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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Minha História de vida e minha História vivida na EPM/UNIFESP (15)

A história da realização de um Pós-Doutorado no North Shore University Hospital, Cornell University, Nova Iorque: pessoal e científica


A primeira visita ao Parque Indígena do Xingu: meu encantamento com aquela gente




Estávamos nos meados de Dezembro de 1970, eu, juntamente com meus colegas de turma, comemorava o fim do nosso curso de Medicina pela Escola Paulista de Medicina (EPM) com uma chopada e música, em frente ao Hospital São Paulo, quando veio um comunicado urgente do Parque Indígena do Xingu (PIX) informando que havia uma grave epidemia de gripe afetando a população indígena das tribos do Alto Xingu, e solicitando o envio imediato de médicos para prestar assistência aos enfermos. Dr. Roberto Baruzzi, coordenador das atividades de atenção à saúde da EPM no PIX, buscava desesperadamente médicos que pudessem atender este pedido de urgência, e como não houvesse encontrado auxílio disponível naquele momento decidiu lançar mão dos recém formados que estavam festejando o término de um longo percurso de 6 anos como acadêmicos do curso médico. Eu fui contatado e de pronto aceitei aquele que seria meu primeiro desafio como médico, que vinha acumulado com alguns agravantes, tais como, trabalhar em um local fora dos meus domínios corriqueiros, com uma população de cultura e idioma totalmente diferentes daquela que eu estava acostumado a lidar até então, mais ainda, não teria a supervisão de meus tutores para discutir minhas prováveis dúvidas de conduta. Porém, como era muito grande meu desejo de conhecer PIX e seus habitantes, no dia seguinte voamos para lá. A primeira impressão da região, vista do alto, foi esplendorosa, a vegetação intacta, as curvas do rio Xingu, a imagem das aldeias, tudo isso mostrava-se fascinante, parecia uma sonho, dava a sensação de haver entrado na máquina do tempo, como se eu houvesse voltado à época dos primeiros conquistadores (Figuras 1-2-3). 



Figura 1- Vista aérea da região do Alto Xingu, em primeiro plano o rio Xingu e ao fundo a lagoa do Ipavu, aonde se localiza a aldeia Camaiurá.


Figura 2- Vista aérea mais próxima da lagoa do Ipavu e da aldeia Camaiurá.


Figura 3- Imagem de uma oca da aldeia Camaiurá. Em geral, em cada oca vivem cerca de 3 a 4 famílias.

De fato, quando lá chegamos eu e Rubens Belfort (Figuras 4-5), meu colega de turma, éramos apenas os dois para cuidar da população das 9 aldeias que compõe a região do Alto Xingu, a situação mostrava-se dramática à primeira vista.





Figura 4- Rubens Belfort e eu em um momento de descanso das atividades assistenciais saboreando um delicioso beiju recém assado.


Figura 5- Depois de um dia árduo de trabalho, nos fins de tarde, sempre havia tempo para jogarmos uma “pelada” no campo improvisado em frente ao refeitório. Sou o de camisa azul número 6.

Havia um grande número de crianças e adultos atingidos pela epidemia, a maioria de forma leve, porém alguns mais gravemente enfermos necessitavam de assistência mais cuidadosa. Adaptamos no Posto Leonardo uma grande enfermaria em um dos galpões que serviam de alojamento para os visitantes, ali internávamos os casos mais graves que necessitavam medicação intravenosa (Figuras 6-7-8).

Figura 6- Vista panorâmica do Posto Leonardo, ressaltando os grandes pequizeiros, à direita o galpão da enfermaria improvisada e ao fundo a edificação da farmácia, local do primeiro atendimento médico.

 
Figura 7- Vista aérea do galpão que foi improvisado como enfermaria para atendimento dos casos mais graves.

Figura 8- Vista geral da enfermaria improvisada para atender os casos de gripe mais graves.

Os casos mais leves eram cuidados nas próprias aldeias que visitávamos duas vezes por dia (Figuras 9-10).


Figura 9- Visão geral de um atendimento dos casos leves de gripe na aldeia Uaura.

Figura 10- Cena de atendimento na aldeia Iualapiti.

