quinta-feira, 26 de julho de 2012

Colite Alérgica: Manifestações Clínicas, Diagnóstico e Tratamento (2)

Composição do Leite Humano e do Leite produzido por outros Mamíferos


O leite é uma emulsão constituída por 20% de material sólido e 80% de água. Trata-se de uma solução coloidal de glóbulos de gordura (micela) que se encontram no interior de um fluido aquoso (Figura 1). Cada glóbulo de gordura é circundado por uma membrana constituída por fosfolípides e proteínas; estas substâncias, denominadas emulsificantes, mantêm os glóbulos separados individualmente evitando que estes se juntem para formar grânulos sólidos de gordura, e, também agem como protetores dos próprios glóbulos de gordura da ação das enzimas digestivas de gorduras presentes na fração líquida do leite. As vitaminas lipossolúveis A, D, E e K encontram-se presentes no interior da porção gordurosa do leite. É importante assinalar que o leite humano contem uma enzima denominada lipase, a qual quebra a gordura transformando-a em pequenos glóbulos, os quais são mais facilmente digeridos. 
 Figura 1- Representação esquemática da formação da micela, a qual terá capacidade de solubilizar as gorduras da dieta, devido aos seus 2 polos, um hidrofílico e outro hidrofóbico.

As maiores estruturas químicas presentes na porção líquida do leite são formadas por micelas de caseína; estas se constituem em milhares de moléculas de proteínas ligadas entre si com o auxílio de partículas em escala nanométrica de fosfato de cálcio. Estas micelas desempenham importantes papeis, mas, a mais notória é impedir que as mesmas formem agregados sólidos. A camada mais externa das micelas é constituída por um tipo de proteína denominada kappa-caseina, a qual se encontra na porção exterior do corpo da micela no interior do fluido que a circunda. Estas moléculas de kappa-caseina possuem carga elétrica negativa e, portanto, se auto-repelem, fenômeno que mantém as micelas individualmente separadas, evitando assim que, em condições normais, sejam formados grumos sólidos, preservando-as em uma suspensão coloidal estável no fluido em que estão imersas.
O leite contem ainda uma grande série de outras proteínas além da caseína, as quais são mais solúveis em água e não formam grandes estruturas químicas. Como estas proteínas permanecem suspensas no soro do leite quando a caseína forma coágulos, elas passaram a ser denominadas em conjunto de proteínas do soro.
Tanto os glóbulos de gordura quanto as pequenas micelas de caseína, as quais têm tamanho suficiente para defletir a luz, contribuem para a coloração branca do leite.

O carboidrato do leite, a lactose, confere ele um sabor levemente adocicado. A lactose é um dissacarídeo constituído pelos seguintes monossacarídeos: glicose e galactose (Figura 2). Na natureza a lactose é praticamente encontrada apenas no leite, porém, é também encontrada em baixíssimas concentrações em algumas plantas.

Figura 2- Representação esquemática da fórmula da Lactose e do produto da sua hidrólise pela Lactase: os monossacarídeos Glicose e Galactose.
O leite humano contem 1,1g% de proteínas, 4,2g% de gorduras, 7,0g% de carboidratos e 0,2g% de minerais oferecendo 72 kcal/100ml (Tabela 1). O principal carboidrato do leite humano é a lactose, porém vários outros oligossacarídeos semelhantes à lactose foram identificados em pequenas concentrações. A fração de gordura contem triglicerídeos específicos, tais como ácidos oléico e palmítico, assim como significativas quantidades de lipídeos com ligações trans, os quais são benéficos à saúde. Dentre eles destacam-se os ácidos vacênico e linoléico, os quais correspondem a cerca de 6% da gordura total. As principais proteínas são a beta-caseina, alfa-lactoalbumina, lactoferrina, IgA secretora, lisosimas e a soro-albumina. Compostos nitrogenados não protéicos que incluem uréia, ácido úrico, creatina, creatinina, amino-ácidos e nucleotídeos correspondem a aproximadamente 25% do conteúdo de nitrogênio. Foi demonstrado também que o leite humano fornece uma substância que é um neuro-transmissor (endocannabinoide) com ação tranqüilizante.



