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quinta-feira, 18 de abril de 2024

A importância do Teste do Hidrogênio no Ar Expirado como método diagnóstico de SIBO

 

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Nosso IGASTROPED oferece a realização do Teste do Hidrogênio no Ar Expirado para o diagnóstico de SIBO com sobrecarga de Lactulose ou Glicose, para crianças e adultos de quaisquer idades, bem como para o diagnóstico das intolerâncias aos carboidratos da dieta, a saber: Lactose, Sacarose, Frutose e Frutanos.

Para agendar a data do exame favor entrar em contato com a Sra. Tatianne Rocha no telefone (11) 988427324

Introdução

Vale esclarecer que a sigla SIBO representa a abreviatura em língua inglesa da entidade clínica Small Intestinal Bacterial Overgrowth, cuja tradução literal para o nosso idioma significa Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado.

SIBO é definida “como uma enfermidade na qual o intestino delgado está anormalmente colonizado por um número aumentado e anormal de microrganismos da flora colônica”.  

A importância do teste do hidrogênio no ar expirado

O Teste do Hidrogênio no ar expirado trata-se de um método diagnóstico não invasivo, reconhecidamente de grande eficácia, desde longa data, pela literatura médica internacional, e cuja experiência em nossa clínica data desde os primórdios da década de 1980. É importante enfatizar que este teste não invasivo veio substituir com inegável vantagem o antigo teste de tolerância, que além de ser invasivo, envolve inúmeras coletas de sangue de forma sequencial por um longo período.

Mecanismos de proteção do intestino delgado para evitar a colonização bacteriana

A Figura 1 representa esquematicamente de forma estilizada a distribuição normal da microbiota do trato digestivo. Em condições normais ao longo do trato digestivo no sentido craniocaudal ocorre a presença de bactérias Gram + nas porções altas do intestino delgado, não superando a concentração de 104 colônias por mililitro de secreção jejunal. À medida que nos aproximamos do intestino grosso, em particular no íleo terminal a flora bacteriana aumenta e começam a surgir as bactérias anaeróbias Gram negativas. Ao cruzar a válvula ileocecal a população bacteriana colônica aumenta significativamente alcançando cerca de 1012 colônias por ml, que é praticamente idêntica a encontrada nas fezes. 


Figura 1- Modelo esquemático da distribuição normal da microbiota do trato digestivo.

O intestino delgado sadio utiliza vários mecanismos protetores para evitar a colonização bacteriana pela microbiota anaeróbica (Figura 2).


Figura 2- Fatores de proteção contra a ocorrência de SIBO em condições normais e que podem ser suscetíveis de ruptura em situações de enfermidade.

As secreções, ácida gástrica, biliar e pancreática, inibem a proliferação bacteriana tanto a ingerida quanto aquela presente na orofaringe que deve migrar distalmente. O peristaltismo do intestino delgado impede a estase e o crescimento bacteriano. A mucosa intestinal inclui uma camada de muco e mecanismos antibacterianos intrínsecos, tais como, as defensinas e imunoglobulinas. Finalmente, a válvula ileocecal limita o movimento retrógrado das bactérias anaeróbicas colônicas.

Quando e como realizar o teste para SIBO?

A SIBO é uma síndrome clínica que pode estar associada a inúmeras enfermidades (fibrose cística, doença de Parkinson, escleroderma, diabetes e enfermidades do tecido conectivo) e, em transtornos da interação entre o cérebro e o trato-digestivo, tais como, a síndrome do intestino irritável (SII), dispepsia funcional, alterações da motilidade intestinal após cirurgia e uso de opioides e corticosteroides. Os pacientes portadores de SIBO comumente relatam flatulência e o padrão ouro de referência para o diagnóstico seria a aspiração da secreção do intestino delgado com a respectiva cultura bacteriana. Entretanto, levando em consideração o custo, o caráter invasivo e as dificuldades técnicas para a obtenção destas amostras, está formalmente indicada a realização do Teste do Hidrogênio no ar expirado com sobrecarga de lactulose ou glicose para confirmar o diagnóstico de SIBO.

As principais indicações do Teste do Hidrogênio no ar expirado estão apontadas na Tabela 1 abaixo.



Teste de sobrecarga com Lactulose

A Lactulose é um dissacarídeo sintético composto por galactose-frutose, portanto não digerível e não absorvível, visto que o intestino humano não possui nenhuma dissacaridase capaz de hidrolisar este carboidrato, e, como consequência a Lactulose é sempre fermentada pela microbiota intestinal. Neste caso deve-se utilizar a dose de 20 gramas do carboidrato diluído em solução aquosa a 10%.

