terça-feira, 26 de julho de 2016

Gastrites (Parte 4)

        Milena R. Macitelli & Ulysses Fagundes Neto


Gastrite por H. pylori

H. pylori, juntamente com o Streptococcus mutans, agente da cárie dentária, são considerados os patógenos mais comuns das infecções crônicas no ser humano e o agente microbiano mais importante do trato digestório alto. A infecção por H. pylori é a principal causa de gastrite no mundo. A maioria das pessoas com gastrite por H. pylori é assintomática, a não ser que desenvolvam doença ulcerosa, adenocarcinoma ou linfoma.

O H. pylori é uma bactéria espiralada, Gram -, em forma de bastonete, com 3-5 mm de comprimento e 0,5 a 1 mm de largura. Possui potente atividade ureásica, sugerindo a presença dessa enzima pré-formada. Admite-se que o ser humano é o único reservatório natural da bactéria, mas estudos apontam achados de colônias em gatos domésticos. O H. pylori é adaptado para colonizar apenas a mucosa gástrica, sendo raramente observado em áreas de metaplasia intestinal. Quando é observado em outros sítios, como esôfago e duodeno, está localizado nas áreas de metaplasia gástrica ou em áreas de mucosa gástrica ectópica. Em crianças e adultos, normalmente localiza-se na mucosa antral, mas pode estar presente no corpo e na cárdia. Ao chegar ao estômago, a bactéria hidrolisa a ureia, por meio da urease, produzindo amônia e CO2. A amônia funciona como um tampão para os íons de Hidrogênio, criando um ambiente com pH ótimo para a sua sobrevivência. Com a ajuda dos flagelos, que lhe proporcionam uma locomoção helicoidal, a bactéria penetra na barreira mucosa, atinge as proximidades do epitélio gástrico e adere-se às células epiteliais, por meio das adesinas. Então, localiza-se no muco, em contato direto com as células epiteliais ou mesmo dentro dos espaços intracelulares (onde há alta concentração de substâncias nutritivas, pH alto e baixo nível de O2, o que favorece sua reprodução e sua atividade.

Quanto à epidemiologia o H. pylori tem distribuição universal, apresentando prevalência global superior a 50%.  Nos países em desenvolvimento, observam-se taxas mais altas de prevalência e a contaminação ocorre em idades mais precoces, pois as condições de saneamento básico precário são favoráveis a disseminação da bactéria. São também fatores de risco para as altas taxas de infecção pelo H. pylori a baixa condição socioeconômica, falta de higiene, situações de   promiscuidade e famílias populosas vivendo na mesma casa.

A incidência e a prevalência variam muito dentro e entre os países. No Brasil, estima-se que a prevalência seja a seguinte: 6 a 8 anos: 30%, 10 a 19 anos: 78%, adultos: 82%.


Patogenicidade do H. pylori

 


Figura 7- Mecanismos de patogenicidade do H. pylori. A ingestão do H. pylori e a subsequente colonização gástrica podem induzir a inflamação da mucosa do estômago e diferentes lesões orgânicas, tais como, gastrite crônica, úlcera péptica e câncer gástrico. Os fatores determinantes da evolução incluem os relacionados ao hospedeiro, ao ambiente, aos mecanismos de virulência da bactéria e a intensidade e o local da inflamação.

O H. pylori induz, tanto em adultos quanto em crianças infectadas, a produção de um infiltrado neutrofílico agudo, seguido de gastrite crônica, geralmente assintomática, sem úlceras, a qual permanece presente na duração da infecção.  A infecção aguda pode causar dor epigástrica, náusea, vômitos, halitose e cefaleia. Como consequência precoce da infecção aguda ocorre aumento da secreção ácida gástrica, seguida de acloridria em aproximadamente 1 semana e que pode durar 6 semanas ou mais. A diminuição da secreção ácida gástrica parece estar relacionada ao tempo e ao grau de inflamação da mucosa gástrica.