Tabela 1- Composição do Leite Humano
GORDURA
Total (g/100ml)
4,2
Ácidos Graxos até 8 C (%)
traços
Ácidos Graxos Poliinsaturados (%)
14
PROTEINAS (g/100ml)
Total
1,1
Caseína
0,3
Alfa-Lactoalbumina
0,3
Lactoferrina
0,2
Ig A
0,1
Ig G
0,001
Lisozima
0,05
Soro-Albumina
0,05
CARBOIDRATOS (g/100ml)
Lactose
7
Oligossacarídeos
0,5
MINERAIS (g/100ml)
Cálcio
0,03
Fósforo
0,014
Sódio
0,015
Potássio
0,055
Cloro
0,043


O leite de vaca contém cerca de 4 gramas de proteína por 100 mL (Tabela 2) enquanto que o leite humano contém cerca de 1,1 gramas de proteína por 100 mL. Entretanto, as diferenças entre estes 2 tipos de leite não residem apenas nas concentrações das frações protéicas, posto que, no leite de vaca a proporção Caseína:Soroalbumina é de 80:20, enquanto que no leite humano esta proporção é de 40:60, uma vantagem inequívoca para o leite humano pela maior facilidade de sua digestão, visto que a Caseína (Peso Molecular entre 11.000 e 24.000 daltons) é a porção protéica não solúvel presente no leite. Além disso, dentre as proteínas da fração solúvel do leite de vaca estão presentes aquelas que potencialmente são as mais alergênicas, a saber: beta-lactoglobulina (maior fração do soro lácteo bovino e de maior capacidade antigênica, Peso Molecular de 20.000 daltons), alfa-lactoalbumina (Peso Molecular 14.000 daltons), soroalbumina bovina (Peso Molecular 69.000 daltons) além da própria caseína. O leite humano, por sua vez, não contém beta-lactoglobulina (17).
Tabela 2- Composição do Leite de Alguns Mamíferos por 100 gramas
Constituintes
Unidade
Vaca
Cabra
Ovelha
Búfala
Água
gramas
87,8
88,9
83,0
81,1
Proteína
gramas
4,0
3,1
5,4
4,5
Gordura
gramas
3,9
3,5
6,0
8,0
Carboidratos
gramas
4,8
4,4
5,1
4,9
Calorias
kcal
66
60
95
110
Cálcio
UI
120
100
170
195
Colesterol
mg
14
10
11
8
Ácidos Graxos
Saturados
gramas
2,4
2,3
3,8
4,2
Mono-insaturados
gramas
1,1
0,8
1,5
1,7
Poli-insaturados
gramas
0,1
0,1
0,3
0,2
  
Alergenos Alimentares


Os alergenos alimentares são, em geral, proteínas pequenas com Peso Molecular entre 10.000 e 40.000 daltons (unidade de medida do peso das moléculas protéicas). Podem ser glico-proteínas ou proteínas ácido-resistentes, portanto, resistem à ação do ácido clorídrico gástrico, à desnaturação térmica e enzimática. Além disso, sua arquitetura molecular pode também conferir estabilidade antigênica in vivo (18).
Leite de vaca, fórmulas lácteas infantis, e as fórmulas de soja são as fontes de proteínas mais frequentemente envolvidas na etiologia da Colite Alérgica, porém outros alimentos também podem desencadeá-la, tais como: leites de outros mamíferos (jumenta, égua e cabra), trigo, ovos, milho, peixe, frutos do mar, nozes e amêndoas, amendoim, carne de frango etc. Além disso, quaisquer outros alimentos que tenham alguma fração protéica em sua composição, podem, potencialmente, provocar alergia (19).
Quanto ao leite humano é de fundamental importância ressaltar que como se trata de um produto da secreção da glândula mamária da mulher, ele é espécie-específico (foi especialmente desenhado para não causar qualquer problema ao lactente), portanto, não apresenta qualquer componente potencialmente alergênico. Entretanto, substâncias protéicas, potencialmente alergênicas, ingeridas pela mulher que esteja no período de amamentação podem ser transferidas ao lactente, e, em caso do mesmo ser susceptível de alergia, vir a apresentar sintomas de AA. Como o leite humano possui inúmeros fatores de proteção da mucosa intestinal, as manifestações clínicas de alergia costumam ser mais atenuadas do que naqueles lactentes que recebem aleitamento artificial, por meio de fórmulas lácteas ou de soja, o que pode se tornar um fator de maior dificuldade diagnóstica. 

Mecanismos das Reações Alérgicas

As reações de hipersensibilidade podem ser tanto mediadas pela imunoglobulina E (IgE), como, por exemplo, naqueles casos que apresentam manifestação imediata a alimentos com surgimento de urticária (Figura 3) e/ou choque anafilático, quanto as não mediadas pela IgE, as quais se caracterizam por apresentar manifestações tardias mediadas por linfócitos T (Hipersensibilidade retardada tipo IV), ou ainda com a formação de imunecomplexos causando vasculite (reação de Arthus, Hipersensibilidadae tipo III, reação de antígeno-anticorpo com excesso de antígeno, formação de imunecomplexos que se depositam nos vasos sanguíneos causando vasculite), como é o caso da Colite Alérgica (Figura 4).