Normas para a realização do Teste do Hidrogênio no ar expirado com Lactulose

O teste deve sempre ser iniciado com a obtenção da amostra de jejum para a mensuração do H2 no ar expirado. Vale ressaltar que o paciente deve estar em jejum pelo período de ao menos 4 horas. Após a mensuração do valor basal de jejum, o qual deve ser, na imensa maioria dos casos, inferior a 5 partes por milhão (ppm), o teste respiratório pode começar. O teste com a Lactulose (a dose é fixa de 20 gramas diluídas a 10% em água) para pesquisa de SIBO deve ser realizado com a coleta de amostra do ar expirado a cada 15 minutos após a amostra de jejum durante a primeira hora do teste, e a cada 30 minutos até completar 2 horas.

Interpretação do Teste do Hidrogênio no ar expirado

A interpretação do resultado do teste do H2 no ar expirado baseia-se em 2 fatores fundamentais, a saber: 1- a concentração em ppm do Hidrogênio no ar expirado e/ou 2- o aparecimento de sintomas após a realização do teste de sobrecarga.

Caso ocorra a elevação da concentração do H2 acima de 10ppm sobre o nível de jejum, dentro dos 60 minutos iniciais do teste, indica a presença de SIBO. Essencialmente há 2 possibilidades para a ocorrência deste perfil particular do H2 no ar expirado, a saber:

1-    A curva mostra um perfil de 2 picos de elevação do H2 no ar expirado, ou seja, 1 deles nos primeiros 30 minutos do teste seguido de uma diminuição na concentração do H2, o qual é seguido por nova elevação após os 60 minutos. Este comportamento do teste indica que há um “Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado” associado à preservação da válvula ileocecal, e, também, que as bactérias presentes nas porções altas do intestino delgado foram capazes de metabolizar a Lactulose. O segundo pico demonstra que a maior porção da Lactulose foi fermentada no intestino grosso (Figura 3).



2-    A curva mostra um pico precoce, antes dos 60 minutos após a ingestão da Lactulose, o qual se mantém por pelo menos em 20 ppm acima do valor basal, sem apresentar queda no valor do H2 no ar expirado, até os 90 minutos. Esta curva apresenta um “quase” perfil de 2 picos, sem que ocorra o “vale” entre o primeiro e segundo picos (Figura 4).



Sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado (SIBO) associado a sintomas ou entidades clínicas que não apresentam evidências de má digestão/má absorção

Sabe-se que SIBO pode causar diarreia na ausência de outros aspectos clínicos de má digestão e/ou má absorção (esteatorreia, desnutrição, deficiências de vitaminas e nutrientes) desde a metade do século 20, com especial prevalência entre os indivíduos idosos.


Figura 5- Ação patológica da microbiota na SIBO sobre a gordura da dieta.


Figura 6- Ação patológica da microbiota na SIBO sobre os nutrientes da dieta.

Esta hipótese é plausível e se apoia em vários fatores. Em primeiro lugar, os fatores de risco para SIBO (hipocloridria, dismotilidade intestinal e resposta imunológica prejudicada) têm sido descritos neste grupo populacional.


Figura 7- Ação patológica da microbiota sobre a lactase na SIBO.

Em segundo lugar, inúmeros mecanismos podem ser levados em consideração para explicar a patogênese da diarreia devido à SIBO, e, a maior parte deles gira ao redor das interações microbiota-sais biliares, mesmo porque, efeitos diretos do microbioma alterado sobre o sistema neuromuscular entérico deve ser levado em consideração.


Figura 8- Ação patológica da microbiota sobre os sais biliares na SIBO.

Uma ruptura na fisiologia dos sais biliares tem sido considerada para explicar casos de diarreia sem causas conhecidas, bem como, na SII com diarreia. Embora a diarreia relacionada aos sais biliares tenha sido considerada decorrente de problemas da não reabsorção dos sais biliares pelo transportador ileal dos sais biliares, interações entre a microbiota e os sais biliares também têm sido levadas em consideração. Alterações na composição da microbiota fecal, que provavelmente refletem a microbiota colônica, têm sido descritas em associação com alterações da fisiologia dos sais biliares em pacientes com SII-diarreia, porém saber se tais alterações seriam primárias ou secundárias, necessita a realização de investigações mais detalhadas.

