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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Dor abdominal recorrente na infância: resumo das avaliações de tratamento de três revisões sistemáticas (Parte 1)



Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Introdução

A dor abdominal recorrente (DAR) é um problema comum na prática pediátrica, com prevalência estimada que varia de 2% a 41%. Entre 4% e 25% das crianças em idade escolar sofrem de DAR intermitentemente, o que é bastante para interferir em suas atividades de vida diariamente. A DAR está associada com afastamentos escolares, internações hospitalares e em determinadas ocasiões até mesmo intervenções cirúrgicas desnecessárias.  A dor abdominal geralmente está associada com outros sintomas, tais como: cefaleia, dores nos membros, palidez e vômitos, os quais podem persistir até a vida adulta. A DAR pode causar significativa ansiedade nos pais e cuidadores, os quais se sentem sobrecarregados pelo receio da coexistência de enfermidades mais graves, ou mesmo por se sentirem incapazes para aliviar os sintomas apresentados pela criança.

A DAR nas crianças representa um grupo de transtornos funcionais gastrointestinais que apresentam uma etiologia não esclarecida. O último consenso da Fundação Roma sugere que esses transtornos estão relacionados com os seguintes eventos fisiopatológicos, a saber: alteração da motilidade do trato digestivo, hipersensibilidade visceral, alteração da função imunológica e da mucosa, alteração da microbiota intestinal e alteração nos processos envolvendo o sistema nervoso central (Figuras 1-2-3-4).


Figura 1- Manifestações clínicas decorrentes da intolerância a determinados carboidratos da dieta que podem estar presentes nos transtornos funcionais gastrointestinais.


Figura 2- Representação esquemática dos diversos mecanismos fisiopatológicos envolvidos nos transtornos funcionais.


Figura 3- Representação esquemática dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na Síndrome do Intestino Irritável.


Figura 4- Representação esquemática do eixo Sistema Nervoso Central-Trato Digestivo, destacando a grande importância das relações cognitivas e emocionais entre ambos sistemas do nosso organismo, o trato digestivo se constituindo no chamado “Segundo Cérebro”.

A Fundação Roma sugere que a DAR é “o produto de interações de fatores psicossociais e alterações fisiológicas do trato digestivo tendo como via o eixo cérebro/intestino”. Para o propósito desta revisão sistemática a DAR foi utilizada como um termo “guarda-chuva” para descrever o que atualmente se refere como “transtornos funcionais de dor abdominal” de acordo com a nova classificação de Roma IV: dispepsia funcional, síndrome do intestino irritável, enxaqueca abdominal e dor abdominal funcional.

Até o presente momento não existe um consenso ou guias de conduta a respeito das intervenções oferecidas aos pacientes, e, consequentemente, o tratamento da DAR permanece sem uma definição consistente.  Esta revisão sistemática tem por objetivo avaliar a eficácia das intervenções dietéticas, farmacológicas e psicológicas nas crianças em idade escolar que sofrem de DAR.

Métodos

A revisão sistemática foi conduzida de acordo com os princípios gerais publicados pela Cochrane e foi relatada segundo os critérios estabelecidos pelas Revisões Sistemáticas de Meta-Análises.

Critérios de Inclusão

Crianças com idades de 5 a 18 anos com DAR ou um transtorno funcional gastrointestinal relacionado com dor abdominal, conforme a definição dos critérios de Roma III, foram incluídas. O efeito primariamente avaliado foi a dor, segundo os seguintes parâmetros: intensidade, frequência, duração, ou a proporção dos participantes que referiram significativo alívio da dor. Os estudos foram agrupados de acordo com a sua duração, da seguinte forma: seguimento de curto prazo (0-3 meses), médio prazo (3-6 meses) e longo prazo (6 ou mais meses). Os seguintes desfechos secundários foram analisados: desempenho escolar, comportamento social ou psicológico, qualidade de vida diária, e outros adventos adversos.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Síndrome do Intestino Irritável: um distúrbio funcional que pode acarretar importante desconforto aos pacientes (6)

