quarta-feira, 29 de abril de 2009

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se transformou em um problema de saúde pública universal (5)

Os Marcadores Sorológicos: os testes laboratoriais que permitiram desvendar a parte não visível do “iceberg” da Doença Celíaca

Embora a biópsia do intestino delgado ainda seja considerada absolutamente necessária para a confirmação diagnóstica da DC, a introdução dos testes sorológicos, a partir da década de 1980, trouxe uma enorme contribuição para identificar quais indivíduos devem se submeter a este procedimento diagnóstico. Além disso, esses testes passaram também a ser utilizados para rastreamentos populacionais o que possibilitou desvendar o que se convencionou designar como a porção submersa do “iceberg” da DC, a partir da investigação pioneira conduzida por Catassi e cols., em 1996. Estes pesquisadores realizaram um estudo multicêntrico na Itália utilizando inicialmente os marcadores sorológicos em uma população de estudantes. Naqueles indivíduos que apresentavam positividade para os marcadores sorológicos realizou-se a biópsia do intestino delgado, o que possibilitou caracterizar que a prevalência da DC é de 1 para cada 184 indivíduos. A partir deste estudo inúmeras outras investigações epidemiológicas populacionais passaram a ser realizadas nos mais diversos países, inclusive no Brasil, as quais demonstraram cabalmente que a DC está longe de ser uma enfermidade rara, e sim, muito ao contrário, trata-se de um problema de saúde pública universal (Tabela 1).

Tabela 1- Prevalência da DC em diversos países, inclusive no Brasil.
Os testes laboratoriais comercialmente disponíveis incluem os anticorpos anti-gliadina IgA e IgG (AGA IgA e AGA IgG), anti-reticulina IgA (ARA), anti-endomíseo IgA (EMA) e anti-transglutaminase tecidual IgA e IgG (TTG).
A sensibilidade e a especificidade destes testes sorológicos estão discriminadas na Tabela 2.
Tabela 2- Sensibilidade e Especificidade dos principais marcadores sorológicos para DC.
Dentre os vários marcadores sorológicos disponíveis, atualmente, os mais utilizados são o EMA e o TTG, porque apresentam as mais altas taxas de sensibilidade e especificidade.
Estudos populacionais com doadores de sangue têm-se constituído em uma casuística muito freqüentemente utilizada pelos pesquisadores em virtude da facilidade de se utilizar o sangue estocado. Ricardo Palmero Oliveira, pesquisador da Disciplina de Gastropediatria da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP e colaboradores (European Journal of Gastroenterology and Hepatology 19: 43-9, 2007), realizaram um estudo com 3.000 candidatos a doadores de sangue para determinar a prevalência da DC em São Paulo com o emprego do TTG e confirmação diagnóstica pela biópsia do intestino delgado. O teste sorológico resultou negativo em 95,4% (2861/3000), mostrou-se fracamente positivo em 3,1% (94/3000) e positivo em 1,5% (45/3000) dos indivíduos. Dentre os 94 candidatos a doadores de sangue que apresentaram dosagem do TTG fracamente positivo 91 eram assintomáticos, 1 apresentava queixa de constipação e dor abdominal e 2 queixavam-se de dor abdominal. Dentre os 45 candidatos a doadores de sangue que apresentaram dosagem do TTG positivo 46,7% (21/45) concordaram em realizar a biópsia do intestino delgado. Na Tabela 3 estão discriminados os aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que realizaram a biópsia do intestino delgado.

Tabela 3- Aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que realizaram a biópsia do intestino delgado.

Na Tabela 4 estão discriminados os aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que não realizaram a biópsia do intestino delgado.

Tabela 4- Aspectos clínicos e laboratoriais relevantes dos indivíduos que não realizaram a biópsia do intestino delgado.
Na Tabela 5 estão discriminadas as manifestações clínicas que podem estar associadas à DC, mostrando que indivíduos da população geral que apresentam sintomas compatíveis com DC têm maior probabilidade de serem portadores da enfermidade.