Foi uma experiência fantástica, heroica mesmo, e ao cabo de 2 semanas de trabalhos ininterruptos pudemos celebrar uma grande vitória, pois não havíamos perdido nenhum paciente, a epidemia foi superada com mortalidade zero. Pudemos assim voltar a São Paulo para participar das cerimônias de formatura com as glórias de havermos vencido nosso primeiro grande desafio como médicos.

À parte desta experiência assistencial durante todo o tempo que lá estive, cada vez mais me impressionavam alguns aspectos socioculturais daquela gente. Aprendi que o aleitamento natural é verdadeiramente “natural”, pois era prática universal naquela comunidade, não havia outro tipo de alimentação (os índios não têm atividade pecuária) para os lactentes e, além disso, era realmente prolongado porque havia visto inúmeras crianças que já caminhavam e ainda mamavam no seio materno (Figuras 11-12).


Figura 11- Lactente evidentemente eutrófico no momento da amamentação.


Figura 12- Criança pré-escolar ainda recebendo aleitamento natural.

Como me especializaria em Pediatria, prestava muita atenção nas crianças e percebia o quanto elas transmitiam um ar de rara e constante felicidade, viviam aos bandos brincando o dia inteiro, fosse no pátio ou nos lagos próximos da aldeia, não havia brigas, riam o tempo todo, desfrutavam de plena liberdade de ir e vir (Figuras 13-14-15).

Figura 13- Crianças índias nos recebendo em aldeia Coicuro.



Figura 14- Crianças se divertindo à beira do rio, sempre em grupos e com grande alegria.


Figura 15- O futebol, mesmo na chuva, também passou a fazer parte da paixão xinguana.

Aprendi também que as crianças eram o centro das atenções de toda a comunidade, eram tratadas com enorme carinho e compreensão pelos adultos, nunca vi uma criança ser espancada por seus pais (Figuras 16-17).


Figura 16- Pai pintando filho para participar da festa do Jawari, manifestação cultural das mais tradicionais na região do Alto Xingu.


Figura 17- Desde tenra idade as crianças aprendem a participar da cultura do seu povo.

A olho nu a impressão que me era transmitida transbordava o bem estar e o aspecto saudável das crianças desde tenra idade até os maiores. Percebia que o tipo de alimentação embora monótona quanto à variedade era altamente nutritivo e salutar, composta por mandioca, peixe e frutas silvestres, dentre estas destacando o pequi (fonte rica em vitamina A), havia abundância de comida mas não havia desperdício (Figuras 18-19-20-21-22-23-24-25-26-27-28). 

Figura 18- Pescaria altamente bem sucedida para uma festa tribal.


Figura 19- Os peixes são assados diretamente na brasa ou moqueados.

Figura 20- Desfrutando um esplêndido tucanaré na brasa.

Figura 21- Índia preparando a mandioca para posterior extração do ácido cianídrico, potente veneno presente neste vegetal plantado na região do Alto Xingu.


Figura 22- Índia fazendo a lavagem e peneirando a massa da mandioca para extração do ácido cianídrico.

Figura 23- Caldo do polvilho da mandioca submetido à fervura para extração final do ácido cianídrico.

Figura 24- Após a evaporação da água o polvilho está pronto para ser armazenado e utilizado quando necessário para a feitura do beiju.

Figura 25- O beiju sendo preparado no interior da oca.

Figura 26- Beiju sendo assado diretamente sobre o fogo.


Figura 27- Pequi armazenado em cestas de bambu e depositado no lago.


Figura 28- O pequi depois de colhido é colocado em cestas de bambu e depositado no lago para ser ingerido de acordo com a necessidade de cada pessoa. Esta é a fonte de vitamina A do Xingu.

Na verdade, eu que havia viajado para cuidar de uma população enferma e pretensiosamente acreditava que iria ensinar coisas a uma população de cultura primitiva, acabei aprendendo uma lição de vida que me serviu como um grande ensinamento pessoal e profissional futuro. Enfim, eu definitivamente me apaixonei por aquela “civilização” que veio desmitificar todos os ensinamentos preconceituosos que eu havia aprendido nos livros de História do Brasil nos bancos escolares. Eles conquistaram meu coração e minha mente (Figuras 29-30).