Manejo Terapêutico

Escolares e Adolescentes

Nos Escolares a “Longa Caminhada” da SII tem como manifestação proeminente o que se convencionou denominar Dor Abdominal Recorrente. Este termo foi cunhado pelo pediatra inglês John Appley, no final da década de 1950 (Arch Dis Child 33: 165-70, 1958), a partir de suas observações clínicas após ter consultado 1.000 crianças em idade escolar que se queixavam de dor abdominal, e que aparentemente não apresentavam evidencia de uma doença orgânica. Para melhor caracterizar esse grupo de pacientes Appley considerou como portadoras de Dor Abdominal Recorrente aquelas crianças que haviam apresentado pelo menos 3 episódios de dor de intensidade suficientemente significativa para afetar suas atividades habituais por um período de no mínimo 3 meses. Excluía crianças menores de 3 anos e também aquelas que não haviam apresentado episódios de dor nos últimos 12 meses anteriores à consulta. Este conceito, que simplesmente descreve um padrão de sintomas sem levar em consideração uma possível etiologia orgânica, perdurou por muitos anos na literatura médica com grande aceitação apesar de certa rigidez conceitual, tanto no número de episódios quanto no tempo de duração dos sintomas. A idéia que norteou o tempo mínimo de duração em 3 meses foi a de excluir possíveis distúrbios digestivos isolados, banais, como também admitir que este prazo seria suficientemente amplo para que ocorresse o surgimento de outros sinais e/ou sintomas que viessem a facilitar o diagnóstico de uma enfermidade de cunho orgânico. Além disso é necessário também entender o momento temporal em que este conceito foi emitido. Na década de 50 a disponibilidade de exames laboratoriais de investigação diagnóstica era extremamente limitada, e, portanto, não permitia uma abordagem auxiliar mais profunda. Naquela época, o Pediatra apenas podia se apoiar na história e no exame clínico, e na presença de "alguma luz vermelha" ou sinal de alarme, para ajudar na discriminação entre causas orgânicas e não orgânicas de dor abdominal, que o levasse a prosseguir adiante com os parcos recursos tecnólogicos de investigação diagnóstica existentes.

Estudos epidemiológicos realizados no mundo ocidental demonstram que a SII tem sido diagnosticada em 0,2% das crianças com idade média de 52 meses atendidas por Pediatras Generalistas e de 22 a 45% das crianças entre 4 e 18 anos que foram atendidas por Gastroenterologistas Pediátricos. Alguns aspectos psicológicos, tais como ansiedade, depressão e outras múltiplas queixas somáticas têm sido relatadas em crianças portadoras da SII. Portanto, é sempre necessário buscar eventos potencialmente deflagradores dos sintomas, bem como é extremamente importante explorar possíveis fatores biopsicossociais como causa desencadeadora da sintomatologia. Recente trabalho de revisão da literatura médica realizado por Gieteling e cols., na Holanda (JPGN 47: 316-26, 2008), para determinar qual a frequência da persistência da dor abdominal crônica recorrente, de um total de 18 estudos envolvendo 1331 crianças e adolescentes, entre 4 e 18 anos de idade, acompanhadas durante 5 anos, detectaram que a dor abdominal persistiu em 29,1% dos casos. Vale ressaltar que a SII sob a forma de dor abdominal crônica recorrente na infância pode progredir para a vida adulta em uma porcentagem significativa de casos. Para confirmar esta afirmativa há uma vasta lista de publicações na literatura médica, porém, como exemplo, destaco uma mais recente publicada por Howell e cols. no Am J Gastroenterol 100: 2071-8, 2005.