Tabela 5- Manifestações clínicas associadas à DC.
Dentre os indivíduos que se submeteram à biópsia do intestino delgado confirmou-se o diagnóstico de DC em 66,7% (14/21) deles, ou seja, a prevalência da DC nesta população revelou ser de 1:214 indivíduos. Por outro lado, caso todos os indivíduos que apresentaram dosagem elevada do TTG e que se recusaram a realizar a biópsia do intestino delgado (24/45), tivessem também se submetido ao referido procedimento, e considerando-se que o TTG revelou-se falso positivo em 33,3% dos indivíduos que se submeteram à biópsia do intestino delgado e que confirmaram ser portadores da DC, a prevalência seria maior, porque se poderia especular que 66,7% (16/24) dos indivíduos que não realizaram a biópsia de intestino delgado seriam também portadores de DC. Neste caso, ao acrescentarmos mais 16 indivíduos aos 14 com diagnóstico de DC confirmado, totalizaríamos 30 dos 3000 candidatos a doadores de sangue no grupo com DC. Desta forma, então, a prevalência da DC em São Paulo passaria a ser de 1:100 indivíduos, portanto, tão elevada quanto à verificada em outros países, em especial na comunidade européia (Tabela 6).
Tabela 6- Distribuição da prevalência da DC no mundo ocidental.
No nosso próximo encontro continuaremos a discutir os aspectos mais interessantes dessa enfermidade que se tornou em pouco tempo um problema de saúde pública universal.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se transformou em um problema de saúde pública universal (4)

B- Manifestações Extra-intestinais

Muitos pacientes recentemente diagnosticados com DC podem inicialmente se apresentar com sintomas não digestivos.

Há fortes evidências que a Dermatite Herpetiforme representa a manifestação dermatológica da DC (Figura 1), posto que a maioria destes pacientes também apresenta concomitantemente alterações morfológicas da mucosa intestinal compatíveis com a DC, mesmo na ausência de manifestações gastrointestinais. Tanto as lesões de pele quanto a morfologia da mucosa intestinal são reversíveis com a utilização de uma dieta isenta de glúten.



Figura 1
Defeito do Esmalte Dentário envolvendo a dentição definitiva tem sido descrito em cerca de 20% a 70% das crianças com DC, podendo mesmo ser a primeira manifestação da enfermidade (Figura 2); portanto, nestes casos, a suspeita diagnóstica de DC deve ser primeiramente levantada pelo dentista.

Figura 2
Artrite envolvendo o esqueleto axial e periférico tem sido relatada em até 25% dos casos de DC; a artrite tem sido descrita como aguda e não erosiva que geralmente cede com a introdução de uma dieta isenta de glúten.

Osteoporose e diminuição da densidade mineral óssea têm sido relatadas em pacientes com DC não tratada, as quais se revertem com o uso de dieta isenta de glúten.

Baixa estatura pode ser uma das formas de apresentação da DC, tendo sido identificada em 8% a 10% dos pacientes.

Anemia por deficiência de ferro, refratária ao tratamento por via oral, é a causa mais freqüente de manifestação não digestiva da DC; cerca de 8% a 11% das causas inexplicadas de anemia ferropriva associadas ou não a deficiência de ácido fólico se devem a DC.

Afecções neurológicas e psiquiátricas incluindo depressão, ansiedade, irritabilidade, neuropatia periférica, ataxia cerebelar, enxaqueca e epilepsia devido a calcificações intracranianas (Figura 3) têm sido descritas em associação à DC.

Figura 3
Na Tabela 1, abaixo, estão discriminadas as principais manifestações extra-intestinais da DC
A) Manifestações que apresentam grande ou moderada evidência de DC
Dermatite herpetiforme
Hipoplasia do esmalte dentário (dentição definitiva)
Osteopenia/Osteoporose
Baixa estatura
Puberdade ratardada
Anemia ferropriva refratária a tratamento oral com ferro
B) Manifestações que apresentam evidência menos intensa
Hepatite
Artrite
Epilepsia com calcificações occipitais
Na Tabela 2, abaixo, estão discriminadas associações que apresentam prevalência aumentada com DC
Diabete tipo 1
Tireoidite autoimune
Síndrome de Down
Síndrome de Turner
Síndrome de Williams
Deficiência seletiva de IgA
Parentesco de primeiro grau
No nosso próximo encontro continuaremos a discutir os aspectos mais interessantes dessa enfermidade que se tornou em pouco tempo um problema de saúde pública universal.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se transformou em um problema de saúde pública universal (3)

Manifestações Clínicas


A- Gastrointestinais

As manifestações clínicas da DC são extremamente variáveis e dependem muito da idade do paciente. A forma clássica de apresentação da DC nas crianças consiste no surgimento de sinais e sintomas do trato digestivo que se iniciam entre os 6 e 24 meses de vida, depois da introdução do glúten na dieta. Nos quadros típicos os lactentes e pré-escolares apresentam queixa de diarréia crônica, anorexia, distensão abdominal, dor abdominal, ganho ponderal insuficiente ou mais freqüentemente perda de peso, parada do ritmo de crescimento e vômitos (Figuras 1-2-3 & 4).
 Figura 1- Paciente com DC no momento do diagnóstico.


 Figura 2- Uma das nossas primeiras pacientes com DC. Notar o aspecto extremamente entristecido da menina, além do evidente agravo do estado nutricional.