Figura 29- Grupo de mulheres índias com suas filhas, de aspecto altivo e amistoso.

Figura 30- Índia com sua prole e eu, após meu coração e mente terem sidos conquistados por essa gente.

Nos anos seguintes, ainda durante a minha formação na Residência Médica, voltei ao PIX como parte integrante da expedição EPM que rotineiramente para lá se dirigia com o intuito de vacinar a população e cuidar das possíveis intercorrências médicas. Aquela primeira impressão se reafirmava agora ainda com maior intensidade, visto que já havia adquirido alguma experiência clínica, assim, podia ter um melhor juízo de valores quanto às condições de saúde das crianças índias. Foi a partir desta vivência clínica de que Eutrofia era o padrão nutricional vigente nesta comunidade é que desenhamos um projeto de pesquisa para avaliar de forma objetiva e cientificamente comprovada esta sensação subjetiva que tanto nos chamava a atenção.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University, Nova Iorque (6)

Resultados

Exame Clínico
Considerando-se os 336 exames clínicos realizados não foram evidenciados sinais de desnutrição protéico-calórica grave. Manifestações de desnutrição protéico-calórica leve foram observadas em apenas 3 crianças. Uma delas apresentava dermatite seborréica e as outras duas, estomatite angular.

Intercorrências independentes do estado nutricional foram caracterizadas em algumas ocasiões, tais como: conjuntivite purulenta em 3 crianças, escabiose em 2 e prolapso retal em 1. Quadro agudo de malária foi diagnosticado em 6 crianças.

Esplenomegalia foi o achado propedêutico mais freqüente na população estudada. Em 185 (55%) dos exames clínicos realizados encontrou-se baço palpável, cuja distribuição de acordo com o índice esplênico está disposta na Tabela 1.
Tabela 1- Valores dos índices esplênicos detectados ao exame clínico das crianças índias estudadas.

Avaliação do Estado Nutricional
Os resultados da avaliação do estado nutricional das crianças em cada ano do projeto de pesquisa estão disponíveis na Tabela 2. A análise dos resultados do estudo antropométrico realizado em cada etapa do trabalho de campo permitiu afirmar que a prevalência de desnutrição protéico-calórica entre as crianças índias da região do Alto Xingu, supostamente menores de 5 anos de idade, é baixa.
Tabela 2- Avaliação do estado nutricional das crianças índias em cada ano do estudo.

A aplicação do índice peso-estatura revelou que 96,1% em 1974, 95,5% em 1975 e 96,1% em 1976 das crianças foram classificadas como Eutróficas (Figuras 1 & 2).


Figuras 1 & 2- Aspectos físicos das crianças índias estudadas, denotando um nítido padrão de eutrofia em diferentes idades.

Os poucos casos de desnutrição protéico-calórica em nenhum dos anos do estudo superou a taxa de 5,0%, e todos eles encontravam-se de intensidade leve.

Análises laboratoriais
1- Sangue
Foram realizadas as determinações do Hematócrito, cujos valores variaram de 25% a 40% apresentando a média de 33,4%.

Eletroforese das proteínas séricas foi realizada em 104 crianças em 1974, e os valores das proteínas totais variaram de 5,2g% a 8,3g%, com valor médio de 7,1g%. A fração Albumina apresentou valores que variaram de 2,6g% a 4,2g%, e o valor médio foi de 3,4g%. Em 1975 foi realizada eletroforese das proteínas em 48 crianças, e os valores totais variaram de 5,5g% a 8,2g%, com média de 7,3g%; a fração Albumina variou de 2,8g%a 4,4g%, e a média foi de 3,5g% (Tabela 3).
Tabela 3- Valores médios e respectivos desvios-padrão das dosagens das proteínas séricas das crianças índias estudadas.

2- Fezes
Foram realizados exames de fezes para pesquisa de helmintos e protozoários em 40 crianças. Em apenas 8 delas a pesquisa resultou negativa enquanto que nas outras 32 (80%) foram detectados parasitas intestinais cuja distribuição encontra-se discriminada nas Tabelas 4 & 5.

Tabela 4- Prevalência de helmintos encontrados nas fezews das crianças índias estudadas.

