosos para partir rumo ao desconhecido, para os braços da nossa primeira aventura no exterior.
No nosso próximo encontro já estaremos a caminho do nosso destino, vencendo os 2.000 km que separam São Paulo de Buenos Aires, em nossa valorosa Variant, mas antes, porém, passaremos por Punta Del Este e Colônia de Sacramento (Figuras 5-6 & 7) aonde tomaremos o ferry-boat Nicolas Mianovich (atualmente este barco está ancorado no bairro da Boca e tornou-se um museu náutico) para cruzar o rio da Prata e chegarmos, por fim, à capital portenha.

Figura 3- Uma das conhecidas praias de Punta del Este, a Playa Brava. Ao fundo vê-se o centro da cidade.


Figura 3- Visão do centro histórico de Colônia do Sacramento.
Figura 4- Nossa valorosa Variant antes de cruzar o rio da Prata, ainda em Colônia do Sacramento.