Figura 3- Nossa paciente evidenciando nítida hipotrofia da musculatura da região glútea e das coxas.
 


Figura 4- Nossa paciente após alguns meses de dieta isenta de glúten evidenciando nítida recuperação clínica e nutricional.

Desnutrição grave, ou até mesmo caquexia (Figura 5), podem ocorrer nos casos em que o diagnóstico é muito retardado. Alterações do comportamento, em especial irritabilidade intensa, costumam também estar presentes.

Figura 5- Pacientes com DC por ocasião do diagnóstico em franco estado de caquexia.

A forma clássica de apresentação passou a ser considerada como “a parte visível do iceberg da DC”, tamanho o grau de variabilidade das manifestações clínicas desta enfermidade, que pode ser desde assintomática (silente ou latente) ou mesmo apenas monossintomática.

É importante ressaltar que nas crianças maiores, escolares e adolescentes, as manifestações clínicas costumam ser mais sutis, o que pode ser um fator de retardo no diagnóstico. Os sintomas digestivos podem incluir dor abdominal, diarréia, e até mesmo constipação, flatulência e excessiva produção de gás. Cerca de 2 a 8% dos escolares e adolescentes geralmente apresentam baixa estatura e retardo constitucional da puberdade. Ter conhecimento da curva de crescimento pondero-estatural é uma informação da mais alta valia para se poder verificar se ocorreu parada do crescimento ou mesmo diminuição da velocidade do crescimento, a qual resulta em uma mudança para baixo no percentil da curva do crescimento.

Atualmente raramente os pacientes apresentam as manifestações daquilo que se convencionou denominar de “crise celíaca”, a qual era vista com mais freqüência em passado não muito remoto. A “crise celíaca” se caracteriza por diarréia aquosa explosiva, distensão abdominal importante, hipotensão, letargia e desidratação com grave associação a distúrbios eletrolíticos, em especial hipopotassemia. Este tipo de manifestação, de instalação aguda, coloca o paciente em alto risco de vida e tem sido responsável pela causa de morte direta desta enfermidade.

No nosso próximo encontro continuaremos a discutir os aspectos mais interessantes dessa enfermidade que se tornou em pouco tempo um problema de saúde pública universal.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se transformou em um problema de saúde pública universal (2)

Histórico

É fato reconhecido pelos historiadores que há cerca de 10.000 anos não havia grãos contendo glúten na natureza, e, portanto, presumivelmente, também não existia a DC. Com o advento da agricultura, o trigo e outros grãos contendo glúten passaram a ser cultivados extensivamente, o que veio a fornecer um dos dois elementos chave (o outro é a predisposição genética) para a ocorrência da DC. Entretanto, foi somente no século I da era cristã que Areteus da Capodócia relatou de forma científica a primeira descrição da DC. Ele descreveu as fezes características, o caráter crônico da enfermidade, a maior incidência na mulher e a possibilidade de crianças serem afetadas. Mais recentemente, no entanto, deveu-se a Samuel Gee, em 1888, na Inglaterra, a descrição em seu livro “On the celiac afection”, (a palavra Celíaco vem do grego e quer dizer “ventre abaulado”) muitas das características clássicas pelas quais ainda atualmente a DC se apresenta, a saber: ”indigestão crônica encontrada em pessoas de todas as idades, especialmente em crianças entre 1 e 5 anos”. Sugeriu ainda que a DC ocorreria por um erro dietético, e que a cura poderia ser alcançada pela introdução de uma dieta adequada. Mas, foi somente 60 anos mais tarde que o pediatra holandês Willem Karel Dicke, em 1950, provou o efeito deletério do trigo, demonstrando que sua fração protéica, o glúten, em especial a gliadina, é o fator responsável pela instalação da DC. Porém, neste intervalo de tempo inúmeras teorias para explicar sua causa foram propostas, assim como as mais variadas tentativas terapêuticas, as quais estão disponíveis na literatura médica. Por exemplo, Schultz, em 1904, atribuía a causa da DC a uma alteração da flora putrefativa intestinal, enquanto que Herter e Holt, em 1908, propunham que a etiologia se devia à flora lactobacilar; Henfner, em 1909, considerou a existência de uma grave insuficiência digestiva após o desmame e preconizava a utilização do leite humano. Haas, em 1924, revolucionou o tratamento dietético propondo algo totalmente inédito para sua época, a dieta de banana, inclusive excluindo os carboidratos dos cereais, a qual baixou de forma espetacular a alta mortalidade da DC, e por isso tornou-se muito recomendada até 1950. Stheeman, em 1932, observou que um dos seus pacientes com DC apresentava um agravo do distúrbio diarréico em seguida à ingestão de alimentos contendo amido; a criança revelava intensa idiossincrasia a alimentos como biscoito, pão e farináceos. Ainda em 1932, Parsons fez uma revisão de 94 casos de DC ocorridos na infância e reconheceu que enquanto aleitadas exclusivamente ao seio materno as crianças não apresentavam sintomas sugestivos da enfermidade. Afirmava, também, que a DC podia afetar igualmente adultos e crianças, chamando a atenção para a grande variabilidade dos sintomas e para o papel que os carboidratos desempenhavam para o desencadeamento da enfermidade. Em 1934, Luell e Campos descreveram as alterações radiológicas presentes na DC: “motilidade intestinal diminuída, alterações no padrão da mucosa jejunal com ausência do pregueamento característico e fragmentação da coluna de bário”.