Figura 3- Urticária gigante com formação de pápulas característica de reação mediada por IgE (hipersensibilidade imediata).

Figura 4- Lesão perianal (proctite) com formação de plicoma e fístula reto-perineal em paciente com Colite Alérgica (reação imunológica de hipersensibilidade tipo III).

Colite Alérgica é um tipo de alergia que pertence ao grupo de hipersensibilidade alimentar não mediada por IgE também denominada protocolite induzida por alimentos. O mecanismo fisiopatológico ainda não foi totalmente identificado, porém, sabe-se que envolve a presença de linfócitos CD8, bem como linfócitos do tipo TH-2 e infiltrado eosinofílico em todas as camadas da mucosa colônica. Além disso, a presença de células de memória circulantes reveladas por testes positivos de transformação linfocítica sugere o envolvimento de células T na patogênese desta entidade, associada à secreção de fator de necrose tumoral α pelos linfócitos ativados. Levando-se em consideração que o mecanismo imunológico envolvido na gênese da Colite Alérgica não é mediado pela IgE, os testes de rastreamento diagnóstico para Alergia, tanto cutâneos quanto sorológicos, que são disponíveis para investigar potencial alergia provocada pelo mecanismo de hipersensibilidade imediata, não se aplicam ao diagnóstico de Colite Alérgica.


Referências Bibliográficas
17. Isolauri, E. e cols., J Pediatr 1999; 134: 27-32.

18. Kusunoki, T. e cols., Pediatr Allergy Immunol 2010; 21: 60-6.

19. Roberts, G. e cols., Clin Exp. Allergy 2005: 35: 933-40.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Colite Alérgica: Manifestações Clínicas, Diagnóstico e Tratamento (1)

Introdução

Alergia Alimentar (AA) afeta entre 7 a 8% da população pediátrica, e, Alergia à Proteína do Leite de Vaca (APLV) é a manifestação mais comum, presente em cerca de 2 a 3% das crianças; sangramento retal é uma queixa bastante freqüente nos lactentes de tenra idade, especialmente dentro dos 3 primeiros meses de vida (1). Diarréia, vômitos, ganho ponderal insuficiente, irritabilidade intensa, em particular durante o momento da amamentação são os sintomas associados ao sangramento retal (2). Muitas vezes como primeira opção para substituir a fórmula láctea é prescrita fórmula de soja, porém, infelizmente as fórmulas de soja também possuem fortes propriedades alergênicas tanto in vitro quanto in vivo, posto que entre 30 a 50% dos pacientes com APLV apresentam uma reação cruzada com a proteína da soja. Ou seja, verifica-se que já mesmo no primeiro contato com a proteína da soja persistem os sintomas iniciais da alergia. Por outro lado, em alguns casos, ocorre uma remissão completa da sintomatologia, a qual dura de 2 a 7 dias, quando de novo as manifestações clínicas reaparecem. Este período de tempo é o intervalo necessário para que haja a respectiva sensibilização pela nova proteína da dieta e o ressurgimento dos sintomas (3). Alguns autores afirmam que alergia às proteínas da soja pode ocorrer em até 66% dos pacientes com quadro clínico de Colite Alérgica às proteínas do leite de vaca (4).
Vale enfatizar que lactentes em aleitamento natural exclusivo também podem apresentar sintomas similares porque o leite de vaca e outras proteínas da dieta podem estar presentes na composição do leite materno (5). A realização de retoscopia com a obtenção de fragmentos retais para análise histopatológica são extremamente úteis para o estabelecimento do diagnóstico da colite induzida por AA (6). Vale lembrar que Colite é um termo genérico empregado para designar processos inflamatórios, que podem representar diferentes etiologias, que afetam o intestino grosso provocando lesões microscópicas características, porém muitas vezes inespecíficas, associadas ou não a alterações macroscópicas. Sua manifestação clinica mais evidente é a ocorrência de cólicas juntamente com sangramento vivo nas fezes, geralmente sob a forma de diarréia sanguinolenta, porém em algumas ocasiões o sangramento pode, também, ser oculto (portanto, não visível a olho nu). Entretanto, além de outras possíveis alterações morfológicas observadas na mucosa retal, a presença de infiltrado eosinofílico, sugere fortemente a suspeita diagnóstica de Colite Alérgica (7). O desaparecimento dos sinais e sintomas em concomitância com a retirada do suposto alergeno ou alergenos da dieta e a restituição integral da morfologia da mucosa retal, preenche de forma completa os critérios para o diagnóstico definitivo de Colite Alérgica

