sexta-feira, 6 de julho de 2012

O Feliz Renascimento do Aleitamento Materno: além do fator nutricional e da proteção constitui-se também numa real declaração de amor (2)




O Sucesso da Implantação de um Programa de Incentivo à Prática do aleitamento Natural Exclusivo por Tempo Prolongado em uma Comunidade de Baixa Renda

Diante do indiscutível reconhecimento do real valor da amamentação como fator de grande benefício à saúde materno-infantil, a OMS e o UNICEF convocaram, em 1974, a 27ª Assembléia Mundial Sobre Alimentação Infantil, em um momento que se constatava a ocorrência de um nítido e perigoso declínio da prática do aleitamento natural em inúmeras regiões do mundo. Nesta ocasião, diante do preocupante quadro de agravo do estado nutricional de parcelas altamente significativas de crianças de tenra idade afetadas pelo binômio diarréia-desnutrição, em inúmeros países do globo terrestre, mais particularmente naquelas camadas sócio-econômicas desfavorecidas, foram propostas medidas para resgatar a prática do aleitamento natural.

Após extensa e maciça promoção realizada por órgãos governamentais e grupos voluntários, passou-se a observar uma gradual, porém efetiva e exitosa tendência de retorno à prática do aleitamento natural em algumas partes do mundo. Por exemplo, na antiga Iugoslávia ocorreu uma alteração na licença maternidade, a qual foi ampliada até o sexto mês para as nutrizes que se encontravam amamentando. Na Suíça, por outro lado, passou-se a oferecer um abono suplementar às mulheres que amamentam durante 10 semanas. Na Suécia, Chile, Nigéria e Filipinas, por exemplo, as instituições governamentais passaram a desenvolver uma política nacional de promoção à prática do aleitamento natural, inclusive patrocinando uma série de eventos denominados “Dias da Amamentação”, durante os quais são organizadas atividades educativas voltadas ao incentivo do aleitamento natural. Como é sabido, no Brasil também ocorreu o mesmo fenômeno, porém, não de forma sustentável, apenas se consolidando a licença maternidade por um período de 4 meses.

No nosso país e em outros países com características semelhantes de estrutura de desenvolvimento sócio-econômico, um contingente significativo da população de baixa renda é empurrado para uma vida marginal e passa a viver nas favelas, as quais geralmente estão localizadas nas periferias dos centros urbanos, convivendo assim com um meio ambiente com altas taxas de contaminação devido à ausência de saneamento básico. Desta forma, estes indivíduos, por habitar em condições altamente desfavoráveis e insalubres, tornam-se alvo altamente vulneráveis de uma infinidade de agressões impostas pelo meio ambiente totalmente degradado. As crianças, em particular, que aí são criadas representam a parcela da população que sofre os maiores riscos de contrair doenças que contribuem decididamente para o aumento das taxas de morbidade e mortalidade infantis.

Esta assertiva foi por mim confirmada de forma inequívoca durante o período em que um grupo multiprofissional da saúde constituído por estudantes de pós-graduação da Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica da Escola Paulista de Medicina que sob minha coordenação, a partir do início da década de 1980, passou a oferecer assistência na favela Cidade Leonor, localizada à época às margens do córrego da Água Espraiada na região próxima ao aeroporto de Congonhas (Figuras 1 - 2 e 3). 


Figura 1- Moradores da Favela Cidade Leonor que se incorporaram como membros da equipe de trabalho (da esquerda para a direita): Tuta, Magnólia e Henrique juntos com algumas crianças da comunidade.
Figura 2- Tuta em plena atividade obtendo os dados antropométricos de uma criança da comunidade.
Figura 3- A auxiliar de enfermagem sra. Magnólia e eu revendo as pastas dos arquivos dos nossos pacientes.


A favela Cidade Leonor existe há cerca de 60 anos e cresceu gradualmente estendendo-se na ocasião por aproximadamente 3 km, em um fundo de vale, acompanhando o curso do córrego da Água Espraiada aonde numerosos conglomerados de barracos foram erguidos misturando-se em alguns trechos com áreas residenciais urbanizadas (Figuras  4 e 5). 

Figura 4- Vista aérea da Favela Cidade Leonor e também da pista do aeroporto de Congonhas (Foto de Armando Leal).

Figura 5- Vista aérea da Favela Cidade Leonor (Foto de Armando Leal).

Água encanada era disponível para 88,5% dos barracos, mas nenhum deles dispunha de rede de esgoto, sendo que os dejetos eram drenados diretamente para o córrego, o qual se transformou em uma verdadeira cloaca a céu aberto (Figuras  6 e 7).

Figura 6- Vista do córrego da Água Espraiada e os barracos erigidos ás suas margens. Uma verdadeira fossa negra a céu aberto.

Figura 7- Vista do córrego da Água Espraiada sendo utilizado como fonte de diversão das crianças desta comunidade.