Mas, indiscutivelmente, o grande salto de qualidade na melhor compreensão dos efeitos deletérios sobre o organismo provocados pela DC se deveu ao esclarecimento da sua etiologia pelo Professor Dicke. Ele observou que na Segunda Guerra Mundial, durante o período da ocupação nazista na Holanda, em virtude da grande escassez de alimentos, em especial o pão, paradoxalmente as crianças portadoras de DC apresentavam uma melhora clínica. Notou também que, após o termino da guerra, estas mesmas crianças vieram a apresentar uma deterioração clínica quando os Aliados passaram a suprir alimentos à população, especialmente o pão. Subseqüentemente, Dicke publicou uma série de artigos comprovando claramente a associação do trigo e da cevada como causadores da DC.

Alessio Fasano, gastropediatra italiano radicado em Baltimore, nos EUA, tornou-se um prestigioso investigador da DC, tendo sido um dos principais responsáveis em demonstrar que a DC é tão prevalente nos EUA quanto na Europa, fez na edição de dezembro de 2008 do Journal of Pediatrics uma revisão de um relato de caso de DC publicado nesta mesma revista há 50 anos (J Pediatr 1958;53:726-30) por Graven e Tomsovic. Tratava-se de uma menina de 16 meses que foi internada devido uma crise celíaca clássica, com palides, letargia, irritabilidade, perda de peso e distensão abdominal. Os métodos diagnósticos naquela época eram inespecíficos, incluindo a radiologia do abdome, e caracterização de esteatorréia, isto porque a ferramenta diagnóstica apropriada, ou seja, a biópsia do intestino delgado ainda não se encontrava disponível para uso rotineiro. Neste relato de caso o tratamento baseou-se em uma dieta com leite desnatado e banana. Naquela ocasião as taxas de mortalidade alcançavam até 35% e o tempo de hospitalização costumava ser muito longo, no caso presente foi de 49 dias.
Nosso primeiro caso com comprovação diagnóstica documentada com biópsia de intestino delgado foi descrito e publicado em 1974, após meu retorno da especialização ralizada no Policlínico Alejandro Posadas, em Buenos Aires, em 1973 (Figuras 1-2-3-4 & 5). Depois desta primeira descrição muitos outros casos até então considerados pacientes portadores de desnutrição por verminose ou problemas de ordem sócio-econômica vieram a ser também diagnosticados. Atualmente sabe-se que a prevalência da DC no nosso meio é tão frequente quanto aquela descrita em outras regiões do mundo.

Figura 1- Nosso primeiro paciente com DC no momento da internação evidenciando desnutrição grave e grande irritabilidade.

Figura 2- Nosso paciente alguns dias após o diagnóstico e em dieta isenta de glúten. Começava a recuperar a sociabilidade perdida e a se interessar pelas coisas ao seu redor, inclusive os brinquedos.

Figura 3- Comparação nutricional do nosso paciente no momento da internação e após alguns meses em dieta isenta de glúten, com total recuperação clínica e nutricional.


 Figura 4- A DC na sua expressão mais intensa de desnutrição, a caquexia.
Figura 5- A importância do diagnóstico correto e cumprir com rigor a dieta isenta de glúten, sem permitir quaisquer transgressões, ainda que esporádicas.
Vale ressaltar que a primeira descrição da realização da biópsia do intestino delgado se deve a um médico argentino Dr. Royer, que publicou sua façanha na Prensa Médica Argentina, em 1956. No mesmo ano a médica inglesa Dra. Margot Shiner realizou a primeira biópsia de intestino delgado em um paciente com DC e publicou seu feito na revista inglesa The Lancet. Mas somente no início da década de 1960 passou-se a dispor de um equipamento apropriado para a realização rotineira de biópsias de intestino delgado, o qual foi criado por Crosby e Kugler. Sem dúvida alguma este foi o avanço mais espetacular para propriciar o estudo das lesões morfológicas da mucosa intestinal na DC, tornando-se, desde então até os dias atuais, o padrão ouro no diagnóstico da DC.

