quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) (AIDS): ainda um sério problema de saúde pública universal (1)

Introdução

Dimensões globais da infecção pelo vírus da Imunodeficiência Adquirida Humana (HIV) e a população infantil
Em 2007 o total estimado de pessoas infectadas pelo HIV era de 33 milhões (variação de 30 a 36 milhões) (Figura 1), dos quais 17,7 milhões correspondiam a mulheres e 2,3 milhões (5,8%) a crianças com idade inferior a 15 anos.
Figura 1- Prevalência global da infecção pelo HIV nos diversos países.

Neste mesmo ano ocorreram 4,3 milhões de novas infecções pelo HIV em todo o mundo, das quais 530.000 (12,3%) foram em crianças (Figura 2).

Figura 2- Taxas de prevalência da AIDS em crianças ao longo dos anos.

Além disso, houve 2,9 milhões de mortes pela AIDS, sendo que 300.000 (13,1%) ocorreram em crianças (Figura 3).

Figura 3- Taxas de mortalidade na infância por AIDS ao longo dos anos.

O impacto da infecção pelo HIV no Brasil
Recentemente o Ministério da Saúde informou que o número de casos de AIDS no Brasil voltou a crescer. Em 2009 foram contabilizados 38.538 pacientes com diagnóstico da infecção, o que significou um aumento de 1.073 casos a mais do que o que havia sido registrado em 2008, quando 37.465 pessoas tiveram a doença confirmada. Este indicador é o mais elevado da década e comparado com o ano de 2000, o número de casos novos (incidência) subiu 22%. O avanço da AIDS ocorre mais intensamente entre homens e a população mais jovem. Dados do boletim epidemiológico divulgado este ano demonstram que o número de casos para cada 100 mil habitantes, entre os homens passou de 24,2 para 25 no período 2008-2009. Entre as mulheres a mesma taxa permaneceu inalterada em 15,5. Entre os jovens do sexo masculino na faixa etária de 13 a 19 anos, 26,8% dos casos de AIDS ocorreu entre homossexuais e 10,2% entre bissexuais.

Por outro lado, há uma notícia auspiciosa quanto à transmissão vertical, posto que na última década houve uma redução de 44% nos casos de AIDS da gestante para o recém-nascido. Estes dados para os recém-nascidos, embora representem um grande avanço em relação à década passada, quando se verificou que a transmissão vertical foi responsável pela infecção em 84,5% dos casos em crianças menores de 13 anos, ainda são extremamente preocupantes em número absoluto quanto aos casos novos.

Mecanismos de transmissão do HIV
Passado um pouco mais de um quarto de século das primeiras descrições de casos de AIDS, tem ocorrido o ressurgimento de grande interesse científico pelo papel das mucosas, em especial, as mucosas do trato gastrointestinal na infecção pelo HIV. Com efeito, a maior parte da transmissão do HIV ocorre através das mucosas, seja vaginal ou retal. Isso também acontece durante a transmissão vertical do HIV. Neste último caso, o HIV é inoculado, ainda dentro do útero, no trato gastrointestinal superior do feto durante a sucção do líquido amniótico infectado, ou durante o parto o recém nascido é infectado com sangue e secreções vaginais infectadas, ou mesmo posteriormente, a inoculação do HIV pode ocorrer através do leite materno infectado, durante a amamentação. O trato gastrointestinal por representar o maior órgão linfóide do ser humano tem papel destacado na infecção pelo HIV. Com exceção da transmissão parenteral, o trato gastrointestinal é a principal via de infecção pelo HIV, por transmissão vertical e por contato oral e genital. Os linfócitos da lâmina própria, por expressarem CCR5 e CXCR4, constituem as células alvo iniciais do HIV na mucosa intestinal (Figura 4).

Figura 4- Material de biópsia do intestino grosso obtida na fase aguda da infecção pelo HIV acarretando intensa reação inflamatória linfo-plasmocitária na lâmina própria.

Desde a mucosa, o vírus se dissemina sistemicamente, desencadeando depleção das células CD4+, inicialmente na lâmina própria e em seguida no sangue. À medida que ocorre depleção dos linfócitos CD4+ circulantes e na mucosa, monócitos e macrófagos assumem importância crescente como células alvo e reservatórios do próprio HIV. A infecção pelo HIV, portanto, determina a falência progressiva das funções fisiológicas e imunológicas do trato digestivo (Figura 5).