O córrego da Água Espraiada nasce na região de Diadema e após um percurso de aproximadamente 15 km deságua no rio Pinheiros próximo à ponte do Morumbi (há alguns anos o córrego foi canalizado e sobre ele atualmente passa a av. Roberto Marinho). Naquela época, como ação preliminar para iniciarmos nosso trabalho assistencial, realizamos o censo populacional da comunidade que passaríamos a atender e constatamos que havia 1535 crianças menores de 10 anos sendo que 324 eram menores de 2 anos. Passo seguinte foi realizar a avaliação do estado nutricional de uma amostra da população infantil. Foram avaliadas 520 crianças tendo sido constatado que 53% delas apresentavam algum grau de desnutrição, e o que era mais grave, dentre estas desnutrição crônica constituía-se no principal problema de agravo nutricional desta população infantil. Durante um período 28 semanas foi estimulado o comparecimento de toda a população infantil compreendida na faixa etária de 0 a 120 dias ao Posto Médico para seguimento pondero-estatural durante o primeiro ano de vida e também para registrar as intercorrências clínicas em consultas mensais de rotina. Foram recrutadas inicialmente 61 crianças e neste grupo ficou constatado que apenas 18 (29,5%) crianças estavam sendo amamentadas quando da primeira consulta, 13 (72,2%) delas eram menores de 1 mês, e a duração do aleitamento natural exclusivo aos 45 dias de vida incluía somente 49% dos lactentes, portanto, mais da metade deste grupo de crianças já havia sido desmamada em idade ainda de grande vulnerabilidade sob risco de contrair doenças que levam ao ciclo vicioso diarréia-desnutrição. Portanto, as crianças desta comunidade muito precocemente deixavam de receber o aleitamento natural exclusivo, o qual representa um grande papel protetor contra as agressões do meio ambiente, em especial contra infecções em geral, e mais especificamente contra as infecções bacterianas gastrointestinais.

Na tentativa de se implementar ações paliativas considerando a alta vulnerabilidade dos lactentes pertencentes às famílias que habitam estas comunidades marginais às infecções em geral, a baixa prevalência da prática do aleitamento natural nesta população, e o potencial papel protetor exercido pelo aleitamento natural elaboramos um projeto de promoção à prática do aleitamento natural por tempo prolongado tendo em vista os seguintes objetivos:

1- Analisar comparativamente o ganho pondero-estatural entre os lactentes que receberam aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado e aqueles que receberam aleitamento artificial;

2- Determinar e comparar a freqüência dos processos mórbidos durante o primeiro ano de vida entre os lactentes que receberam aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado e aqueles que receberam aleitamento artificial.

Seleção da Amostra

A amostra selecionada constituiu-se por gestantes de baixo nível sócio-econômico residentes na favela Cidade Leonor (Figuras 8 e 9) e matriculadas no Centro Assistencial Cruz de Malta (Figuras 10 e 11), as quais se encontravam no final do primeiro trimestre de gestação. 

Figura 8- Visão do nosso primeiro local de atendimento no interior da Favela Cidade Leonor.

Figura 9- Sra. Cecília Aflalo, membro da equipe de trabalho, ensinando a realização da técnica de tapotagem.

Figura 10- Moradoras da Favela Cidade Leonor incluídas no programa aguardando atendimento no salão de espera da Cruz de Malta.

Figura 11- Crianças  moradoras da Favela Cidade Leonor atendidas na creche Cruz de Malta.

No transcorrer da pesquisa, estas gestantes tornaram-se nutrizes e continuaram a ser acompanhadas juntamente com seus filhos, desde o nascimento até o final do primeiro ano de vida.

Considerou-se como indicador de baixo nível sócio-econômico renda familiar inferior ou igual a 2 salários mínimos. Quanto à idade as gestantes deveriam estar compreendidas entre 16 e 35 anos, e no que diz respeito à paridade deveriam apresentar passado obstétrico variando de nulíparas e não-nulíparas com até 4 paridades. Foram também selecionadas as gestantes que não apresentavam patologias obstétricas que pudessem impedir a amamentação ou ocasionar o nascimento de crianças com baixo peso.

Com relação às crianças foram incluídas aquelas que preenchessem as seguintes condições:

1- Crianças nascidas a termo com idade gestacional entre 38 e 42 semanas;

2- Crianças com peso de nascimento superior a 2.500 gramas e adequado para a idade gestacional;

3- Crianças que não apresentaram intercorrências patológicas ao nascimento.

Desenho do Estudo

Quando as gestantes matriculadas no serviço de orientação pré-natal atingiam o final do primeiro trimestre de gestação eram encaminhadas ao serviço de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição sob a responsabilidade da Dra. Fátima Lindoso e minha orientação (tratava-se do projeto de tese de Doutorado da referida doutora a qual quando elaborada e apresentada ao programa de Pós-Graduação de Pediatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, em 1993, foi aprovada com nota 10,0) para serem submetidas a uma entrevista e possível inclusão no programa (Figura 12).