No nosso próximo encontro continuaremos a discutir os aspectos mais interessantes dessa enfermidade que se tornou em pouco tempo um problema de saúde pública universal.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se transformou em um problema de saúde pública universal (1)

Conceituação

A Doença Celíaca (DC) é uma enfermidade autoimune em decorrência de uma intolerância permanente ao glúten da dieta contido no trigo, cevada e centeio. A DC apresenta uma característica extremamente peculiar em relação às outras enfermidades autoimunes, porque para que ela ocorra é necessário que exista a contribuição de um fator ambiental claramente identificável (o glúten) associado à presença, no paciente, de um Antígeno de Histocompatibilidade (HLA – human leukocytes antigen) dominante, DQ2 ou DQ8. Classicamente ela se apresenta com diarréia crônica e parada do ritmo de crescimento pondero-estatural nos primeiros anos da vida (Figuras 1-2-3 & 4), além de vômitos, distensão abdominal e até mesmo constipação.
 Figura 1- Gráfico de crescimento pondero-estatural da paciente portadora de Doença Celíaca por ocasião do diagnóstico.
Figura 2- Paciente portadora de Doença Celíaca por ocasião do diagnóstico evidenciando grande irritabilidade (uma das características típicas dos quadros floridos da enfermidade), distensão abdominal, hipotrofia da musculatura da raiz das coxas e edema tibial.

Figura 3- Paciente portadora de Doença Celíaca evidenciando hipotrofia da musculatura glútea e edema tibial por hipoproteinemia.

Figura 4- Paciente portadora de Doença Celíaca evidenciando grande irritabilidade, distensão abdominal, hipotrofia da musculatura glútea e edema tibial por hipoproteinemia.

O diagnóstico baseia-se nas alterações morfológicas da mucosa do intestino delgado, as quais embora não sejam patognomônicas, são altamente características, levando a graus variados de atrofia vilositária, infiltrado linfocitário intra-epitelial e hiperplasia das glândulas crípticas (Figura 5).
Figura 5- Material de biópsia de intestino delgado de paciente portador de Doença Celíaca evidenciando atrofia vilositária total, hiperplasia das glândulas crípticas e aumento dos linfócitos intra-epiteliais.



Vale ressaltar que os sintomas e as lesões morfológicas do intestino delgado são totalmente reversíveis com a introdução de uma dieta isenta de glúten (Figuras 6-7 & 8).

Figura 6- Gráfico de crescimento pondero-estatural da paciente após introdução da dieta isenta de glúten.

Figura 7- Paciente portadora de Doença Celíaca em franca recuperação clínica e nutricional após alguns meses de introdução da dieta isenta de glúten; é notório o ar de alegria e felicidade da criança.
Figura 8- Material de biópsia de intestino delgado de paciente portador de Doença Celíaca 6 meses após início de dieta isenta de glúten. As vilosidades intestinais encontram-se digitiformes, as glândulas crípitcas normais e o infiltrado linfo-plasmocitário da lâmina própria discreto.

É importante enfatizar que até alguns anos atrás a DC era considerada rara em determinadas regiões do mundo, inclusive no Brasil, sendo mais prevalente na Europa. Entretanto, mais recentemente, a partir da década de 1980, com a descoberta dos marcadores sorológicos, o rastreamento da DC pode ser inicialmente realizado utilizando-se estes testes, os quais apresentam elevadas taxas de sensibilidade e especificidade, tais como os anticorpos anti-endomíseo e o anticorpo anti-transglutaminase tecidual da classe IgA. Com o advento desses métodos rápidos de rastreamento sorológico ocorreu um significativo aumento no conhecimento da DC, o que possibilitou, por sua vez, também, que se estabelecesse o diagnóstico de DC em um número crescente de indivíduos, até então, aparentemente assintomáticos. Estes avanços diagnósticos possibilitaram tornar conhecidas inúmeras outras manifestações clínicas da DC, evidenciando outras variedades sintomáticas, e não mais aquelas apenas relacionadas com o trato digestivo. A DC tem sido descrita também associada com outras múltiplas enfermidades auto-imunes, como por exemplo, tireoidite autoimune e diabetes tipo I. Há também fortes evidências de uma ocorrência aumentada de DC em crianças portadoras de dermatite herpetiforme, defeitos no esmalte dentário, deficiência de IgA, síndrome de Down, síndrome de Turner e nos familiares de primeiro grau dos pacientes portadores de DC. Tomando-se por base inúmeros estudos realizados na Europa e nos Estados Unidos, a prevalência da DC entre as crianças de dois a quinze anos na população geral é de 3 a 13 para cada 1.000 crianças, ou aproximadamente 1:300 a 1:80 crianças.