Alguns estudos mostram que a infecção aguda por H. pylori em crianças tendem a desaparecer espontaneamente, o que oposto ao que costuma ocorrer nos adultos. A gastrite crônica é diagnosticada com maior frequência que a aguda. A localização da lesão tem predomínio na região antral, o que acarreta maior risco de úlcera péptica duodenal. Um menor número de pacientes pode desenvolver gastrite atrófica com metaplasia intestinal, o que representa risco posterior de desenvolvimento de úlcera e adenocarcinomas gástricos.

Diversos trabalhos mostram uma prevalência muito variada de gastrite atrófica (4 a 72%), dependendo da metodologia utilizada e da população avaliada. Gastrite crônica assintomática não é indicação para erradicação da bactéria para a maioria dos consensos, mas a gastrite atrófica é considerada indicação relativa.


Diagnóstico

A Endoscopia Digestiva Alta (EDA) com biópsia para estudo histopatológico é indicada para avaliação da criança com suspeita de doença péptica gastroduodenal e possibilita tanto a pesquisa de H. pylori como o diagnóstico de doenças gastroduodenais. A pesquisa de H. pylori pelo estudo histopatológico é um método de alta sensibilidade e especificidade. A bactéria pode ser evidenciada pela coloração hematoxilina-eosina, mas nos casos de baixa densidade bacteriana a coloração Giemsa modificada ou a imuno-histoquímica são mais indicadas.

A EDA com biópsia e avaliação histopatológica tem sido considerada, por muitos autores, como o padrão-ouro para a pesquisa do H. pylori, apesar da desvantagem do alto custo e da necessidade de sedação ou anestesia geral.

Como a distribuição do H. pylori não ocorre de maneira homogênea na mucosa, recomenda-se a retirada de pelo menos 4 fragmentos: 2 do corpo e 2 do antro. As amostras do antro, local onde a bactéria geralmente é encontrada em maior densidade e frequência, devem ser retiradas da região pré-pilórica, 2 a 3 cm do piloro (uma na grande e outra na pequena curvatura). Para evitar resultados falso-negativos, recomenda-se realizar o teste para pesquisa de H. pylori no mínimo 2 semanas após a interrupção do tratamento com inibidores da bomba de próton (IBP) e 4 semanas após a interrupção dos antibióticos ou tratamento para erradicação do H. pylori.

As figuras 8-9 e 10 demonstram a lesão macroscópica e os achados do microrganismo no exame histopatológico. 


Figura 8- Nodularidade difusa antral observada na endoscopia de um adolescente com dor abdominal epigástrica. 



Figura 9- Detecção do H. pylori pelo método da imuno-histoquímica.



Figura 10- Detecção do H. pylori pela coloração hetoxilina-eosina.


Cultura

A cultura do material da biópsia gástrica, possibilita o diagnóstico da infecção, o estudo da sensibilidade da bactéria aos antimicrobianos, a escolha correta das medicações a serem utilizadas e a presença de fatores de virulência. Além disso, tem também a vantagem de permitir a realização do antibiograma, útil principalmente nos casos de fracasso terapêutico. A sensibilidade deste método varia de 77 a 100%. Para se obter o sucesso no isolamento da bactéria, deve-se avaliar pelo menos 2 fragmentos (1 de corpo e 1 de antro). A desvantagem deste teste é seu alto custo, portanto, deve ser reservado aos grupos de pesquisa e na suspeita de resistência às drogas.


Teste da urease

A urease pré-formada pelo H. pylori encontra-se presente no material da biópsia gástrica e hidrolisa a ureia contida no reativo, produzindo amônia e alcalinizando o meio. A alcalinização é percebida por um indicador de pH, que altera a cor da solução de amarelo para cor-de-rosa ou vermelho. O teste é considerado positivo no caso de o gel tornar-se vermelho na leitura realizada 24 horas após o exame, porém, mudanças de cor mais tardias podem resultar falso-positivos. A eficácia do teste depende do número de tecidos testados, dos sítios das biópsias, da carga bacteriana, da presença de sangramento e do uso prévio de antibióticos ou IBP.