Classificação das Colites

Colite, na infância, abrange um grupo heterogêneo de etiologias, a saber: 1- AA; 2- Infecção Bacteriana (Salmonella, Shigella, Escherichia coli enteroinvasora, Escherichia coli entero-hemorrágica); 3- Infecção Parasitária (Entamoeba histolytica {amebíase}); 4- Doença Inflamatória Intestinal (Doença de Crohn, Colite Ulcerativa, Colite Indeterminada); 5- Colite Auto-imune (8).
Colite Alérgica é uma entidade clínica caracterizada por alterações inflamatórias microscópicas e/ou macroscópicas no cólon e reto como consequência de reações imunológicas devido à ingestão de proteínas estranhas, que são denominadas para efeito clínico de alergenos. Deve-se sempre ter como conceito fundamental que Alergia se desenvolve a partir de uma reação imunológica e que diz respeito ao envolvimento de alguma proteína, e, no caso de AA, este componente protéico está presente na dieta da criança. Vale ressaltar que Colite Alérgica é uma enfermidade que afeta essencialmente o lactente no seu primeiro ano de vida, mais preferentemente nos primeiros 6 meses de idade, muito embora excepcionalmente haja relatos de casos em crianças maiores. Trata-se de uma enfermidade de caráter temporário com resolução espontânea ao final do primeiro ou segundo anos de vida (9).


Colite Alérgica representa cerca de 20% dos casos de AA, mas tudo indica que este percentual vem aumentando de forma considerável. Na nossa experiência pessoal (10) ao analisarmos 55 lactentes com idade média de 3,9 meses, durante um período de 5 anos, os quais apresentavam APLV e da soja, 20% deles revelaram ser portadores de Colite Alérgica. Portanto, APLV constitui-se na principal causa de sangramento retal nos lactentes. Muito embora colite por infecção bacteriana ou protozoária possa provocar sangramento retal trata-se de uma etiologia rara neste período da vida em condições ambientais higiênicas apropriadas. Fissura anal é também frequentemente causa de sangramento retal, porém a característica do sangramento nesta condição clínica difere totalmente da colite. O sangramento característico da fissura anal é um fio de linha de sangue rutilante que recobre as fezes, posto que a fissura é uma lesão anal praticamente externa, enquanto que no sangramento devido à colite o sangue é visto misturado às fezes (Figura 1).


 Figura 1- Paciente portador de Colite Alérgica apresentando sangue vivo misturado às fezes diarréicas. 

Colite Ulcerativa e Doença de Crohn podem ocorrer em períodos precoces da vida, mas este é um tipo extremamente raro de apresentação.

Histórico

 Desde o surgimento do ser humano no nosso universo, constituindo-se nas mais diversas sociedades, a totalidade das crianças era amamentada ao seio materno, de forma exclusiva e prolongada. Ainda nos dias atuais, naquelas poucas sociedades restantes chamadas de "cultura primitiva", como, por exemplo, algumas nações indígenas existentes em nosso país (Figuras 2- 3- 4 e 5), as quais ainda vivem em condições muito semelhantes a aquelas encontradas pelos descobridores portugueses, a prática da amamentação exclusiva e por tempo prolongado é universal.

Figura 2- Parque Indígena do Xingu: Índios de uma aldeia do Alto Xingu anunciando uma festa comunitária.

Figura 3- Parque Indígena do Xingu: Mãe e filho no primeiro banho da manhã no rio Xingu.


Figura 4- Parque Indígena do Xingu; criança índia em aleitamento natural, prática universal nesta sociedade.

Figura 5- Minha primeira experiência de trabalho no Parque Indígena do Xingu em dezembro de 1970.