No nosso próximo encontro continuaremos a discutir os aspectos mais interessantes dessa enfermidade que há pouco tempo passou a ser reconhecida como um problema de saúde pública universal.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

A experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (5)

Meu querido mestre e amigo Horácio Toccalino: um exemplo de determinação e perseverança na vida pessoal e profissional

Assim que cheguei ao Posadas para trabalhar já no primeiro contato com Dr. Toccalino (Figuras 1 & 2) tive uma nítida sensação de que seria recebido com especial atenção, o que eu poderia traduzir com a expressão “empatia recíproca à primeira vista".
Figura 1- Toccalino (o terceiro da esquerda para a direita) participando da reunião da Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em Viña del Mar, Chile, em 1968.
Figura 2- Toccalino juntamente com Licastro e Ortiz participando da reunião da Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em 1975, dias antes da fundação da nossa Sociedade.
De fato, o tempo somente fez confirmar esta primeira impressão. Ao longo de todo o ano tanto no campo profissional como no pessoal sempre mantivemos um relacionamento extremamente amistoso, dava até a percepção de que já nos conhecíamos de longa data, eu me sentia muito à vontade em sua companhia, principalmente quando juntos atendíamos os pacientes no ambulatório de gastroenterologia. No intervalo entre as consultas sempre arranjávamos alguns minutos para conversar sobre assuntos de trabalho, de planos futuros ou mesmo de temas absolutamente informais, até de problemas pessoais e familiares. Enfim, sinto que ele me adotou e que eu me apropriei desta adoção com muita satisfação, mesmo porque este relacionamento tão afetivo perdurou nos anos que se seguiram até sua morte prematura em dezembro de1977. Sim, Dr. Toccalino faleceu muito jovem, aos 48 anos, com muitos projetos pessoais e profissionais para ser desenvolvidos, o mais caro, no entanto, era a fundação da Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição, a qual se logrou concretizar em outubro de 1975, em São Paulo, durante o transcurso do Congresso Pan-Americano de Pediatria. Anteriormente, porém, em 1974, durante a realização do Congresso Mundial de Pediatria, em Buenos Aires, em um determinado dia, nos reunimos para almoçar em uma churrascaria denominada El Gaucho Imortal, Toccalino, Licastro, Martins Campos (José Vicente Martins Campos, gastroenterologista brasileiro, embora sendo especialista de adultos, tinha grandes interesses em investigação na área da gastroenterologia pediátrica, de quem me tornei amigo e admirador, participava ativamente dos eventos pediátricos e era um grande amigo de Toccalino desde longa data) e eu. Vínhamos de um encontro da Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em Escobar, cidade nas vizinhanças de Buenos Aires. Durante o almoço Toccalino manifestou seu descontentamento com os rumos daquela Sociedade, porque entendia que a gastroenterologia estava sendo cada vez mais marginalizada em detrimento de outras especialidades pediátricas, em especial a endocrinologia e a nefrologia. Toccalino sentia que havia chegado o momento de se fundar uma Sociedade especificamente voltada à gastroenterologia, já haveria uma massa crítica suficiente para tal empreendimento. Ele conhecia alguns colegas no Uruguai que certamente adeririam à idéia, e também mesmo no Brasil já havia alguns embriões da especialidade sendo gestados (Figura 3).


Figura 3- Simpósio em Belo Horizonte, no início de 1975, como parte da divulgação da criação da nossa Sociedade. Da direita para a esquerda Toccalino, Martins Campos, Francisco Penna, eu e um colega nefrologista José Silvério.
Criaríamos uma Sociedade tendo como pilares de sustentação o eixo Argentina, Uruguai e Brasil, e pouco a pouco colegas de outros países seguramente viriam também a se incorporar nessa nova proposta. Martins Campos prontamente concordou com a idéia, o mesmo ocorrendo com Licastro. Eu também concordei de imediato, porque afinal das contas quem era eu para emitir qualquer opinião a respeito de um assunto sobre o qual não tinha a menor experiência, fiz o que meu mestre mandou. Ato seguinte, Martins Campos lançou mão de um guardanapo de papel do restaurante e elaborou a primeira ata de fundação desta nova Sociedade com a subscrição dos quatro presentes. Ficou então combinado que no ano seguinte durante o transcorrer do Congresso Pan-Americano, em São Paulo, nós criaríamos oficialmente a Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica. Toccalino e Martins Campos se ocuparam de contatar os potenciais membros da futura Sociedade, convidando-os para a reunião de fundação oficial. Tínhamos praticamente um ano inteiro para desenvolver essa empreitada com êxito, era tempo suficiente. Eu fiquei encarregado de organizar a reunião, a qual se realizou na Escola Paulista de Medicina, no anfiteatro de Pediatria do Hospital São Paulo, em outubro de 1975 (Figura 4). Foram vinte e cinco colegas latino americanos que firmaram a constituição desta nova Sociedade; estava enfim, naquele dia, tornando-se realidade o tão almejado sonho de Toccalino.