Tabela 5- Prevalência de protozoários identificados nas fezes das crianças índias estudadas.

Conclusões

A elaboração prévia de um detalhado programa de ação para ser desenvolvido no campo deve ser o ponto de partida de qualquer projeto de pesquisa para que, na prática, sua execução possa alcançar o êxito desejado. Especificamente, no caso do presente trabalho de campo que visava estudar o maior número possível de crianças, a escolha da época do ano teve uma função estratégica do mais alto valor, pois devido ser o mês de julho período de seca, as condições climáticas facilitaram as atividades práticas da equipe de saúde, tanto no que se refere a vinda das tribos ao Posto Leonardo quanto ao próprio deslocamento da equipe de saúde às aldeias, seja por via fluvial e/ou terrestre (Figura 3).

Figura 3- Uma visão do rio Xingu durante um deslocamento da equipe de saúde por via fluvial.

Durante o período das chuvas (outubro a abril) estas atividades estariam altamente prejudicadas, posto que usualmente chove torrencialmente todos os dias e, por esta razão, os deslocamentos seriam quase que impraticáveis (Figura 4).

Figura 4- Visão da trilha que liga o Posto Leonardo a uma aldeia em uma época de chuvas na região.

Os vários deslocamentos realizados pela equipe de saúde dentro do PIX, em visita às aldeias, possibilitaram o levantamento de toda a população infantil que potencialmente poderia ser incluída no estudo, e, em cada ano, pelo menos dois deslocamentos internos foram realizados. As aldeias mais próximas e de acesso fácil (Iaualapiti e Camaiura) foram visitadas todos os anos. Deslocamentos mais longos, a partir do Posto Leonardo, foram realizados para visitar outras aldeias, tais como, Cuicuro, Matipu, Nafuqua.

Em resumo, o trabalho assim desenvolvido possibilitou a elaboração de um estudo transversal de avaliação do estado nutricional das crianças representado por cortes anuais, e, ao mesmo tempo, propiciou o estudo longitudinal que permitiu determinar o ritmo de crescimento das crianças índias.
Os inquéritos nutricionais que se destinam a estudar uma determinada comunidade baseiam-se, via de regra, na escolha de uma amostra populacional. Uma vez respeitados os critérios científicos para a constituição da amostragem, os resultados podem ser, de forma válida, extrapolados para a população em questão.

Em se tratando de populações indígenas, defronta-se desde o início, com o obstáculo decorrente do pequeno número de indivíduos pertencentes a estas comunidades. Este é o caso específico das inúmeras comunidades indígenas brasileiras, sobre as quais escassas informações, de real valor científico, a respeito das suas condições nutricionais, encontram-se disponíveis na literatura. A necessidade de se conhecer aspectos mais detalhados em relação ao estado nutricional destes grupamentos populacionais nativos remanescentes torna-se prioritário, pois, se em passado não muito remoto contavam-se aos milhões e chegavam a ocupar parcela significativa do território brasileiro, na atualidade encontram-se reduzidos a alguns parcos núcleos residuais empurrados para um nítido e dramático processo de diminuição populacional (Tabela 6).


Tabela 6- Variação da população indígena do PIX desde 1963, início da constituição do parque, até mais recentemente, demonstrando um significativo aumento da mesma a partir da proteção oferecida contra as frentes de ocupação da nossa sociedade.

Para superar a barreira da possível falta de uma amostragem populacional significativa decidiu-se incluir no estudo o maior número de crianças que potencialmente se encontravam dentro dos critérios de inclusão previamente estabelecidos. O objetivo foi plenamente alcançado, visto que foi estudada a quase totalidade das crianças da região do Alto Xingu com idade estimada igual ou inferior a 5 anos.