Entretanto, devido as enormes transformações sócio-político-econômicas e culturais ocorridas como consequência do desenvolvimento tecnológico industrial nas sociedades denominadas "civilizadas" ou "modernas", aonde as mulheres cada vez mais passaram a competir pela ocupação de espaço dentro do mercado de trabalho, associadas ao crescimento e consolidação das indústrias produtoras de alimentos infantis, a partir do início do século 20, contribuíram decisivamente para o declínio da prática do aleitamento natural. Diferentes tipos de leite de outros mamíferos, mais frequentemente o leite de vaca, inicialmente in natura, e, posteriormente, sob a forma de fórmulas lácteas processadas com a intenção de se aproximar ao máximo da composição do leite humano, encontram-se, já há muitos anos, amplamente disponíveis no mercado. Concomitantemente a essa modificação do comportamento das sociedades "modernas" passou-se também a conviver com um novo fenômeno, como efeito colateral, ou seja, o surgimento cada vez mais frequente da AA, especialmente APLV e suas mais variadas formas de manifestação clínica. Por outro lado, na busca de se encontrar substitutos do leite de vaca para o tratamento dos casos de Alergia, passaram a ser desenvolvidas fórmulas a partir da proteína vegetal da soja, introduzidas já desde 1929, as quais pretensamente se imaginava, não teriam capacidade alergênica, mas que a experiência prática demonstrou ser exatamente o contrário (11).
Rubin (12), nos EUA, em 1940, publicou suas observações sobre 4 pacientes, com idades compreendidas entre 4 e 7 semanas, que foram alimentados com leite de vaca, os quais apresentaram diarréia sanguinolenta e cólicas intensas, denominando-as como portadoras da "Síndrome do Sangramento Intestinal devido a APLV". Mortimer (13), nos EUA, em 1959, por sua vez descreveu o caso de um lactente de 3 meses, que se encontrava em aleitamento misto, possuía história de alergia familiar fortemente positiva, e que desenvolveu quadro clínico de eczema e asma. Foi tratado com fórmula de soja em substituição à fórmula láctea durante 2 meses, período no qual apresentou vômitos frequentes e reinício das crises asmáticas, manifestações estas que desapareceram com a introdução de uma fórmula à base de hidrolisado protéico. Halpin e cols. (14), nos EUA, em 1977, documentaram a primeira descrição de Colite Alérgica em 4 lactentes com idades entre 2 e 4 meses, os quais apresentavam diarréia sanguinolenta, perda de peso e vômitos com o emprego de fórmula de soja com diagnóstico prévio de APLV. Nos 4 pacientes foi realizado desencadeamento com fórmula de soja e os sintomas reapareceram, sendo que anteriormente os sintomas haviam regredido com o uso de uma fórmula à base de hidrolisado protéico extensivamente hidrolisado.
Lake e cols. (15), nos EUA, em 1982, descreveram 6 lactentes amamentados exclusivamente com leite materno que apresentaram diarréia sanguinolenta no primeiro mês de vida, tendo sido descartadas causas infecciosas. Foi constatado, nesta ocasião, que proteínas estranhas, potencialmente alergênicas, podem ser veiculadas pelo leite materno, e que os sintomas regridem quando o suposto alergeno é retirado da dieta da mãe. Além disso, Sherman e Cox (16), nos EUA, em 1982, levantaram a possibilidade de sensibilização intra-útero às proteínas do leite de vaca, ao descrever o caso de um recém-nascido que apresentou diarréia sanguinolenta algumas horas após o nascimento ao receber leite de vaca a partir de 8 horas de vida. As manifestações clínicas persistiram ao se introduzir fórmula de soja, e somente regrediram com o uso de fórmula à base de hidrolisado protéico extensivamente hidrolisado.

Referências Bibliográficas

1. Schwartz, R. H. e cols., J Pediatr 1991; 119: 839.

2. Isolauri, E. e cols., J Pediatr 1995; 127: 550-7.

3. Fagundes-Neto, U. e cols., Rev Paul Med 1987; 105: 166-71.

4. Hill, D. J. e cols., J Pediatr 1999; 135: 188-21.

5. Hide, D.W. e cols., Arch Dis Child 1981: 56: 172-5.

6. Kelso, J. M. e cols., J Allergy Clin Immunol 1993; 92: 909-10.


7. Vanderhoof, J. A. e cols., J Pediatr 1997; 131: 741-4.


8. Kim, S.C e cols., Gastroenterology 2004; 126:1550-60.


9. Baker, S. e cols., Pediatrics 2000; 106: 346-49.


10. Fagundes-Neto, U. e cols., Rev Paul Med 1987; 105: 166-71. 


11. Hill, D. J. e cols., J Pediatr 1986; 109: 270-76. 


12. Powell, G. K. e cols., J Pediatr 1978; 93: 553-60.


13. Schrander, J. J. P. e cols., Eur J Pediatr 1993; 152: 640-4.


14. Zeiger, R. S. e cols., J Pediatr 1999; 134: 614-22.


15. Lake, A. M. e cols., J Pediatr 1982; 101: 906-10.


16. Sherman, M. P. e cols., J Pediatr 1982; 100: 587-9.


sexta-feira, 6 de julho de 2012

O Feliz Renascimento do Aleitamento Materno: além do fator nutricional e da proteção constitui-se também numa real declaração de amor (2)




O Sucesso da Implantação de um Programa de Incentivo à Prática do aleitamento Natural Exclusivo por Tempo Prolongado em uma Comunidade de Baixa Renda

Diante do indiscutível reconhecimento do real valor da amamentação como fator de grande benefício à saúde materno-infantil, a OMS e o UNICEF convocaram, em 1974, a 27ª Assembléia Mundial Sobre Alimentação Infantil, em um momento que se constatava a ocorrência de um nítido e perigoso declínio da prática do aleitamento natural em inúmeras regiões do mundo. Nesta ocasião, diante do preocupante quadro de agravo do estado nutricional de parcelas altamente significativas de crianças de tenra idade afetadas pelo binômio diarréia-desnutrição, em inúmeros países do globo terrestre, mais particularmente naquelas camadas sócio-econômicas desfavorecidas, foram propostas medidas para resgatar a prática do aleitamento natural.