Novas técnicas diagnósticas


A EDA com magnificação apresenta boa sensibilidade e especificidade; a EDA com luz branca e autofluorescência é utilizada para identificar áreas da mucosa gástrica normal (como na gastrite atrófica), auxiliando na escolha do local a ser biopsiado. A Espectroscopia infravermelha de Raman, que é uma técnica vibracional espectroscópica, quando adaptada à endoscopia, detectou a presença de H. pylori com sensibilidade e especificidade em torno de 80%.


Tratamento

O tratamento indicado é terapia tríplice durante 4 semanas com os seguintes medicamentos:

Omeprazol + Amoxicilina + Claritromicina

Indicações de tratamento conforme consensos e diretrizes:

Consenso Brasileiro:

Úlcera duodenal: ativa ou cicatrizada

Linfoma MALT de baixo grau

Pós-cirurgia para câncer gástrico avançado, em    pacientes submetidos a gastrectomia parcial

Gastrite com histologia intensa

Outras situações:
     Pacientes de risco para úlcera/complicações que utilizam anti-inflamatórios não esteroides.
     Pacientes com história prévia de úlcera ou hemorragia digestiva alta que deverão usar AINE inibidores específicos ou não da COX2.
     Indivíduos de risco para câncer gástrico

World Gastroenterological Organization:

Úlcera gástrica e/ou duodenal, passada ou presente, com ou sem complicações
Após ressecção de câncer gástrico
Linfoma MALT
Gastrite atrófica
Dispepsia
Parentes de primeiro grau com câncer gástrico
Desejo do paciente

Prognóstico

A gastrite crônica associada a infecção por H. pylori normalmente é bem controlada com terapia medicamentosa. A resolução da infecção pela bactéria geralmente é alcançada de 80 a 95% dos casos. Ocasionalmente pode progredir para úlceras, necessitando de tempo maior de tratamento.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Gastrites (Parte 3)

   Milena R. Macitelli & Ulysses Fagundes Neto



Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se essencialmente na histologia, cuja avaliação se realiza em material obtido por meio de biópsia do estômago, e não através dos possíveis achados endoscópicos, pois estes podem ser muito variáveis.

A gastrite em diversas circunstancias é diagnosticada através de biópsias da mucosa gástrica cuja aparência macroscopia ao exame endoscópico não evidencia quaisquer anomalias.

Endoscopia Digestiva Alta e Biópsia Gástrica

A partir do momento que a endoscopia for indicada, é importante que o endoscopista se esforce para maximizar o potencial diagnóstico do procedimento. Achados endoscópicos e histológicos devem ser sempre interpretados em combinação com a história clínica obtida e os achados do exame físico.

Patologista experiente com conhecimento especifico em doenças gastrointestinais representa o pilar central de todo o processo diagnóstico. Em Pediatria, frequentemente, há uma tendência em fornecer o diagnóstico de gastrite baseado no infiltrado celular, o qual pode estar marginalmente aumentado e muitas vezes pode ser explicado por uma infecção viral recente.

Recomenda-se fortemente que o endoscopista e o gastroenterologista revisem a histologia do paciente com o patologista, pois este procedimento possibilita estabelecer uma excelente correlação entre os sintomas referidos pelo paciente e os achados histopatológicos.

Inflamação crônica não-específica é um achado comum e, normalmente, de pouca importância no manejo dos pacientes, entretanto, a exclusão de outras causas possa ser útil. Há alguns padrões de normalidade de infiltrado celular na mucosa gástrica de crianças, baseados em biópsias "normais" em estudos retrospectivos anteriores.