Uma das maiores alegações controvertidas relativas à SIBO tem sido sua relação com a Síndrome do Intestino Irritável (SII). Qual a possível relação entre SIBO e SII, embora seu nexo seja duvidoso? Tem sido demonstrado que pacientes portadores de SII, ao realizar o Teste do Hidrogênio no ar expirado após sobrecarga com Lactulose, estes testes revelaram-se positivos de forma mais prevalente do que em controles sadios. Além disso, comprovou-se a ocorrência da normalização dos testes e o desaparecimento dos sintomas após a realização de um ciclo terapêutico com antibioticoterapia. A eficácia da Rifaximina como atenuante dos sintomas na SII tem sido considerada uma evidência que dá suporte para esta associação SIBO e SII.

Alterações nos padrões motores do intestino delgado poderiam também fornecer alguma base para o conhecimento da interrelação SIBO e SII. Embora ainda pouco explorada, nos anos mais recentes, existem evidências que caracterizam uma dismotilidade intestinal na SII, porém essa hipótese ainda requer confirmação. Presume-se que a microbiota presente no intestino delgado em pacientes com SII poderia afetar o sistema neuromuscular entérico, e, por isso, ser a responsável pela dismotilidade, posto que a SIBO tem sido sugerida ocorrer em um subtipo de SII, a SII pós-gastroenterite.

SIBO tem ido proposta como responsável por impactar um outro fenômeno que poderia ser relevante para a SII, isto é, o envolvimento desde a barreira intestinal juntamente com o sistema imunológico associado ao intestino, e, pela via do eixo microbiota-intestino-cérebro, alcançar o sistema nervoso central, e, desta maneira, tornar-se um hospedeiro de tal cenário, simulando um “transtorno autoimune”.

Referências Bibliográficas

1-          Bushyhead D & Quigley E – Gastroenterology 2022;163:593-607

2-          Wurm P et cols. – JPGN 2023;77:31-38

3-          Moshirea B e cols. – Gastroenterology 2023;165:791-800

4-          Levine A e cols. – Gut 2018;67:1726-38

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Síndrome do Intestino Irritável (SII) com predominância de Diarreia: protocolo de avaliação clínica e laboratorial



Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Introdução

A revista Gastroenterology em seu exemplar de setembro de 2019, publicou as recomendações oficiais da American Gastroenterology Association (AGA) a respeito de um protocolo de avaliação laboratorial da diarreia funcional e da Síndrome do Intestino Irritável (SII-D) com predominância de diarreia. O foco deste protocolo tem por objetivo auxiliar os clínicos na escolha mais apropriada dos testes laboratoriais com o propósito de excluir outras hipóteses diagnósticas quando a suspeita principal, trata-se de diarreia funcional ou a SII-D. Estas orientações se aplicam na avaliação de pacientes imunologicamente competentes portadores de diarreia aquosa com pelo menos quatro semanas de duração. Estas orientações, portanto, visam excluir aqueles pacientes que apresentam diarreia sanguinolenta, diarreia com sinais de má absorção de gorduras, manifestações clínicas com sinais de alarme, tais como, parada do ritmo do crescimento, perda de peso, anemia e hipoalbuminemia, aqueles pacientes com história familiar de doença inflamatória intestinal, doença celíaca e aqueles que tenham viajado para regiões especificamente reconhecidas pela elevada prevalência de microrganismos enteropatogênicos (Tabelas 1 e 2).




Recomendações 

1-   Calprotectina e Lactoferrina fecal: esses testes têm sido propostos como marcadores para condições inflamatórias, tais como Doença Inflamatória Intestinal (DII). Inúmeros estudos têm utilizado a calprotectina fecal com diferentes limiares de valores normais para identificar pacientes com DII. Baseando-se em uma revisão dos dados disponíveis, tudo indica que o uso da calprotectina fecal com um limiar de 50ug/g oferece o melhor desempenho. Dentre os estudos que utilizam esse limiar, o conjunto da sensibilidade para DII foi de 0,81 e o conjunto da especificidade foi de 0,87. O risco de viés e a imprecisão estatística influenciaram a decisão para considerar o uso da calprotectina fecal como uma evidência de baixa qualidade, ou seja, a confiança desta estimativa é limitada. Em outras palavras, o verdadeiro efeito pode ser substancialmente diferente do que a eficácia estimada.
Da mesma maneira, a lactoferrina fecal tem sido estudada como um marcador para DII. Utilizando-se os dados dos estudos disponíveis, levando-se em consideração os limiares dos valores normais entre 4,0 a 7,25ug/g o conjunto da sensibilidade para DII foi 0,79 e o conjunto da especificidade 0,93. O risco de viés, a significativa heterogeneidade, e a imprecisão estatística influenciaram a determinação da decisão para considerar o uso da lactoferrina fecal como uma evidência de baixa qualidade, ou seja, a confiança desta estimativa é limitada. Em outras palavras, o verdadeiro efeito pode ser substancialmente diferente do que a eficácia estimada.