Com relação às manifestações clínicas a Dor Abdominal aparece como a mais freqüente queixa durante a idade escolar. A Dor Abdominal apresenta alguns aspectos que são bastante característicos, tais como: 1- as crianças, que já conseguem ter um grau confiável de comunicação, referem que a dor se localiza preferentemente na região umbilical e se irradia em círculos concêntricos ao redor da cicatriz umbilical; 2- a dor é geralmente intensa o suficiente para provocar a incapacitação da criança realizar suas atividades físicas, seja de deveres bem como de lazer; 3- a dor pode surgir a qualquer momento do dia e perdurar por alguns minutos ou mesmo algumas horas; 4- a dor NÃO costuma surgir durante o sono, e este é um dado extremamente importante para diferenciá-la da Dor Abdominal de Origem Orgânica, pois esta última costuma surgir mesmo durante o sono, despertando o paciente.
Ao exame físico o paciente encontra-se em bom estado geral, e ao ser solicitado mostra o local da dor descrevendo círculos concêntricos ao redor da cicatriz umbilical; à palpação dos flancos pode-se sentir os colons gargarejantes e dolorosos.
Na Adolescência as manifestações clínicas passam a ser muito semelhantes a dos adultos. Nesta fase da vida os pacientes podem se queixar de episódios de diarréia alternados com períodos de constipação associados à distensão e dor abdominal.
Diante da alta prevalência das afecções funcionais do trato digestivo em adultos foi constituído um grupo de estudo composto por experts internacionais com o objetivo de estabelecer um consenso a respeito dos critérios diagnósticos de todas as síndromes funcionais gastrointestinais. Estes experts se reuniram em Roma em 1991, e aí elaboraram os critérios consensuados que passaram a ser conhecidos como os critérios de Roma I. Entretanto, a aplicação prática destes critérios resultou em inúmeras polêmicas, e como não houve aceitação universal das propostas aí definidas, decidiu-se pela criação de outro grupo de estudo que, em 1999, revisou e modificou alguns dos critérios anteriormente estabelecidos. Estes novos critérios passaram a ser designados de Roma II. Nesta ocasião pela primeira vez levou-se em consideração que também deveriam ser abordados alguns temas pediátricos, porém, estes se limitaram a apenas algumas manifestações clínicas e, assim mesmo, o foram de forma superficial. Não foram motivos de discussão as diferentes formas de apresentação da SII na infância. Mais uma vez, igualmente ao que sucedeu com os critérios de Roma I estes novos critérios também não vieram a satisfazer totalmente quando da sua aplicação prática. Por esta razão um novo grupo reuniu-se em 2006, novamente em Roma, e, assim, chegou-se aos critérios de Roma III.

Desta vez deu-se uma ênfase mais abrangente às afecções funcionais em Pediatria. Para tal, foi criado um Comitê para focalizar especificamente os critérios diagnósticos das Afecções Funcionais Gastrointestinais na infância e adolescência, período compreendido entre os 4 e 18 anos de vida, cujo trabalho, na integra, está publicado na revista Gastroenterology 130: 1527-37, 2006. O Comitê foi constituído pelos seguintes renomados gastroenterologistas pediátricos: André Rasquin (Montreal, Canadá), Carlo Di Lorenzo (Ohio, EUA), David Forbes (Perth, Australia), Ernesto Guiraldes (Santiago, Chile), Jeffrey Hyams (Connecticut, EUA), Annamaria Staiano (Nápoles, Itália) & Lynn Walker (Nashville, EUA).
Dentre as várias afecções funcionais a SII foi contemplada com especial destaque. Os membros do Comitê decidiram elaborar os seguintes critérios para o diagnóstico da SII:
1- Desconforto (sensação desconfortável não descrita como dor) abdominal ou dor associada a 2 ou mais dos seguintes sintomas por pelo menos 25% do tempo: a- alívio com a evacuação; b- início dos sintomas associados a alteração da freqüências das evacuações; c- início dos sintomas com alteração do formato (aparência e/ou consistência) das fezes.
2- Ausência de evidências de processo inflamatório, neoplásico e/ou alterações anatômicas e metabólicas que possam explicar as manifestações sintomáticas.
Vale salientar que, para que estes critérios sejam considerados válidos, os sintomas devem estar presentes pelo menos uma vez por semana, e, ao mesmo tempo, dentro dos últimos 2 meses anteriores ao diagnóstico.

Por outro lado, os membros do Comitê também estabeleceram critérios diagnósticos para aquilo que eles denominaram de Dor Abdominal Funcional, entendendo que esta última fosse uma entidade distinta da SII, a saber: 1- dor abdominal episódica ou continua; 2- critérios insuficientes para classificar em outra síndrome funcional; 3- ausência de evidências de processo inflamatório, neoplásico e/ou alterações anatômicas e metabólicas que possam explicar as manifestações sintomáticas.
Do meu ponto de vista esta divisão torna-se absolutamente desnecessária e mesmo redundante porque os sintomas descritos praticamente se superpõe àqueles referidos para a SII. Entendo que esta proposta vem a gerar mais confusão do que esclarecimento, porque estas manifestações que acima estão descritas para Dor Abdominal Funcional são parte da mesma síndrome que abarca a SII.