Algumas drogas podem causar alterações endoscópicas e histopatológicas importantes, tais como:
          Compostos de bismuto
          Antibióticos
          Anti-inflamatórios não esteroides
          Ferro administrado por via oral
          Corticosteroides orais/inalatórios
          Agentes quimioterápicos

As drogas utilizadas pelos pacientes devem ser suspensas pelo menos 2 semanas antes do procedimento para evitar que achados endoscópicos sejam mascarados.

Achados endoscópicos

Recomenda-se que o endoscopista documente apenas o que for realmente visualizado, evitando o uso de jargões envolvendo as terminações em "ite", como por exemplo, ao invés de relatar gastrite é mais apropriado descrever desde eritema a ulceração da mucosa. No caso de a mucosa apresentar-se avermelhada deve ser documentada como enantematosa ou eritematosa, com variações desde leve, moderada, intensa até hemorrágica.

A presença de nodularidade antral pode indicar a ocorrência de gastrite por H. pylori (passada ou atual). Os nódulos podem durar de meses a anos após a erradicação do H. pylori e a resolução da gastrite e da inflamação podem não estar presentes na biópsia.

As lesões encontradas na mucosa gástrica podem ser descritas como superficiais ou profundas, mas é importante diferenciar a profundidade das mesmas, a saber:

Erosão - lesão da mucosa que não penetra a muscular da mucosa. As erosões usualmente são múltiplas, têm bases esbranquiçadas e cada uma é delimitada por um anel de eritema.  Quando uma erosão apresentou sangramento recente, sua base torna-se negra.

Úlcera – se estende à muscular e à submucosa. As úlceras são lesões mais profundas e quando profundas podem ter bordas laminadas.


Figura 6- Diferença entre a erosão e a úlcera gástrica e/ou duodenal. A erosão é uma lesão que não ultrapassa a muscular da mucosa (MM), enquanto a úlcera ultrapassa a MM.

A presença de hemorragia dá uma aparência à mucosa de cor vermelha brilhante em placas ou petequeias discretas. Embora alguns endoscopistas relatem "hemorragia da submucosa", a endoscopia não permite a visualização além da muscular da mucosa. Portanto, o termo hemorragia subepitelial é o mais adequado. Outros termos para hemorragia subepitelial também são utilizados, tais como: gastrite aguda, gastrite hemorrágica e erosão hemorrágica.

Quando as erosões ou ulceras são observadas, alguns aspectos das mesmas devem ser caracterizados:

·         Local anatômico do estômago ou duodeno
·         Tamanho, forma, quantidade
·         Profundidade (superficial ou profunda)
·         Natureza da borda (elevada ou laminada)
·         Presença de vasos ou coágulos
·         Sangramento ativo
·      Nódulos ou pseudopólipos podem ocorrer em doenças como: gastrite eosinofílica, gastrite por Citomegalovirus, gastrite, Doença de Crohn.

Amostras de biópsia

Apesar do antro ser o local de maior incidência de anormalidades histológicas de diversas doenças em crianças, as biópsias devem ser obtidas de diferentes zonas topográficas do estômago. O número e a localização da biópsia dependem da doença suspeitada e dos achados endoscópicos. Mesmo quando a mucosa aparenta ser normal, biópsias devem ser obtidas (cárdia na suspeita de infecção por H. pylori, doença do refluxo gastresofágico ou linfoma MALT).

O tamanho das biópsias é importante e deve seguir a seguinte orientação:

·         Lactentes acima de 2-3 meses: canal de biópsia de 2.8mm é adequado.

·         Crianças a partir de 5-6 anos de idade: fórceps "jumbo" oferecem 2 a 3 vezes mais mucosa.

Em alguns casos, a ressecção endoscópica da mucosa ou biópsias cirúrgicas podem ser indicadas, como por exemplo nas doenças infiltrativas, tais como, câncer, linfomas, leiomioma/leiomiossarcomas ou polipose gástrica.