A baixa qualidade das evidências para apoiar o uso destes testes é composta pela pequena probabilidade de que um teste positivo deveria indicar o início de uma avaliação confirmatória posterior, levando a um diagnóstico mais precoce de DII, comparado aos 10% de probabilidade de que indivíduos não portadores de DII, poderiam ser desnecessariamente expostos a testes confirmatórios mais detalhados.  

2-   Hemossedimentação e/ou Proteína C Reativa: nos pacientes portadores de diarreia crônica a AGA se manifesta contra o uso desses marcadores como rastreadores para DII. Ambos os testes têm sido avaliados em populações com diarreia para identificar pacientes com DII. Nos estudos utilizando-se o valor de 5-6mg/l como limiar para o nível da PCR, o conjunto da sensibilidade foi de 0,73 e o conjunto da especificidade foi de 0,78. Estudos similares utilizando o limiar de valores de 10-15mm/h para hemossedimentação resultaram em estimativas baixas para a acurácia diagnóstica da DII. Entretanto, naquelas situações em que os testes fecais de lactoferrina ou calprotectina, não se encontraram disponíveis, o uso da PCR deve ser considerado, por ser uma opção razoável para o rastreamento da DII. 

3-   Teste para Giardia: de uma maneira geral a infestação por Giardia é uma causa frequente de diarreia aquosa que pode ser prontamente tratada. Teste diagnósticos modernos para Giardia apresentam características de bom desempenho, sendo que vários estudos têm demonstrado sensibilidade e especificidade acima de 95%. Os testes melhor avaliados utilizam tanto a detecção dos antígenos da Giardia como a reação da polimerase em cadeia. Considerando-se que os tratamentos para Giardia são extremamente eficazes esses testes devem ser utilizados para a avaliação da diarreia crônica líquida.

4-   Pesquisa de parasitas nas fezes: naqueles pacientes que apresentam diarreia crônica e que não referem viagens recentes ou imigração para áreas de alto risco, a AGA sugere que não se faça estudo parasitológico fecal.

5-   Teste para Doença Celíaca: aqueles pacientes que apresentam diarreia crônica, a AGA recomenda fortemente que se realizem testes para pesquisa de Doença Celíaca (DC) por meio do anticorpo antitransglutaminase IgA. A DC é uma importante causa de diarreia crônica e também de outras manifestações clínicas. Naqueles pacientes que apresentam diarreia crônica e que não sofrem de deficiência de IgA, a determinação do anticorpo antitransglutaminase IgA, representa uma estratégia altamente eficiente na determinação da existência da DC. Entretanto, apesar da alta especificidade deste teste, acima de 90%, a realização da biópsia duodenal para confirmar a DC faz-se necessária. É importante enfatizar, que a prescrição de uma dieta isenta de glúten só deve ser proposta após a confirmação da DC por meio da biópsia duodenal.  

Resumo     

Estas recomendações práticas para avaliação da diarreia funcional e da SII-D com intuito de excluir outros diagnósticos, foram propostos para reduzir as diversidades de conduta na prática clínica, e, ao mesmo tempo, promover cuidados de alta qualidade neste grupamento populacional. As presentes evidências apoiam o emprego da calprotectina fecal e da lactoferrina fecal, a pesquisa fecal de Giardia nos pacientes que apresentam diarreia crônica. O painel se mostra contrário ao uso de testes sanguíneos como o PCR e a hemossedimentação para rastrear a DII. Nossa evidência recomenda fortemente a pesquisa da DC por meio do anticorpo antitransglutaminase IgA. Uma ferramenta para apoiar a decisão clínica está incluída na figura abaixo para guiar a avaliação dos pacientes com diarreia liquida crônica (Figura 1 e Tabela 3).