Após extensa e maciça promoção realizada por órgãos governamentais e grupos voluntários, passou-se a observar uma gradual, porém efetiva e exitosa tendência de retorno à prática do aleitamento natural em algumas partes do mundo. Por exemplo, na antiga Iugoslávia ocorreu uma alteração na licença maternidade, a qual foi ampliada até o sexto mês para as nutrizes que se encontravam amamentando. Na Suíça, por outro lado, passou-se a oferecer um abono suplementar às mulheres que amamentam durante 10 semanas. Na Suécia, Chile, Nigéria e Filipinas, por exemplo, as instituições governamentais passaram a desenvolver uma política nacional de promoção à prática do aleitamento natural, inclusive patrocinando uma série de eventos denominados “Dias da Amamentação”, durante os quais são organizadas atividades educativas voltadas ao incentivo do aleitamento natural. Como é sabido, no Brasil também ocorreu o mesmo fenômeno, porém, não de forma sustentável, apenas se consolidando a licença maternidade por um período de 4 meses.

No nosso país e em outros países com características semelhantes de estrutura de desenvolvimento sócio-econômico, um contingente significativo da população de baixa renda é empurrado para uma vida marginal e passa a viver nas favelas, as quais geralmente estão localizadas nas periferias dos centros urbanos, convivendo assim com um meio ambiente com altas taxas de contaminação devido à ausência de saneamento básico. Desta forma, estes indivíduos, por habitar em condições altamente desfavoráveis e insalubres, tornam-se alvo altamente vulneráveis de uma infinidade de agressões impostas pelo meio ambiente totalmente degradado. As crianças, em particular, que aí são criadas representam a parcela da população que sofre os maiores riscos de contrair doenças que contribuem decididamente para o aumento das taxas de morbidade e mortalidade infantis.

Esta assertiva foi por mim confirmada de forma inequívoca durante o período em que um grupo multiprofissional da saúde constituído por estudantes de pós-graduação da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina que sob minha coordenação, a partir do início da década de 1980, passou a oferecer assistência na favela Cidade Leonor, localizada à época às margens do córrego da Água Espraiada na região próxima ao aeroporto de Congonhas (Figuras 1 - 2 e 3). 


Figura 1- Moradores da Favela Cidade Leonor que se incorporaram como membros da equipe de trabalho (da esquerda para a direita): Tuta, Magnólia e Henrique juntos com algumas crianças da comunidade.
Figura 2- Tuta em plena atividade obtendo os dados antropométricos de uma criança da comunidade.
Figura 3- A auxiliar de enfermagem sra. Magnólia e eu revendo as pastas dos arquivos dos nossos pacientes.


A favela Cidade Leonor existe há cerca de 60 anos e cresceu gradualmente estendendo-se na ocasião por aproximadamente 3 km, em um fundo de vale, acompanhando o curso do córrego da Água Espraiada aonde numerosos conglomerados de barracos foram erguidos misturando-se em alguns trechos com áreas residenciais urbanizadas (Figuras  4 e 5). 

Figura 4- Vista aérea da Favela Cidade Leonor e também da pista do aeroporto de Congonhas (Foto de Armando Leal).

Figura 5- Vista aérea da Favela Cidade Leonor (Foto de Armando Leal).

Água encanada era disponível para 88,5% dos barracos, mas nenhum deles dispunha de rede de esgoto, sendo que os dejetos eram drenados diretamente para o córrego, o qual se transformou em uma verdadeira cloaca a céu aberto (Figuras  6 e 7).

Figura 6- Vista do córrego da Água Espraiada e os barracos erigidos ás suas margens. Uma verdadeira fossa negra a céu aberto.

Figura 7- Vista do córrego da Água Espraiada sendo utilizado como fonte de diversão das crianças desta comunidade.