Abordagem histológica

Há muitas maneiras de abordar e descrever histologicamente ou classificar a gastrite. A quantidade de classificações para uma mesma doença demonstra claramente as controvérsias existentes na literatura. A conturbada nomenclatura de várias classificações dificultou a compreensão da doença durante diversos anos.

A classificação de Sidney é aceita em adultos, porém tem pequena aplicabilidade em crianças (Quadro 1). Por este motivo gastroenterologistas pediátricos devem ter como foco obter uma amostra significativa de material de biópsia e, além disso, a análise dos achados histológicos deve ser realizada por patologista com larga experiência em patologias do trato digestivo.


Quadro 1- Sistema de Classificação de Sidney

Para a abordagem das lesões histológicas é tradicional descrever o tipo de célula presente e sua respectiva distribuição na mucosa de um determinado órgão. O processo inflamatório obervado pode ser do tipo “agudo” ou “ativo” quando há presença de neutrófilos. A presença de qualquer quantidade de neutrófilos é anormal, indicando inflamação aguda ou ativa.

Por outro lado, deve ser considerado “crônico” quando estão presentes células arredondadas, tais como, linfócitos, plasmócitos etc. No processo crônico associado à atividade podem ser encontradas células de ambas as características anteriormente mencionadas.

A presença de folículos linfoides, em crianças, é altamente sugestiva de infecção por H. pylori. Caso os folículos linfóides e a inflamação estiverem presentes na ausência do H. pylori, é provável que o microrganismo tenha sido eliminado. Ainda na infecção por H. pylori, os folículos linfoides podem deixar de serem encontrados se o tamanho ou número de biópsias forem insuficientes.

Em associação ao infiltrado celular, deve-se também descrever a extensão e a profundidade da lesão, bem como se a mesma está localizada de forma focal ou difusa no material de biópsia analisado.

Atrofia e metaplasia intestinal

Atrofia gástrica ("gastrite atrófica") é uma importante consequência de gastrite. É considerada uma lesão pré-neoplásica quando um certo tipo de metaplasia intestinal desenvolve-se na mucosa atrófica. Apesar de a infecção por H. pylori ser, majoritariamente, a principal causa de gastrite atrófica, esta pode ser o resultado de qualquer processo crônico grave à mucosa gástrica, como por exemplo, gastrite varioliforme e em doenças autoimunes com acometimento gástrico.

A atrofia gástrica típica caracteriza-se por perda glandular, ausência de regeneração e presença de fibrose, com ou sem metaplasia. Gastrite atrófica é uma lesão irregular e pode não ser vista por falha de amostragem (caso não haja material suficiente, ou este não é coletado de locais múltiplos).

É amplamente aceito que a metaplasia intestinal por si só constitui uma forma de gastrite atrófica, mesmo que a perda glandular não seja tão evidente. Deve-se dar a devida atenção ao interpretar "gastrite atrófica" e "metaplasia intestinal", pois mesmo para alguns especialistas, a perda glandular pode ser subjetiva. Quando há inflamação ativa, células inflamatórias e edema podem "puxar" as glândulas para baixo, dando aparência de atrofia, o que na verdade se constitui em pseudoatrofia.

Estudos realizados no Japão e na Colômbia mostraram que 10% das crianças infectadas por H. pylori apresentavam atrofia gástrica.

Causas de Gastrite

A classificação de gastrite de acordo com a causa subjacente, pode ser útil para se entender a história natural da lesão. No passado classificava-se como erosiva e não erosiva. Atualmente a gastrite deve ser classificada apenas de acordo com sua etiologia (Quadro 2).


Quadro 2- Causas de gastrite e gastropatias.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Gastrites (Parte 2)

Milena R. Macitelli & Ulysses Fagundes Neto


Anatomia da mucosa gástrica 

"Anatomia endoscópica"
 


O corpo gástrico é caracterizado por um pregueado mucoso espesso, que se estende distalmente até a incisura na pequena curvatura. O fundo possui mucosa semelhante a do corpo. O antro representa o final do pregueado mucoso até o piloro.