Figura 12- Dra. Fátima Lindoso em atendimento de Puericultura de uma das crianças do programa.

Foram entrevistadas 100 gestantes, dentre elas, 70 preencheram os critérios para inclusão na pesquisa e aceitaram participar do projeto. Durante a entrevista explicavam-se, a cada potencial participante, os objetivos do trabalho, e, firmava-se verbalmente, entre entrevistada e entrevistadora, um compromisso de acompanhamento contínuo de ambas as partes até que seu filho completasse o primeiro ano de vida.

Após a inclusão no estudo, cada gestante foi submetida a um questionário detalhado a respeito dos seus dados pessoais. Todas as gestantes tiveram seus endereços confirmados, por meio de uma visita domiciliar realizada pela enfermeira que trabalhava junto à nossa equipe.

Plano de Apoio e Incentivo à Prática do Aleitamento Materno

Para estimular a prática do aleitamento natural foi elaborado um plano de apoio que inicialmente foi dirigido às gestantes e posteriormente às nutrizes. Este plano constituiu-se basicamente no estabelecimento de uma profunda relação pessoal entre os membros da equipe de trabalho e as participantes da pesquisa, e constava de discussões em grupo, orientação individual, demonstração prática do aleitamento, desmistificação dos inúmeros tabus existentes contra a eficácia do leite materno para o bom desenvolvimento da criança etc. Os temas abordados nesse período versavam sobre as modificações ocorridas no corpo da futura mãe em decorrência da gravidez, a função da glândula mamária, o aleitamento materno e sua importância para a saúde do binômio mãe-filho, mitos e desmame, causas e conseqüências e também técnicas de amamentação.

Após o período inicial do relacionamento individual, passou-se à etapa de orientação coletiva e ao término de cada palestra eram abertas discussões entre as gestantes com o intuito de promover a troca de experiências pessoais.

Com o nascimento das crianças e mesmo durante o transcorrer do crescimento e desenvolvimento das mesmas, ampliaram-se os assuntos a serem debatidos, os quais passaram a enfocar os seguintes temas: técnicas de amamentação e como evitar o desmame, adequação do aleitamento materno às necessidades da criança, época adequada para a introdução dos alimentos do desmame e tipos de alimentos que deveriam ser empregados, programa de vacinação, alimentação durante o primeiro ano de vida etc.   

Acompanhamento das Gestantes

O acompanhamento das gestantes se deu por meio de consultas quinzenais durante toda a gestação e consistiu de 3 etapas seqüenciais, a saber:
1- Mensuração quinzenal do peso;
2- Orientação para os cuidados primários à saúde materno-infantil;
3- Distribuição de produtos para suplementação alimentar.

Formação do Binômio Mãe-Filho

Após o nascimento da criança foram propostas as seguintes etapas de acompanhamento do binômio mãe-filho, como se segue:

1- Primeira consulta aproximadamente no 15º dia após o nascimento;

2- Entrevista para inclusão do filho no estudo;

3- Acompanhamento prospectivo quinzenal mãe-filho;

4- Preenchimento de protocolo específico do filho com os dados pessoais pertinentes.

Seguimento Clínico e Antropométrico dos Lactentes

Para a realização do seguimento clínico dos lactentes foi elaborada uma ficha individual com os seguintes conteúdos: identificação social, questionário de seguimento longitudinal durante o primeiro ano de vida, dados antropométricos, registro dos hábitos alimentares (prática de aleitamento natural, época de introdução dos alimentos do desmame, tipos e formas), avaliação clínica na puericultura e durante as intercorrências mórbidas.
  
Resultados

Características sócio-econômicas-educacionais dos pais

Do grupo inicial das 70 gestantes elegíveis para o estudo foi possível realizar o acompanhamento até o final do primeiro ano dos seus filhos em 48 delas. As idades das mães variaram de 17 a 35 anos, com média de 29,9+/-5,7 anos, e com relação aos pais as idades variaram de 19 a 54 anos, média de 29,5+/-6,5 anos.

Quanto à paridade, 11 (22,9%) eram primíparas, 9 (18,8%) secundíparas e 28 (58,3%) apresentavam 3 ou 4 paridades. Com relação ao tipo de parto, 28 (58,3%) tiveram parto vaginal e 20 (41,7%) sofreram parto cesariana.

Com relação ao grau de instrução das mães, 4 (8,3%) eram analfabetas, 44 (1,7%) haviam recebido educação formal durante período de tempo variável (não superior ao ensino fundamental) e 14 (29,2%) exerciam atividade profissional extra-domiciliar. Quanto aos pais, 2 (4,2%) eram analfabetos, e 46 (95,8%) haviam recebido algum grau de educação formal (apenas 4 deles haviam completado o ensino médio); todos eles exerciam algum tipo de atividade profissional.

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