Os membros do Comitê elaboraram também uma lista de sintomas e sinais de alarme, o que me parece extremamente pertinente, as quais estão presentes em enfermidades que envolvem lesões orgânicas bem reconhecidas, para diferenciá-las da Dor Funcional, a saber: dor epigástrica persistente, dor persistente no flanco direito, disfagia, vômitos persistentes, sangramento no trato digestivo, diarréia noturna, história familiar de doença inflamatória intestinal ou doença celíaca ou úlcera péptica, dor abdominal que desperta a criança ou o adolescente do sono, artrite, doença perianal, perda de peso espontânea, desaceleração do crescimento linear, retardo da puberdade e febre de origem inderterminada.
Tratamento

Como se pode depreender de todo o exposto a respeito da “Longa Caminhada“ da SII, por ser esta uma manifestação clínica funcional e altamente relacionada com o estado emocional do paciente, não há um tratamento medicamentoso específico para atuar sobre a causa do processo gerador dos sintomas. No entanto, é muito importante orientar os familiares e os pacientes, quando estes já têm capacidade de compreensão do problema, a respeito dos fatores que geram a sintomatologia, e, acima de tudo, tranqüilizá-los quanto à característica absolutamente benigna desta afecção funcional. Medicamentos sintomáticos para aliviar a dor abdominal durante os episódios ou para aliviar a constipação são plenamente justificados, mas sempre com o esclarecimento de que estamos atuando sobre as conseqüências, porém, não estamos eliminando a causa.

Com este capítulo finalmente encerramos a “Longa Caminhada” da SII e, assim, no próximo encontro passaremos a nos dedicar a respeito de um novo tema da Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Síndrome do Intestino Irritável: um distúrbio funcional que pode acarretar importante desconforto aos pacientes (3)

Lactentes acima de 6 meses e Pré-Escolares até 3 anos

Nesta faixa etária a principal queixa do paciente modifica-se totalmente em relação ao período imediatamente anterior da vida e Diarréia Crônica intermitente passa a ser a manifestação clínica predominante, podendo ou não estar associada a cólicas intestinais. O processo diarréico costuma instalar-se de forma insidiosa, as fezes tornam-se líquidas ou semi-líquidas, freqüentemente com a presença de restos alimentares não digeridos. Estes restos alimentares são na imensa maioria das vezes constituídos por alimentos de origem vegetal recobertos por uma capa de celulose tais como feijão, milho, ervilha, cenoura, banana etc. Este fato é decorrente do trânsito ser rápido nos colons não havendo, portanto, tempo para que as bactérias da flora colônica possam atuar no processo normal de fermentação da celulose. Em condições normais a celulose é transformada nos colons pelas bactérias aí residentes em ácidos graxos voláteis, posto que o ser humano não possui nenhum mecanismo enzimático competente para realizar a digestão da celulose. Os episódios diarréicos surgem por surtos sem uma razão aparente e, em virtude da tenra idade dos pacientes, teme-se que as perdas hídricas fecais possam levar à desidratação, por serem estas supostamente intensas, confundindo-se na maioria das vezes com quadro de infecção intestinal. Entretanto, dois aspectos de fundamental importância devem ser levados em conta para se fazer a diferenciação diagnóstica com infecção intestinal, a saber:

1- Na grande maioria das vezes apesar dos familiares referirem uma elevada freqüência do número das evacuações, não raramente até 10 vezes ao dia, o que, diga-se de passagem é absolutamente verossímil, e que contrasta com o bom aspecto clínico do paciente, que se apresenta ativo, muitas vezes irritado é verdade, mas que se mantém alerta contatando-se perfeitamente bem com o ambiente (Figura 1).

Figura 1- Paciente com quadro de SII; apesar dos episódios de diarréia mantem-se bem nutrido e alerta