  

Meus comentários
      
A SII trata-se de um transtorno digestivo funcional, e, segundo os critérios de Roma IV, pode se manifestar clinicamente por 3 formas distintas, a saber: diarreia, constipação e mista (diarreia alternada com constipação). Tendo em vista a inexistência de qualquer teste laboratorial que possibilite estabelecer o diagnóstico de certeza, este diagnóstico acaba sendo estabelecido por exclusão.

Historicamente a primeira descrição da SII-D foi feita por Murray Davidson, na década de 1960, nos Estados Unidos, sob a denominação de Diarreia Crônica Inespecífica. Posteriormente, esta entidade clínica foi confirmada por Horácio Toccalino, na década de 1970, na Argentina, sob a denominação de Diarreia Fermentativa. No nosso meio tive a primazia de descrever a SII-D, na década de 1980 (Fagundes Neto U e cols – Síndrome do colon irritável e diarreia na infância: diagnóstico e evolução - Jornal de Pediatria 58;366-70,1985), avaliando um grupo de crianças portadoras de diarreia crônica, cuja investigação laboratorial revelou-se normal para os testes de avaliação da função digestivo-absortiva disponíveis à época. Um dado clínico que despertou a atenção foi o fato de os pacientes não apresentarem qualquer agravo do estado nutricional para peso e estatura, a despeito da queixa de diarreia crônica, informações que analisadas em conjunto excluíam anormalidades nos processos digestivo-absortivos.

Como é do conhecimento geral a diarreia crônica apresenta um amplo espectro de diagnóstico diferencial envolvendo inúmeras enfermidades que são devidas a lesões orgânicas, a saber: infecções, doença celíaca, intolerância à lactose, intolerância à frutose, doença inflamatória intestinal, síndrome do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado (sigla em inglês SIBO – small intestinal bacterial overgrowth) (Figura 2), colite microscópica entre outras. Levando-se em consideração que estas enfermidades orgânicas em algumas circunstâncias podem apresentar manifestações clínicas que venham se sobrepor à SII-D, torna-se crucial a realização de uma abordagem clínico-laboratorial para que elas possam ser descartadas, e, desta forma, permitir, por exclusão, selar o diagnóstico da SII-D com ampla margem de segurança.


Figura 2- Teste de sobrecarga com lactulose evidenciando pico precoce de elevação do Hidrogênio no ar expirado, o que caracteriza a SIBO.

Vale a pena ressaltar que além dos testes diagnósticos referidos no presente artigo do protocolo da AGA, saliento a necessidade de serem realizados também outros testes de investigação não invasivos. Neste sentido refiro-me aos testes do Hidrogênio no ar expirado com sobrecargas de lactose, frutose e lactulose (investigação de SIBO). A título de informação, em 2013 publicamos na revista Arquivos de Gastroenterologia 50;226-30 o artigo intitulado ”Fructose malabsorption in children with functional digestive disorders” cujos autores são: Lozinsky AC, Boé C, Palmero R e Fagundes-Neto U. Foram estudados 43 pacientes, de forma consecutiva, de ambos os sexos com idades que variaram de 3 meses a 16 anos, mediana 2,6 anos, que apresentavam queixa de transtornos gastrointestinais e/ou nutricionais. Deste grupo, 16 pacientes foram diagnosticados portadores da SII-D, e o teste do Hidrogênio no ar expirado com sobrecarga de frutose mostrou-se alterado em 7 (22,8%) deles (Figuras 3-4 e 5).   


Figura 5- Menina portadora de intolerância à frutose com distensão abdominal após ingestão de grande quantidade de frutose e em condições normais.

Recentemente, 2 biomarcadores tornaram-se potencialmente viáveis, e, ao que tudo indica, poderão vir a ser de utilidade para confirmar o diagnóstico da SII-D, a saber: um anticorpo contra uma neurotoxina (CdtB) produzida por diversas bactérias enteropatogênicas, que interage com a proteína vinculina na mucosa intestinal, mecanismo que é postulado para a lesão do trato gastrointestinal causado pela infecção entérica aguda, o que poderia identificar um grupo de pacientes que apresenta a SII-D pós-infecciosa. Estudos realizados para avaliar o desempenho dos anticorpos anti-neurotoxina e anti-vinculina em pacientes portadores da SII-D mostraram-se significativamente mais elevados do que os verificados em controles sadios, mas não se diferenciaram de pacientes com doença celíaca. Tudo indica que a especificidade destes anticorpos seja razoavelmente boa, com elevado valor preditivo positivo, entretanto, por outro lado, a sensibilidade foi baixa, menor que 50%. Portanto, quando o teste for positivo aumenta a probabilidade de confiança para o diagnóstico da SII-D. Por outro lado, o teste negativo não permite a possibilidade de descartar o diagnóstico da SII-D. Vale ressaltar que estes testes ainda se encontram em fase de experimentação, e, portanto, ainda não se encontram disponíveis para a serem utilizados na prática clínica diária.