Figura 5- Material de biópsia do intestino grosso obtida já na fase de depleção imunológica evidenciando ausência prativcamente total do infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Os pacientes podem, então, apresentar má absorção dos nutrientes, perda de peso e desenvolver infecções por microorganismos oportunistas e doenças malignas do intestino. Os testes de avaliação da função digestivo-absortiva mostram frequentemente prejuízo na absorção ao longo dos diversos estágios da doença.

A Enteropatia provocada pelo HIV
Diarréia é uma das principais e mais freqüentes manifestações clínicas nas crianças portadoras da infecção pelo HIV. Cerca de 90% dos pacientes em algum momento da evolução da enfermidade desenvolve diarréia, a qual apresenta tendência à cronicidade associada à síndrome de má absorção dos nutrientes. A maioria dos pacientes infectados pelo HIV apresentará em algum momento da evolução da doença envolvimento do trato digestivo. A enteropatia descrita nos pacientes portadores da infecção pelo HIV pode ser devida à própria ação do agente viral ou por microorganismos oportunistas que, em decorrência da deficiência imunológica secundária, tornam-se enteropatogênicos, ou mesmo ainda, pode ocorrer uma associação de ambos os fatores. A enteropatia estabelecida provoca diferentes graus de intensidade de agravo da função digestivo-absortiva causando impacto altamente desfavorável sobre os estado nutricional, a qualidade de vida e a sobrevida dos pacientes. No entanto, nem sempre se observa uma correlação diretamente proporcional entre a ocorrência de diarréia, grau de atrofia das vilosidades intestinais e dos testes de absorção, de forma que o mecanismo responsável pela enteropatia do HIV ainda permanece por ter um esclarecimento definitivo.

Nos pacientes com contagem de CD4+ menor do que 50/mmm3 a probabilidade destes virem a apresentar diarréia crônica com 1, 2 e 3 anos de seguimento é de 48,5%, 74,3% e 95,6%, respectivamente. Trata-se de uma síndrome de gênese multifatorial (Quadro 1) envolvendo a interação entre infecções por microorganismos oportunistas, má absorção dos nutrientes, alterações metabólicas e, possivelmente, lesão tecidual determinada pelo próprio HIV (Figuras 6 & 7).
Figura 6- Material de biópsia do intestino delgado evidenciando atrofia vilositária sub-total e hiperplasia das glândulas crípticas.
Figura 7- Material de biópsia do intestino grosso evidenciando importante depleção do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Quadro 1- Esquema multifatorial da enteropatia da AIDS.

As principais alterações morfológicas descritas no intestino delgado dos pacientes infectados pelo HIV são atrofia das vilosidades de grau variável, hiperplasia das criptas e aumento dos linfócitos intra-epiteliais, associadas ou não à presença de sintomas, que podem ser observadas em quaisquer dos estágios da doença (Figura 8).


Figura 8- Material de biópsia do intestino delgado evidenciando atrofia vilositária de grau moderada/intensa com hiperplasia das criptas e aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.
No intestino grosso tem sido descrito graus de inflamação comparáveis aos daqueles evidenciados em pacientes portadores da doença inflamatória intestinal (Figura 9).
Figura 9- Material de biópsia de intestino grosso mostrando uma lesão de colite focal ativa (seta).
Na investigação microbiológica do trato gastrointestinal podem ser observados diversos microorganismos, oportunistas ou não, cujo achado nem sempre está associado às manifestações clínicas (Figuras 10 -11 – 12 & 13).

Figura 10- Material de biópsia do intestino grosso evidenciando a presença (seta) de uma partícula do vírus de Inclusão Citomegálica na lâmina própria.

Figura 11- Material de biópsia do intestino delgado evidenciando (seta) a presença de um merozoita maduro de Isospora belli acima da membrana basal do enterócito.

Figura 12- Ultramicrofotografia de células do intestino delgado evidenciando a presença de um merozoita de Enterocytozoon bieneusi comprimindo o núcleo de um enterócito.

Figura 13- Infecção por Cryptosporidium (setas identificando os inúmeros microorganismos) infiltrado na luz da glândula críptica do intestino grosso.

Vale ressaltar que a infecção pelo HIV pode afetar todo o trato gastrointestinal, bem como o sistema hepatobiliar (Figura 14).

Figura 14- Infecção da vesícula biliar por Cryptosporidium. Notar a presença de inúmeros microorganismos na luz da vesícula biliar.

No próximo encontro apresentarei nossa experiência ao investigar a função digestivo-absortiva e as anormalidades morfológicas do intestino em crianças portadoras de AIDS.