O córrego da Água Espraiada nasce na região de Diadema e após um percurso de aproximadamente 15 km deságua no rio Pinheiros próximo à ponte do Morumbi (há alguns anos o córrego foi canalizado e sobre ele atualmente passa a av. Roberto Marinho). Naquela época, como ação preliminar para iniciarmos nosso trabalho assistencial, realizamos o censo populacional da comunidade que passaríamos a atender e constatamos que havia 1535 crianças menores de 10 anos sendo que 324 eram menores de 2 anos. Passo seguinte foi realizar a avaliação do estado nutricional de uma amostra da população infantil. Foram avaliadas 520 crianças tendo sido constatado que 53% delas apresentavam algum grau de desnutrição, e o que era mais grave, dentre estas desnutrição crônica constituía-se no principal problema de agravo nutricional desta população infantil. Durante um período 28 semanas foi estimulado o comparecimento de toda a população infantil compreendida na faixa etária de 0 a 120 dias ao Posto Médico para seguimento pondero-estatural durante o primeiro ano de vida e também para registrar as intercorrências clínicas em consultas mensais de rotina. Foram recrutadas inicialmente 61 crianças e neste grupo ficou constatado que apenas 18 (29,5%) crianças estavam sendo amamentadas quando da primeira consulta, 13 (72,2%) delas eram menores de 1 mês, e a duração do aleitamento natural exclusivo aos 45 dias de vida incluía somente 49% dos lactentes, portanto, mais da metade deste grupo de crianças já havia sido desmamada em idade ainda de grande vulnerabilidade sob risco de contrair doenças que levam ao ciclo vicioso diarréia-desnutrição. Portanto, as crianças desta comunidade muito precocemente deixavam de receber o aleitamento natural exclusivo, o qual representa um grande papel protetor contra as agressões do meio ambiente, em especial contra infecções em geral, e mais especificamente contra as infecções bacterianas gastrointestinais.

Na tentativa de se implementar ações paliativas considerando a alta vulnerabilidade dos lactentes pertencentes às famílias que habitam estas comunidades marginais às infecções em geral, a baixa prevalência da prática do aleitamento natural nesta população, e o potencial papel protetor exercido pelo aleitamento natural elaboramos um projeto de promoção à prática do aleitamento natural por tempo prolongado tendo em vista os seguintes objetivos:

1- Analisar comparativamente o ganho pondero-estatural entre os lactentes que receberam aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado e aqueles que receberam aleitamento artificial;

2- Determinar e comparar a freqüência dos processos mórbidos durante o primeiro ano de vida entre os lactentes que receberam aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado e aqueles que receberam aleitamento artificial.

Seleção da Amostra

A amostra selecionada constituiu-se por gestantes de baixo nível sócio-econômico residentes na favela Cidade Leonor (Figuras 8 e 9) e matriculadas no Centro Assistencial Cruz de Malta (Figuras 10 e 11), as quais se encontravam no final do primeiro trimestre de gestação. 

Figura 8- Visão do nosso primeiro local de atendimento no interior da Favela Cidade Leonor.

Figura 9- Sra. Cecília Aflalo, membro da equipe de trabalho, ensinando a realização da técnica de tapotagem.

Figura 10- Moradoras da Favela Cidade Leonor incluídas no programa aguardando atendimento no salão de espera da Cruz de Malta.

Figura 11- Crianças  moradoras da Favela Cidade Leonor atendidas na creche Cruz de Malta.

No transcorrer da pesquisa, estas gestantes tornaram-se nutrizes e continuaram a ser acompanhadas juntamente com seus filhos, desde o nascimento até o final do primeiro ano de vida.

Considerou-se como indicador de baixo nível sócio-econômico renda familiar inferior ou igual a 2 salários mínimos. Quanto à idade as gestantes deveriam estar compreendidas entre 16 e 35 anos, e no que diz respeito à paridade deveriam apresentar passado obstétrico variando de nulíparas e não-nulíparas com até 4 paridades. Foram também selecionadas as gestantes que não apresentavam patologias obstétricas que pudessem impedir a amamentação ou ocasionar o nascimento de crianças com baixo peso.

Com relação às crianças foram incluídas aquelas que preenchessem as seguintes condições:

1- Crianças nascidas a termo com idade gestacional entre 38 e 42 semanas;

2- Crianças com peso de nascimento superior a 2.500 gramas e adequado para a idade gestacional;

3- Crianças que não apresentaram intercorrências patológicas ao nascimento.

Desenho do Estudo

Quando as gestantes matriculadas no serviço de orientação pré-natal atingiam o final do primeiro trimestre de gestação eram encaminhadas ao serviço de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição sob a responsabilidade da Dra. Fátima Lindoso e minha orientação (tratava-se do projeto de tese de Doutorado da referida doutora a qual quando elaborada e apresentada ao programa de Pós-Graduação de Pediatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, em 1993, foi aprovada com nota 10,0) para serem submetidas a uma entrevista e possível inclusão no programa (Figura 12).

Figura 12- Dra. Fátima Lindoso em atendimento de Puericultura de uma das crianças do programa.