Inúmeros ensinamentos práticos puderam ser obtidos desta civilização chamada de cultura primitiva, os quais merecem ser comentados. A prática, em escala universal, do aleitamento natural exclusivo e por tempo prolongado, representa, sem dúvida alguma, um dos principais fatores para contribuir com o estado de eutrofia vigente entre as crianças índias, apesar dos múltiplos problemas de ordem ambiental, tais como a malária e a parasitose intestinal endêmicas. Outro aspecto a ser ressaltado é a utilização racional e equilibrada dos recursos naturais, o qual é de suma importância para a manutenção de um estado nutricional adequado. No Alto Xingu, a dieta, apesar de ser monótona, proporciona quantidades suficientes de proteínas e gorduras de altas qualidades, fornecidas pelo peixe que é abundante na região (Figuras 5 & 6), a mandioca como fonte de carboidrato e as frutas silvestres como fonte de vitaminas, em especial o piqui, este último altamente rico em vitamina A (Figura 7).

Figura 5- Peixes sendo assados diretamente sobre a fogueira.

Figura 6- Beiju da mandioca sendo assado para depois ser ingerido juntamente com o peixe.

Figura 7- Crianças índias Uaura observando cestas de piqui que são estocadas submersas nas águas do lago próximas à aldeia, e, cujo fruto é consumido de acordo com a necessidade individual.
Na sociedade indígena a disponibilidade de alimentos é universal, posto que não existe extratificação sócio-econômica, não há valores pecuniários e todos os indivíduos de uma determinada aldeia têm os mesmos deveres e direitos, os quais são norteados por critérios de convivência que foram acordados entre eles e que se consagraram pela prática, para possibilitar a perpetuação da espécie ao longo dos muitos séculos de existência na área.
Este trabalho foi apresentado sob a forma de tese de Doutorado ao Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina, em abril de 1977, tendo sido aprovado com nota 10,0 (Dez) pelos 5 examinadores de reconhecida competência científica, oriundos das mais prestigiosas universidades brasileiras. Posteriormente, versões simplificadas e abordando aspectos diversos deste trabalho foram publicadas nas seguintes revistas científicas: 1- American Journal of Clinical Nutrition 34:2220-2235,1981 “Observations of the Alto Xingu with special reference to nutritional evaluation in children” sendo autores: Fagundes-Neto U., Baruzzi RG., Wehba J., Silvestrini WS., Morais MB & Cainelli M. 2- Jornal de Pediatria 50:179-82,1981 “Avaliação nutricional das crianças índias do Alto Xingu” sendo autores: Fagundes-Neto U., Baruzzi RG., Wehba J., Silvestrini WS., Morais MB & Cainelli M.
A pergunta que permanece no ar e que não quer calar é saber se este estado de coisas ainda persiste nesta comunidade, posto que este trabalho foi realizado há mais de 30 anos? Alguma resposta pode ser dada de imediato, porque este trabalho com a mesma metodologia seguiu-se até 1980, e as condições nutricionais das crianças índias permaneceram praticamente inalteradas (Tabela 7).


Tabela 7- Evolução da avaliação do estado nutricional das crianças índias ao longo dos anos desde 1974 até 1980.

E depois? Outro trabalho realizado já no século XXI, utilizando a mesma metodologia e incorporando a impedância bioelétrica foi realizado, mas os resultados ficarão para outro momento, agora é chegado o tempo de Nova Iorque.
No próximo encontro estaremos em Nova Iorque, mais precisamente em Long Island no North Shore University Hospital para começar uma nova aventura de vida e profissional, enveredando-me pelos mágicos caminhos da investigação experimental.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University, Nova Iorque (5)

O Trabalho de Campo
Diante das peculiaridades da população do Alto Xingu, posto que seus habitantes aí vivem nas condições mais próximas possíveis daquelas vigentes na época do Descobrimento, foi elaborado um projeto de pesquisa com os seguintes objetivos:

1- Avaliar o estado nutricional das crianças índias; 2- Determinação do Hematócrito e 3- Prevalência de parasitoses intestinais.
Casuística

O trabalho de campo desenvolveu-se sempre na primeira quinzena do mês de julho durante três anos consecutivos, a saber: 1974-75-76. A época do ano foi fixada no mês de julho porque as condições climáticas nesta época do ano são bastante favoráveis à execução do projeto de pesquisa. O período de seca, que já se faz prolongado, o que costuma ocorrer desde o mês de março com o fim do período das chuvas, facilita a mobilidade no interior do PIX, tanto no que se refere ao deslocamento dos índios desde suas aldeias até o Posto Leonardo, como do próprio grupo médico em direção às aldeias. Nestas circunstâncias, o acesso às aldeias utilizando-se os meios de transporte disponíveis na região, seja o terrestre ou fluvial, encontram-se bastante favorecidos (Figuras 1-2-3-4 & 5).
Figura 1- Equipe médica se deslocando de barco no rio Xingu para trabalhar numa aldeia indígena. No primeiro plano estou eu, ao meu lado Prof. Mauro Morais, na ocasião ainda estudante de medicina, e mais atrás Prof. Baruzzi.