Em conclusão, devido a inexistência, até o presente momento, da disponibilidade de biomarcadores que permitam estabelecer o diagnóstico de certeza da SII-D, na ausência de sinais clínicos de alarme, o diagnóstico da SII-D continua sendo de exclusão.
     
Referências Bibliográficas

1-          Smalley W. e cols. - Gastroenterology 2019; 157:851-54.
2-          Carrasco-Labra A. e cols. – Gastroenterology 2019; 157:859-80.



terça-feira, 11 de abril de 2017

O teste do Hidrogênio no ar expirado: sua consolidação como método eficiente, não invasivo, de avaliação da função digestivo-absortiva

Ulysses Fagundes Neto

Introdução

No passado, acreditava-se que o pulmão fosse um órgão apenas responsável pela respiração e, portanto, tinha-se o conceito de que somente Oxigênio (O2) e Dióxido de Carbono (CO2) pudessem ser dosados no ar expirado. Atualmente, porém, sabe-se que o ar expirado dos pulmões contém mais de 2000 substâncias distintas, e que, além da respiração, os pulmões apresentam uma função adicional, qual seja a excreção de substâncias voláteis, o que tornou os pulmões reconhecidamente como “órgãos excretores” de gases que se encontram dissolvidos no sangue. Uma destas inúmeras substâncias voláteis excretadas pelos pulmões é o Hidrogênio (H2), o qual pode ser facilmente medido com a utilização de um equipamento manual de teste respiratório (Figura 1).




Figura 1- Referência Ledochowiski M. Journal of Breath Research 2: 1-9, 2008.

O ser humano sadio em jejum e em repouso não elimina H2 porque o seu metabolismo não produz este gás, o qual somente é gerado durante o metabolismo anaeróbio. Considerando que o organismo humano em repouso não possui metabolismo anaeróbio, o H2 produzido e excretado pelos pulmões deve ter origem nas bactérias anaeróbias e, como se sabe, o trato digestivo alberga um número elevado de bactérias, que são predominantemente anaeróbias e que produzem grandes quantidades de H2. De fato, a concentração de bactérias, em especial as anaeróbias, alcança no íleo terminal e no intestino grosso valores de até 10(15) colônias/ml. Por outro lado, no duodeno e nas porções superiores do jejuno, praticamente não ocorre colonização por bactérias anaeróbias, encontrando-se apenas bactérias aeróbias, consideradas residentes das vias aéreas superiores e resistentes à barreira bactericida ácida gástrica, na concentração de até 10(4) colônias/ml. Portanto, pode-se assumir, com boa margem de segurança, que o H2 expirado pelos pulmões dos seres humanos em repouso é produzido, quase que exclusivamente, pelo metabolismo bacteriano dos anaeróbios que colonizam o íleo e o intestino grosso. Desta forma, pode-se afirmar que, em condições normais, o H2 mensurado no ar expirado diz respeito à quantidade da atividade metabólica das bactérias anaeróbias presentes no trato digestivo, em particular, no íleo e no intestino grosso. Entretanto, em situações patológicas, como por exemplo, na síndrome do “Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado”, a concentração de bactérias anaeróbias torna-se predominante no intestino delgado e pode alcançar valores superiores a 10(4) colônias/ml. As bactérias anaeróbias têm preferência para metabolizar os carboidratos, os quais, como parte da reação de fermentação, são “quebrados” dando a formação de ácidos graxos de cadeia pequena, CO2 e H2 (Figura 2).




Figura 2- Referência Eisenmann & cols. Journal of Breath Research 2: 1-9, 2008.