Foram entrevistadas 100 gestantes, dentre elas, 70 preencheram os critérios para inclusão na pesquisa e aceitaram participar do projeto. Durante a entrevista explicavam-se, a cada potencial participante, os objetivos do trabalho, e, firmava-se verbalmente, entre entrevistada e entrevistadora, um compromisso de acompanhamento contínuo de ambas as partes até que seu filho completasse o primeiro ano de vida.

Após a inclusão no estudo, cada gestante foi submetida a um questionário detalhado a respeito dos seus dados pessoais. Todas as gestantes tiveram seus endereços confirmados, por meio de uma visita domiciliar realizada pela enfermeira que trabalhava junto à nossa equipe.

Plano de Apoio e Incentivo à Prática do Aleitamento Materno

Para estimular a prática do aleitamento natural foi elaborado um plano de apoio que inicialmente foi dirigido às gestantes e posteriormente às nutrizes. Este plano constituiu-se basicamente no estabelecimento de uma profunda relação pessoal entre os membros da equipe de trabalho e as participantes da pesquisa, e constava de discussões em grupo, orientação individual, demonstração prática do aleitamento, desmistificação dos inúmeros tabus existentes contra a eficácia do leite materno para o bom desenvolvimento da criança etc. Os temas abordados nesse período versavam sobre as modificações ocorridas no corpo da futura mãe em decorrência da gravidez, a função da glândula mamária, o aleitamento materno e sua importância para a saúde do binômio mãe-filho, mitos e desmame, causas e conseqüências e também técnicas de amamentação.

Após o período inicial do relacionamento individual, passou-se à etapa de orientação coletiva e ao término de cada palestra eram abertas discussões entre as gestantes com o intuito de promover a troca de experiências pessoais.

Com o nascimento das crianças e mesmo durante o transcorrer do crescimento e desenvolvimento das mesmas, ampliaram-se os assuntos a serem debatidos, os quais passaram a enfocar os seguintes temas: técnicas de amamentação e como evitar o desmame, adequação do aleitamento materno às necessidades da criança, época adequada para a introdução dos alimentos do desmame e tipos de alimentos que deveriam ser empregados, programa de vacinação, alimentação durante o primeiro ano de vida etc.   

Acompanhamento das Gestantes

O acompanhamento das gestantes se deu por meio de consultas quinzenais durante toda a gestação e consistiu de 3 etapas seqüenciais, a saber:
1- Mensuração quinzenal do peso;
2- Orientação para os cuidados primários à saúde materno-infantil;
3- Distribuição de produtos para suplementação alimentar.

Formação do Binômio Mãe-Filho

Após o nascimento da criança foram propostas as seguintes etapas de acompanhamento do binômio mãe-filho, como se segue:

1- Primeira consulta aproximadamente no 15º dia após o nascimento;

2- Entrevista para inclusão do filho no estudo;

3- Acompanhamento prospectivo quinzenal mãe-filho;

4- Preenchimento de protocolo específico do filho com os dados pessoais pertinentes.

Seguimento Clínico e Antropométrico dos Lactentes

Para a realização do seguimento clínico dos lactentes foi elaborada uma ficha individual com os seguintes conteúdos: identificação social, questionário de seguimento longitudinal durante o primeiro ano de vida, dados antropométricos, registro dos hábitos alimentares (prática de aleitamento natural, época de introdução dos alimentos do desmame, tipos e formas), avaliação clínica na puericultura e durante as intercorrências mórbidas.
  
Resultados

Características sócio-econômicas-educacionais dos pais

Do grupo inicial das 70 gestantes elegíveis para o estudo foi possível realizar o acompanhamento até o final do primeiro ano dos seus filhos em 48 delas. As idades das mães variaram de 17 a 35 anos, com média de 29,9+/-5,7 anos, e com relação aos pais as idades variaram de 19 a 54 anos, média de 29,5+/-6,5 anos.

Quanto à paridade, 11 (22,9%) eram primíparas, 9 (18,8%) secundíparas e 28 (58,3%) apresentavam 3 ou 4 paridades. Com relação ao tipo de parto, 28 (58,3%) tiveram parto vaginal e 20 (41,7%) sofreram parto cesariana.

Com relação ao grau de instrução das mães, 4 (8,3%) eram analfabetas, 44 (1,7%) haviam recebido educação formal durante período de tempo variável (não superior ao ensino fundamental) e 14 (29,2%) exerciam atividade profissional extra-domiciliar. Quanto aos pais, 2 (4,2%) eram analfabetos, e 46 (95,8%) haviam recebido algum grau de educação formal (apenas 4 deles haviam completado o ensino médio); todos eles exerciam algum tipo de atividade profissional.