Figura 4- Reunião da fundação oficial da Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição realizada em São Paulo, na Escola Paulista de Medicina, em outubro de 1975. Da esquerda para a direita Elza Guatavino (1º Secretária), Horácio Toccalino (Presidente eleito) e José Vicente Martins Campos (Secretário Geral eleito) constituindo a primeira diretoria da Sociedade.

Infelizmente, porém, naquela mesma ocasião ele tinha acabado de receber a notícia de que estava enfermo e o diagnóstico era de uma doença extremamente grave, ele sofria de um tipo muito raro de câncer, extremamente agressivo, incurável para os conhecimentos científicos daquela época e que teria uma evolução bastante rápida (Figura 5). Entretanto, em um ato de enorme bravura e autocontrole, para não prejudicar os andamentos da fundação da Sociedade, o que era para ele uma questão primordial, decidiu não contar a ninguém o seu padecimento e assim que terminou o Congresso, de São Paulo mesmo viajou diretamente para Nova Iorque, na tentativa desesperadora de encontrar alguma solução, ainda que paliativa fosse, para sua doença.

Figura 5- Festa de abertura do Congresso Pan-Americano de Pediatria realizado em São paulo, em outubro de 1975. Horácio Toccalino já enfermo viajaria dias depois para os EUA para tentar tratamento para sua enfermidade.
Desafortunadamente, porém, apesar do tratamento quimioterápico proposto e realizado, a cura era inviável, e o prognóstico emitido foi que inexoravelmente o câncer progrediria e ele não teria muito mais tempo de vida, provavelmente não mais que seis meses (na realidade ainda viveu três anos mais após o diagnóstico). Mas, apesar de todo este sofrimento e frustração quanto ao futuro próximo, ele não deixou se abater animicamente, ao contrário, o florescimento da nova Sociedade passou a ser o grande estímulo da sua existência daí em diante. Durante sua estada em Nova Iorque me escrevia cartas, nas quais vislumbrava o sucesso futuro da nossa Sociedade, mas, para que tal êxito fosse alcançado deveríamos seguir rigorosamente determinados postulados, e, a mim êle atribuía a responsabilidade de assim fazê-los cumprir.

Toccalino retornou dos Estados Unidos, recobrou suas forças, e continuou sua missão de fortalecer nossa Sociedade de forma obstinada, viajando freqüentemente enquanto sua saúde assim o permitiu, para consolidar a recém nascida Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição. Eu assumi com ele um compromisso irrevogável, continuar a luta de manter viva a chama que com tanto sacrifício foi por ele acesa e, mais ainda, fazer florescer nossa Sociedade, tornando-a reconhecida mundialmente. O destino foi extremamente generoso comigo, é verdade também que o esforço foi gigantesco, mas valeu a pena o desafio. Nossa Sociedade passou a se reunir regularmente a cada dois anos nos mais diversos países da América Latina desde a Argentina até o México, estive presente na quase totalidade das reuniões, em trinta anos somente me ausentei de duas delas, e fui presidente da mesma de 1996 a 1998. A Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição, em decorrência da sua importância conquistada como conseqüência do trabalho incessante de longo prazo desenvolvido pelos seus membros associados, tornou-se reconhecida pelas existentes congêneres internacionais, a saber: européia, norte-americana e asiática. Assim, finalmente, a partir deste reconhecimento foi criado o evento Congresso Mundial, congregando todas as sociedades internacionais, o qual, teve sua primeira edição em 2000, em Boston (Figuras 6 & 7),
Figura 6- Comissão organizadora do I Congresso Mundial reunida em Denver, em outubro de 1999. Da esquerda para a direita, Ron Sokol (EUA), Samy Cadranel (Bélgica), eu, Yushiro Yamashiro (Japão) e Harland Winter (EUA).
Figura 7- Parte da delegação da Disciplina de Gastropediatria da Escola Paulista de Medicina, UNIFESP, docentes, pós-graduandos e especializandos, presente ao I Congresso Mundial, em Boston, em agosto de 2000.
seguindo-se em 2004, em Paris, com o compromisso de ser realizado a cada quatro anos de forma rotativa, sucessivamente, em cada um dos continentes. O terceiro Congresso Mundial foi realizado em Foz do Iguaçu, em agosto de 2008, o qual eu tive a imensa alegria e honra de presidir. Revestiu-se de um extraordinário sucesso, com mais de 2500 participantes, vindos de 102 países, tendo sido apresentados 1025 trabalhos de pesquisa na área. Na sessão de abertura do Congresso Mundial, durante meu discurso, pude então, com muito orgulho e tomado de emoção, reverenciar publicamente a figura de Horácio Toccalino, por tudo aquilo que havia batalhado e realizado em pró do engrandecimento da nossa Sociedade. Martins Campos também foi merecidamente homenageado (Vide abaixo a transcrição do meu discurso de abertura do Congresso Mundial, Iguaçú 2008):
"August 17, 2008.