Uma grande parte do CO2 permanece na luz do intestino e é responsável pela sensação de flatulência, enquanto que os ácidos graxos de cadeia pequena exercem efeito osmótico atraindo água para o interior do lúmen intestinal, causando diarréia. O H2 produzido no intestino atravessa a parede intestinal, cai na circulação sanguínea, é transportado até os pulmões e, finalmente, é eliminado pela respiração como parte do ar expirado. A concentração de H2 expirada pode, portanto, ser facilmente mensurada em partes por milhão (ppm) por técnica não invasiva, por um equipamento de uso manual. A concentração do H2 mensurado na expiração é sempre um reflexo da massa de bactérias e da atividade metabólica bacteriana no trato digestivo. O momento no qual a concentração de H2 no ar expirado se eleva durante a realização do teste respiratório fornece uma indicação em qual região do intestino se deu a fermentação.


Normas para a realização do teste do H2 no ar expirado


Cada teste deve sempre se iniciar obtendo-se a amostra de jejum para a mensuração do H2 no ar expirado. Vale ressaltar que o paciente deve estar em jejum pelo período de ao menos 4 horas (porém 8 horas é o ideal). Após a mensuração do valor basal de jejum, o qual deve na imensa maioria dos casos ser inferior a 5 partes por milhão (ppm) (não deve ser superior a 10 ppm), o teste respiratório pode começar. O paciente deve ingerir o conteúdo de uma solução aquosa diluída a 10% do carboidrato que se deseja testar a tolerância e/ou absorção à dose de 2 gramas/kg de peso para os dissacarídeos (Lactose, Maltose e Sacarose) e à dose de 1 grama/kg de peso para os monossacarídeos (Glicose, Frutose e Galactose). A dose máxima para quaisquer dos carboidratos a serem testados não deve ultrapassar 25 gramas. Após a obtenção da amostra de jejum e da ingestão da solução aquosa, contendo o carboidrato a ser testado, amostras de ar expirado devem ser obtidas aos 15, 30, 60, 90 e 120 minutos. Caso o teste seja realizado com Lactulose (a dose é fixa de 20 gramas diluídas a 10% em água), para pesquisa de “Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado”, deve-se acrescentar uma coleta de amostra do ar expirado aos 45 minutos após a amostra de jejum. Vale salientar que a Lactulose é um dissacarídeo sintético (Frutose-Galactose) não absorvível que exerce efeito osmótico e que, portanto, pode provocar sintomas após sua ingestão, tais como, flatulência, cólicas e diarréia, os quais costumam desaparecer pouco tempo depois do término do teste.


Interpretação do Teste do H2 no ar expirado


A interpretação do resultado do teste do H2 no ar expirado baseia-se em 2 fatores cruciais, a saber: 1- a concentração em ppm do Hidrogênio expirado e 2- o aparecimento de sintomas após a realização do teste de sobrecarga.


1- Teste Normal: No caso de haver suficiência digestivo-absortiva, não deverá ocorrer aumento significativo da concentração de H2 no ar expirado (elevação inferior a 10 ppm sobre o nível de jejum) e nem tampouco referência a manifestações clínicas. Desta forma o teste deve ser considerado Normal (Figura 3).


Figura 3- Referência Eisenmann A. & cols. Journal of Breath Research 2: 1-9, 2008.

Caso surjam sintomas clínicos e a concentração de H2 no ar expirado for inferior a 20 ppm, trata-se de um não produtor de H2, o que pode ocorrer em até 5% dos indivíduos testados. Nesta circunstância, para se estabelecer um diagnóstico de segurança deve ser realizado o teste com Lactulose, posto que este dissacarídeo é sempre fermentado, e, se ainda assim não houver elevação da concentração de H2 no ar expirado pode-se assumir com segurança tratar-se de um não produtor de H2.

2- Teste Anormal: A elevação da concentração de H2 acima de 20 ppm sobre o nível de jejum a partir dos 60 minutos depois da ingestão do carboidrato é considerado um teste Anormal (Figura 4) caracterizado como “má absorção” e, caso concomitantemente surjam sintomas, deve-se agregar o diagnóstico de “intolerância”.




  
Figura 4- Referência Eisenmann A. & cols. Journal of Breath Research 2: 1-9, 2008.

Por outro lado, caso ocorra um aumento significativo do H2 no ar expirado a partir dos 60 minutos, mas não surjam sintomas deve-se, nesta circunstância, utilizar a denominação “má absorção” para o teste bioquímico, mas do ponto de vista clínico não ocorreu “intolerância” (Figura 5).



Figura 5- Eisenmann A. & cols. Journal of Breath Research 2: 1-9, 2008.