Figura 2- Desembarque da equipe médica em uma praia do rio Xingu para iniciar a caminhada em direção a uma aldeia.

Figura 3- Caminhada pela trilha aberta na mata tendo à frente Prof. Wagner Silvestrini.

Figura 4- Uma parada na trilha para uma foto.

Figura 5- Equipe médica atravessando uma pinguela.

Ao final deste período haviam sido avaliadas 175 crianças, 97 do sexo masculino, com idade estimada igual ou inferior a 5 anos, pertencentes às tribos indígenas do Alto Xingu.

A avaliação da idade limite para inclusão na avaliação do estado nutricional foi realizada por meio do exame clínico da criança e do exame da arcada dentária, este último executado por odontólogo. Uma vez estabelecida a população a ser incluída no estudo não mais se utilizou a variável idade.

Tratou-se sempre, em cada ano do trabalho de campo, de incluir o maior número possível de crianças de cada tribo pertencente ao grupo etário pré-determinado. Para tanto, não somente foi solicitado o comparecimento dos índios ao Posto Leonardo (Figuras 6 & 7), como também a equipe médica realizou diversos deslocamentos até as aldeias (Figura 8). Em cada etapa do trabalho procurou-se não apenas incluir as crianças já avaliadas no ano anterior, mas também, aquelas nascidas nos 12 meses precedentes, bem como todas as crianças maiores de 1 ano e menores de 5 anos que, por quaisquer razões, não haviam sido examinadas no ano precedente. Tal procedimento possibilitou estabelecer uma análise transversal, correspondente a cada ano, identificando, em cada etapa do trabalho, um grupo de crianças que não havia sido incluído no ano ou nos anos precedentes. Ao mesmo tempo, tornou possível obter, ao final do estudo, uma avaliação longitudinal de um grupo de crianças.

Figura 6- Acampamento dos índios no Posto Leonardo.

Figura 7- Acampamento dos índios no Posto Leonardo à noite, aquecidos pelas fogueiras.

Estudo Transversal
1974 – 79 crianças, 43 do sexo masculino; 1975 – 45 crianças, 27 do sexo masculino; 1976 – 51 crianças, 27 do sexo masculino.

Total: 175 crianças.

Estudo Longitudinal
3 anos consecutivos: 53 crianças, 26 do sexo masculino; 2 anos consecutivos: 46 crianças, 26 do sexo masculino; 2 anos alternados: 9 crianças, 7 do sexo masculino.

Total: 108 crianças.

Métodos

1- Identificação da criança

Foi feita levando-se em conta a aldeia em que residia, a oca em que morava, os nomes do pai e da mãe e também foi criado um número de registro gral, sua origem tribal, o nome que recebia da mãe e do pai. Para maior facilidade de identificação posterior a ficha incluía uma fotografia da criança, a qual era obtida no momento em que ela era incluída no estudo.

2- Exame Físico

Toda criança foi submetida a detalhado exame físico visando detectar anormalidades clínicas, e em especial, algum sinal ou sinais que denotassem carências nutricionais específicas ou não (Figura 8).

Figura 8- Exame físico de uma criança indígena no trabalho de campo.

Considerando-se que malária é endêmica na região, especial atenção foi dada para os achados de esplenomegalia, por meio da determinação do índice esplênico.

3- Medidas Antropométricas

Foram obtidos os valores do Peso, Estatura, Perímetro Cefálico, Perímetro Torácico e Prega Cutânea (Figuras 9 -10-11-12 & 13).
Figura 9- Determinação do peso.

Figura 10- Determinação da estatura.

Figura 11- Determinação do perímetro cefálico.