Vale à pena referir que o cortejo das evacuações geralmente obedece a uma seqüência que não é uniforme ao longo do dia. A primeira evacuação do dia costuma ser pastosa, muitas vezes mesmo endurecida, e à medida que as horas avançam progressivamente as fezes vão se tornando mais amolecidas até que por fim surge a diarréia franca. Um dado relevante é que apesar da elevada freqüência no número das evacuações as perdas hídricas e eletrolíticas são de pequena intensidade porque não há um processo secretor intestinal e nem tampouco uma Síndrome de Má Absorção. As perdas hídricas são colônicas devido à motilidade acelerada e, portanto, não trazem repercussão sistêmica de monta. Pode haver presença de muco nas fezes, mas não há sangue vivo nem oculto, porque não ocorre processo inflamatório na mucosa colônica. A curva de crescimento pondero-estatural mostra-se uniforme (esta é uma informação extremamente importante para demonstrar que não se trata de um quadro de diarréia crônica devido a uma possível "Síndrome de Má Absorção") (Figuras 2, 3, 4 e 5), caso não tenha havido intervenção dietética inapropriada com introdução de dietas hipoprotéica e hipocalórica (discutirei o tratamento dietético mais adiante).
Figura 2- Observar gráfico de crescimento uniforme bem proporcionado entre peso e estatura do paciente da Figura 1 . FIgura 3- Paciente portadora de Síndrome da Má Absorção (Doença Celíaca). Notar o importante agravo do estado nutricional, inclusive edema tibial por hipoproteinemia e irritabilidade intensa.

Figura 4- Observar o gráfico do crescimento pondero-estatural da paciente da Figura 3; há um importante agravo nutricional antes do diagnóstico e posterior recuperação após início do tratamento dietético apropriado. Testes de digestão (Sobrecarga com Triglicérides) e absorção (D-xilosemia) anormalmente alterados.


Figura 5- Paciente da Figura 3 portadora de Doença Celíaca em tratamento com dieta isenta de glúten em plena recuperação clínica e nutricional

Estes episódios de diarréia costumam ser recorrentes, com início muitas vezes sem causa aparente e término depois de alguns dias também sem uma explicação plausível. O comportamento errático deste transtorno funcional causa grande desconforto e insegurança aos familiares que, com justa razão, desejam saber a causa e as potenciais complicações desta “enfermidade”. Em certas situações é possível identificar a existência de alguma circunstância que tenha alterado a dinâmica ambiental e/ou familiar afetando diretamente o comportamento bio-psico-social do paciente e ser, assim, a provável causa da manifestação sintomática. Em outras ocasiões, porém, não é possível atribuir os episódios de diarréia a alguma causa específica, o que possivelmente tenha sido o fator que gerou uma série de mitos e especulações a respeito da gênese deste quadro diarréico. Dentre elas está a erupção dos dentes que se inicia ao redor dos 6 meses e termina por volta dos 2 anos, período no qual, em geral, também corresponde, respectivamente, com o início e o final das crises de diarréia. Nesta fase da vida praticamente a cada 2 meses novos dentes surgem e até se completar a dentição com os 20 “dentes de leite” vários episódios de diarréia coincidem com este fenômeno biológico. Uma outra possibilidade que em passado não muito remoto foi atribuida a causa dos sintomas, e, quem sabe, ainda possa perdurar nos dias atuais, é o que se convencionou denominar de “Diarréia Parenteral”. Hipoteticamente, tratar-se-ia de diarréia de origem não intestinal devido a um foco infeccioso à distância, muitas vezes observada em crianças que sofriam de algum processo infeccioso viral ou bacteriano, particularmente nas vias aéreas superiores, e que concomitantemente apresentavam quadro diarréico com as características da SII. Por todos estes motivos, acima expostos, este distúrbio funcional, nesta fase da vida, também foi denominado de “Diarréia Crônica Inespecífica” e na língua inglesa de “Toddler’s Diarrhea” (toddler: idade na qual a criança está aprendendo a andar).

2- Por outro lado, no caso de haver uma infecção intestinal devido às perdas hídricas e salinas pela diarréia, a qual geralmente vem associada a vômitos e febre (também importantes fatores de espoliação hídrica e salina), aquelas são tão intensas que rapidamente levam o paciente à desidratação, com reflexos clínicos evidentes, tais como, prostração, perda de peso agudo, alterações no turgor da pele, olhos encovados, diminuição ou mesmo ausência de lágrimas e boca sêca. A presença desses sinais e sintomas vai necessitar uma intervenção terapêutica de urgência para a reposição apropriada das perdas e para a manutenção do equilíbrio hidro-eletrolítico enquanto estiver em vigência o processo infeccioso que, como se sabe, é autolimitado (Figura 5).
Figura 5- Paciente com infecção intestinal e grave espoliação hidro-eletrolítica levando à desidratação

No nosso próximo encontro continuarei a descrever a "Longa Caminhada" das manifestações clínicas da SII nas diferentes fases da vida da criança e do adolescente.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Síndrome do Intestino Irritável: um distúrbio funcional que pode acarretar importante desconforto aos pacientes (1)