Usualmente deve ser possível alcançar o pico máximo do aumento do H2 no ar expirado aos 60 minutos, ou ainda melhor, aos 90 minutos, porque pode tardar esse tempo para que o carboidrato não absorvido alcance o intestino grosso. Caso o valor do H2 no ar expirado seja superior a 10 ppm e inferior a 20 ppm, o teste deve ser considerado como limítrofe anormal. Além disso, outro fator também deve ser levado em consideração, pois se houver uma elevação da concentração de H2 acima de 10 ppm sobre o nível de jejum dentro dos primeiros 30 minutos do teste, este valor é indicativo de “Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado”. Essencialmente há 2 possibilidades para a ocorrência deste perfil particular do H2 no ar expirado, a saber:


1- a curva mostra um perfil de 2 picos de elevação do H2 no ar expirado, ou seja, 1 deles nos primeiros 30 minutos do teste seguido de uma diminuição na concentração do H2, o qual é seguido por nova elevação após os 60 minutos. Este comportamento do teste indica que há “Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado” associado a preservação da válvula íleo-cecal e também que as bactérias presentes nas porções altas do intestino delgado foram capazes de metabolizar a substância testada. O segundo pico demonstra que a maior porção da substância testada não foi absorvida e que, portanto, foi fermentada no intestino grosso (má absorção) (Figura 6).



Figura 6- Referência Eisenmann A. & cols. Journal of Breath Research 2:1-9,2008.

Caso o paciente, durante a realização do teste, decorridos menos de 60 minutos após a ingestão da substância testada, vier a apresentar sintomas e que estes rapidamente venham a desaparecer, isto indica que as queixas se devem mais provavelmente ao “Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado” do que à má absorção da substância testada.


2- a curva mostra um pico precoce, antes dos 60 minutos após a ingestão da substância testada, o qual se mantem pelo menos em 20 ppm acima do valor basal, sem apresentar uma queda no valor do H2 no ar expirado, até os 90 minutos. Esta curva apresenta um “quase” perfil de 2 picos, sem que ocorra o “vale” entre o primeiro e segundo picos (Figura 7).


Figura 7- Referência Eisenmann A. & cols. Journal of Breath Research 2:1-9, 2008

Neste caso deve-se interpretar que houve um refluxo do fluido do intestino grosso para o íleo em virtude de uma hipotonia da válvula íleo-cecal.


Tipos de testes do H2 no ar expirado


Na verdade, qualquer carboidrato, tais como os monossacarídeos (Glicose, Frutose e Galactose), dissacarídeos (Sacarose, Maltose e Lactose) e mesmo polissacarídeos, álcool-açúcares, e o dissacarídeo sintético Lactulose, não absorvível (Galactose-Frutose). Os tipos de teste do H2 no ar expirado mais indicados estão representados na Tabela 1.

Tabela 1

Principais tipos de teste do H2 no ar expirado para avaliar a função digestivo-absortiva:

1- Lactose; 2- Glicose; 3- Frutose; 4- Lactulose



As principais indicações do teste do H2 no ar expirado estão apontadas na Tabela 2.


Tabela 2

Principais indicações para a realização do teste do H2 no ar expirado:

1- Síndrome de Má absorção;
2- Síndrome do Intestino Irritável;
3- Intolerância à Frutose (dôces, frutas e Mel);
4- Investigação de meteorismo e Flatulência; 5- Monitoração da Doença Celíaca;
6- Doença Inflamatória Intestinal;
7- Deficiência Primária ou secundária de Lactase;
8- Intolerância à Lactose ;
9- Diarréia Crônica


Teste de sobrecarga com Lactulose

Como anteriormente referido, a Lactulose é um dissacarídeo sintético composto por Galactose-Frutose, portanto não absorvível, visto que o intestino humano não possui nenhuma dissacaridase capaz de hidrolisar este carboidrato, e, como conseqüência, a Lactulose é sempre fermentada. Neste caso deve-se utilizar 20 gramas do carboidrato diluído em solução aquosa a 10%. As indicações para a realização do teste com Lactulose estão discriminadas na Tabela 3.


Tabela 3

Principais indicações para a realização do teste do H2 no ar expirado com Lactulose:

1- Determinação do tempo de trânsito oro-cecal;
2- Constipação;
3- Síndrome do Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado



Todos estes testes, individualmente ou em conjunto, para se avaliar o perfil da função digestivo-absortiva ou o tempo de trânsito oro-cecal estão disponíveis para atendimento aos pacientes no Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo.

IGASTROPED tel.: (11) 98842.7324 (Contato Tatianne Rocha)