Figura 12- Determinação do perímetro torácico.

Figura 13- Determinação da prega cutânea.

4- Sangue

Foram obtidas amostras de sangue para a realização do Hematócrito.

5- Fezes

Amostras de fezes foram coletadas para pesquisa de protozoários e helmintos.

Parque Indígena do Xingu (PIX)
O PIX foi criado em 1961, pelo governo federal, tendo por finalidade a preservação da população indígena ali localizada, bem como sua cultura, prestando-lhe assistência e defendendo-a de contatos prematuros e nocivos com as frentes de ocupação da nossa sociedade. Naquela ocasião a direção do PIX foi entregue aos irmãos Villas Boas (Cláudio e Orlando), os quais haviam chegado à região em 1946 como membros da expedição Roncador-Xingu. Esta expedição tinha, entre outros, o objetivo estratégico de interiorização do Brasil para preservar nossa soberania na região Amazônica.

O PIX está localizado no extremo norte do Estado de Mato Grosso e abrange uma área retangular de aproximadamente 20.000 km2 (extensão territorial do tamanho da Bélgica), numa zona de transição entre o Planalto Central e a Amazônia, acompanhando o rio Xingu desde suas cabeceiras até a divisa com o Estado do Pará (Figura 14).

Figura 14- Mapa do Parque Indígena do Xingu.

Trata-se de uma região plana e a vegetação encontra-se nos limites da floresta equatorial do vale amazônico, que predomina à medida em que se aproxima do norte, e dos campos e cerrados que são encontrados ao sul, alternando-se com as florestas de galeria que acompanham o curso dos rios e as margens dos numerosos lagos (Figuras 15 & 16).

Figura 15- Vista aérea do PIX, destacando-se o rio Xingu e uma aldeia na sua proximidade.

Figura 16- Vista aérea da aldeia Coicuro próxima de um dos mais lindos lagos da região.

As dificuldades de acesso à região, decorrentes da existência de uma série de quedas d’água que se estendem da cachoeira de Von Martius para o norte, no curso médio do rio Xingu, e da existência do vasto e inóspito chapadão mato-grossense, ao sul, permitiram que esta área permanecesse indevassada até o final do século XIX.

Escavações realizadas na área por arqueólogos, na década de 1960, possibilitaram o encontro de vestígios que levam a crer que a ocupação do Alto Xingu remonta há séculos, entretanto, os primeiros relatos sobre os índios da região foram feitos por Steinen, que a visitou em duas expedições nos anos de 1884 e 87. Pela descrição por ele realizada, verifica-se que a área do Alto Xingu era habitada, naquela ocasião, pelas mesmas tribos que aí vivem nos dias atuais, a saber: Auiti, Uaurá, Calapalo, Camaiurá (Figura 17), Cuicuro, Iaualapiti, Meinaco, Matipu-Nafuqua e Trumai.

Figura 17- Vista aérea da aldeia Camaiurá e a lagoa do Ipavu.

A radicação secular na mesma área e a grande facilidade de mobilidade interna fez com que as relações intertribais ocupassem um plano de destaque na vida do índio. Este relacionamento tornou-se tão importante que, praticamente, o único traço de distinção entre as tribos é a língua. Na região estão presentes os representantes de três das quatro principais famílias lingüísticas indígenas do Brasil, a saber: Tupi, Aruaque e Caribe. Porém, apesar desta diferença de línguas as tribos aí localizadas possuem uma organização política, social e cultural idênticas, caracterizadas pelas crenças, ritos cerimoniais e festas, ritmo de vida e ciclo de atividades bastante semelhantes e integradas, constituindo o que o antropólogo Galvão, em 1953, denominou “cultura Xinguana” ou “área cultural do Alto Xingu”.

Assim sendo, o estado de considerável isolamento e a longa ocupação de uma mesma área geográfica, com relativa proximidade entre as aldeias, contribuíram para um grande entrelaçamento entre as tribos do Alto Xingu, sob um ponto de vista social e cultural, embora, na realidade, representem nações totalmente independentes.

No próximo encontro descreverei os resultados da pesquisa e discutirei alguns aspectos que me parecem relevantes a respeito desta civilização.