Apesar de diferentes locais anatômicos corresponderem a diferentes zonas histológicas, existem áreas de transição, ou seja, mucosa de transição, tais como: antro-corpo (na incisura) e região da cárdia.



Figura 4- Anatomia endoscópica do estômago e suas áreas de transição da mucosa.








Figura 5- Visualização endoscópica das diversas áreas anatômicas do estômago.
 
Manifestações clínicas

As manifestações clínicas dos diferentes tipos de gastrite costumam ser muito variáveis e irão depender de uma série de fatores, tais como por exemplo a etiología, a gravidade e a extensão da lesão.

Alguns estudos recentes têm demonstrado a associação de dor abdominal crônica e gastrite por H. pylori. Entretanto, na ausência de ulceração, a gastrite crônica associada a infecção por H. pylori é improvável que seja a causa da dor abdominal recorrente em crianças.

Crianças de menor idade com distúrbios pépticos podem apresentar vômitos, irritabilidade, inapetência e ocasionalmente perda de peso.

Crianças acima dos 10 anos de idade apresentam sintomas mais parecidos aos dos adultos: dor epigástrica, náuseas, vômitos, sensação de plenitude gástrica, anemia e perda de peso.

Sintomas de franca obstrução gástrica são incomuns em crianças.

Gastrites (Parte 1)

Milena R. Macitelli & Ulysses Fagundes Neto


Introdução

Os primeiros trabalhos sobre gastrite foram realizados em material de necrópsia e, posteriormente, em material obtido no ato cirúrgico. O resultado dessas observações foi sempre contestado, em razão do tipo de material analisado.

A contestação deveu-se a dois fatores principais, a saber: 1- o material poderia estar prejudicado pelo fenômeno de autólise; 2- os materiais provinham de pacientes com afecções gástricas de diferentes etiologias.

A partir da década de 1940 com a introdução da biópsia per oral, e depois, pela endoscopia com biópsia dirigida, tornou-se possível a realização de inúmeras pesquisas, cujas conclusões pasaram a ser contestadas ou aceitas com restrição. O principal motivo destas controvérsias residia na falta de correlação entre os achados endoscópicos X achados histopatólogicos X manifestações clínicas. Como não se conheciam os agentes etiológicos e/ou a história natural da doença em questão, os achados da mucosa gástrica eram, de uma maneira geral, considerados como normais ou consequência do processo natural do envelhecimento.

O uso progressivo do termo gastrite e o mistério criado ao seu redor provocaram a descaracterização da doença como entidade nosológica. A utilização abusiva pelos patologistas dos termos: gastrite aguda, gastrite crônica e gastrite superficial, extrapolados para conceitos clínicos geraram interpretações equivocadas quanto ao menor ou maior grau de gravidade e quanto a evolução da doença.

Gastrite, na verdade, faz parte do conjunto das doenças pépticas e é uma patologia de relevância importante por diversos motivos. A doença, juntamente com a úlcera péptica, possui uma elevada morbidade e normalmente é passível de tratamento. Além disto, algumas formas de gastrite crônica e grave podem destruir elementos da mucosa gástrica, resultando em gastrite atrófica e metaplasia intestinal, que podem ser lesões pré-neoplásicas.

Assim como outras doenças na infância, a gastrite pode acarretar, a longo prazo, prejuízos de diferentes intensidades para o paciente. Vale ressaltar que apesar da gastrite e da úlcera péptica serem entidades clínicas estudadas separadamente, muitas vezes fazem parte de uma doença de continuidade.


História

A primeira grande descoberta no campo das doenças gástricas foi a descrição de câncer gástrico pelos persas em 1000 DC. No mesmo período, descrições de doenças gástricas não-neoplásicas, principalmente gastrite, eram subjetivas devido às limitações da época. A inflamação da mucosa gástrica foi nomeada pela primeira vez como "gastrite" pelo médico alemão George Ernst Stahl em 1728.