Introdução

A Síndrome do Intestino Irritável (SII) é um transtorno funcional que pode se apresentar com diarréia intermitente ou constipação intestinal associada à dor abdominal crônica, ou mesmo ainda alternando diarréia e constipação. Embora ainda se desconheça com exatidão as causas desta síndrome, por um lado, sabe-se que a SII tem caráter absolutamente benigno quanto aos riscos de complicações graves. Por outro lado, está bem estabelecido que a SII pode provocar um impacto significativamente negativo na qualidade de vida dos pacientes devido a natureza imprevisível da intensidade das crises de diarréia e/ou das cólicas associadas à distensão abdominal e constipação, as quais podem ter um efeito extremamente limitante sobre a vida privada e profissional do paciente.

Entende-se por funcional porque não envolve qualquer anormalidade orgânica, isto é, não se detecta qualquer lesão macroscópica e/ou microscópica na mucosa intestinal e nem tampouco é possível caracterizar alguma alteração bioquímica específica nesta síndrome por meio dos métodos de investigação clínica e laboratorial disponíveis atualmente ao alcance da medicina.

SII é também conhecida pela designação de Síndrome do Colon Irritável, porque se imaginava que apenas o intestino grosso estivesse envolvido na gênese dos sintomas; porém, como recentemente demonstrou-se que o problema está relacionado com a ocorrência de ondas peristálticas anormais e que o limiar para dor visceral envolvendo todo o intestino encontra-se diminuído nos pacientes portadores da SII tem-se procurado optar por esta designação, posto ser ela mais abrangente. No passado também foi denominada de Colite Nervosa por terem sido atribuídas as manifestações clínicas essencialmente a distúrbios emocionais. Embora haja evidências bastante sugestivas de envolvimento emocional como parte das manifestações clínicas a denominação Colite é totalmente inapropriada, posto que o sufixo ite designa inflamação, o que se sabe não ocorre na SII. Além disto, a designação de Colite Nervosa pode confundir com Colite Ulcerativa enfermidade que apresenta características clínicas e anátomo-patológicas bem definidas e totalmente diferentes da SII.

Atualmente está bem estabelecida a existência de uma série de mediadores químicos que são liberados na nossa circulação a partir de estímulos que atingem o sistema nervoso central, particularmente a região do hipotálamo, os quais vão atuar à distância sobre receptores localizados nos diferentes níveis do intestino, e, assim, determinam o surgimento das manifestações clínicas. Na verdade existe um verdadeiro eixo hipotálamo-trato digestivo através do nervo vago, que é responsável pela ação efetora dos estímulos recebidos, interferindo diretamente na motilidade intestinal.
Sabe-se que a SII é responsável por pelo menos 20% das consultas médicas em pacientes adultos, mas tudo indica que esta é apenas a parte visível do “iceberg” desta afecção funcional, posto que se admite que a maioria dos pacientes não chega a procurar aconselhamento médico para cuidar dos seus sintomas. Estudos de investigação clínica visando detectar retrospectivamente o início dos sintomas têm demonstrado que as manifestações sintomáticas foram referidas a partir de tenra idade, na infância, e desde então passaram a acompanhar o paciente ao longo de toda sua existência.

Vale a pena referir que a primeira descrição desta síndrome em Pediatria se deve ao médico norte-americano Murray Davidson sob a designação de Diarréia Crônica Inespecífica, publicada em 1966 no Journal of Pediatrics. No nosso meio a primeira publicação de uma casuística da SII na infância pertence a Ulysses Fagundes Neto, Marli de Almeida Pedra & Valéria de Castro Ferreira no Jornal de Pediatria (RJ) de 1985. Neste trabalho os autores relatam a experiência com o seguimento de 76 crianças com idade média de 18,1 mêses portadoras de diarréia crônica acompanhadas durante 15,6 mêses. Confirmam a característica benigna da SII e concluem que a mesma pode apresentar múltiplas características à medida que o paciente se encontra nos mais diferentes momentos da sua evolução para a vida adulta.

No nosso próximo encontro iremos descrever a “Longa Caminhada” das manifestações clínicas da SII desde os primeiros meses de vida e suas diferentes formas de apresentação durante todo o processo de crescimento e desenvolvimento, passando pelas idades pré-escolar, escolar e adolescência.