Secreções gástricas

O estômago secreta inúmeras substâncias que são de fundamental importância para o funcionamento normal do trato digestivo, a saber (Figuras 1 e 2):

  Água
  Ácido
  Bicarbonato
  Eletrólitos: Cl-, Na+ e K+
  Mucinas
  Enzimas que são ativadas no pH ácido (pepsinas e lipase)
  Fator intrínseco das células parietais


Figura 1- Substâncias e hormônios secretados pelo estômago envolvidos na produção de HCl pelas células parietais. CCK- colecistoquinina; CNS- sistema nervoso central.




Figura 2- Autoregulação da secreção ácida. Os alimentos estimulam a liberação da gastrina pelas células G. A gastrina estimula as células enterocromafins a secretarem histamina. A célula parietal contém receptores para gastrina, histamina e acetil-colina, substâncias que estimulam a produção do HCl. O aumento da produção de HCl promove a liberação da somatostatina, que inibe a liberação da gastrina.

 
Definição

Gastrite é uma lesão benigna decorrente da quebra da barreira mucosa, acarretando alterações macro e microscópicas da mucosa gástrica, associadas a uma resposta inflamatória. A mucosa gástrica possui células que produzem ácidos e enzimas (que auxiliam na quebra do alimento e digestão) e muco (que protege a mucosa do ácido). O desequilíbrio entre as forças defensivas e agressivas da barreira mucosa é responsável pela formação das lesões. Quando a mucosa gástrica está inflamada, produz menos ácido, enzimas e muco.


Mecanismos de defesa

O estômago possui uma série de mecanismos de defesa contra as agressões do meio ambiente com a função de proporcionar as condições ideais para a ocorrência dos procesos de digestão e absorção que irão se dar no intestino delgado. Os principais mecanismos de defesa estão a seguir discrimados:

Pré-epiteliais: Elevadas concentrações de glicoproteina da mucosa (muco) e bicarbonato, formam uma camada surfactante (hidrófoba), denominada BARREIRA MUCOSA – a qual fornece proteção contra fatores agressivos na cavidade gástrica (Figura 3).


Figura 3- Microanatomia da mucosa gástrica indicando o gradiente de pH promovido pela barreira mucosa.

Muco: secretado pelas células mucosas superficiais, é uma glicoproteina que recobre a superfície epitelial como um gel espesso, serve como uma camada de água imóvel, que lentifica a difusão retrógrada dos íons de hidrogênio em aproximadamente 4 vezes.

O bicarbonato (íons) secretado pelas células mucosas superficiais, neutraliza os ácidos, mantendo normalmente um gradiente de pH de 1 para 2 no lúmen e de 6 para 7 na superfície epitelial. Este gradiente de valores do pH é extremamente importante porque é o responsável pela atividade péptica. A pepsina é inativada em pH 5 e irreversivelmente inativada em pH 7.

Epiteliais: junções firmes entre as células, trocas iônicas intracelulares e capacidade de regeneração epitelial.

A regeneração da mucosa ocorre com a recuperação de áreas descobertas, pela migração de células mucosas da superfície ao longo da membrana basal, de regiões mais profundas para substituir as células danificadas, logo após a lesão.

A divisão e a regeneração celulares ocorrem depois de alguns dias, para produzir novas células epiteliais a partir de células-tronco.

Pós-epiteliais: fluxo sangüíneo e síntese de prostaglandinas.

O fluxo sangüíneo mucoso distribui oxigênio, nutrientes e bicarbonato e remove o ácido retrodifundido. Se o fluxo sangüíneo for reduzido em mais de 50%, a mucosa se torna mais vulnerável à lesão.

As prostaglandinas produzidas localmente têm um papel importante na defesa pois inibem a secreção ácida, estimulam a secreção de muco e bicarbonato e aumentam o fluxo sangüíneo e a renovação celular.