Speech: Opening Ceremony

Dear Colleagues and Friends – Ladies and Gentlemen

In this historical evening an old dream of the pioneer mentors and founders of the Latin American Society, Horácio Toccalino and Martins Campos, is becoming reality. At this moment I am quite sure that their spirits, wherever they may be, are here with us and will be guiding and illuminating all of us to make this the most successful World Congress ever.
I would like to thank my FISPGHAN colleagues for the uncondicional support that they have given to our team to organize this event. Along these last 6 years we have been working in a very friendly atmosphere in several face to face meetings in many different countries in almost all of the continents. Moreover, there have been 2 previous visits of FISPGHAN delegations to Iguassu to supervise and approve the venue of the World Congress.

I would also like to acknowledge my colleagues of the Host Executive Committee and the Scientitific Committee for their deep commitment to the organization of the event. Over these last 4 years we had several face to face meetings in our headquarters in São Paulo in may beloved Escola Paulista de Medicina / Universidade Federal de São Paulo and in many others countries always taking advantage of the presence of the majority of our members in scientific meetings in Latin America, North America and Europe.

A special mention to the sponsors from the pharmaceutical industry, particularly our diamond sponsors, for their financial contribution that has been of enormous importance to having make this event possible.

I would also like to express my gratitude to Mr. Julio Urban from Idealiza, our operational organizer, Mrs. Danielle Boukai from Blumar our official travel agency, and a very special acknowledgement to Drs. Carlos Garcia and Ulysses Fagundes for their tireless endeavor with an outstanding competence in the infrastructure organization of the World Congress.

My dearest delegates we are very pleased to welcome you and your families. Attendees came from approximately 100 countries around the world to participate in this meeting with more than 2,500 persons. We are very proud of these numbers. On the other hand we are quite aware about the difficulties you suffered to reach Igassu. I want to apologize for all the possible inconveniences you may have gone through along your way to get here. However, I do hope you will be rewarded by an outstanding scientific program, a very friendly atmosphere for social relationships, taking advantage of splendor panorama that nature of this region of Brazil offers to the visitor and also the numerous possibilities of a delightful time for leisure.

I would like to encourage delegates and their relatives to enjoy every single moment of the stay with us and return safely back home with unforgettable memories of having participated in a magnificent event.

Finally, I earnestly wish you enjoy the flavor of the Brazilian hospitality.

Thank you.

Ulysses Fagundes-Neto
President
Host Executive Committee
World Congress of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition 3"

Finalmente, meu compromisso de vida com meu mestre e amigo Horácio Toccalino havia sido cumprido. A partir daquele momento passei a me sentir em paz com a minha consciência, a missão estava concretizada!

O término da Especialização e o retorno ao Brasil

Em meados de outubro tive a grande alegria de receber a visita do Prof. Azarias Andrade de Carvalho, Chefe do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina. Ele fez questão de conhecer o Policlínico Alejandro Posadas e conversar com Dr. Toccalino a respeito do meu aproveitamento. Ficou muito bem impressionado com as instalações que conheceu e também ficou bastante satisfeito em ouvir do Dr. Toccalino que meu rendimento estava sendo ótimo, sendo que ele até mesmo recomendava minha contratação quando voltasse ao Brasil, para implantar o Serviço de Gastroenterologia Pediátrica. Prof. Azarias muito gentilmente deu-me a segurança que eu necessitava, assim que houvesse concurso para ingresso na carreira do magistério superior ele apoiaria minha candidatura. Desta forma pude respirar aliviado e seguir os últimos dias da minha especialização com maior tranqüilidade e assim escrevi em meu diário, em novembro de 1973: “Creio que esta será a última vez que escrevo, a verdade é que o tempo é inexorável e sempre caminha em um mesmo sentido, tudo que começa tem que ter um final. No meu caso parece que o final está chegando e o faz muito mais rapidamente do que eu poderia esperar. Já estou aqui há 10 meses e logo mais estarei de volta. O interessante, e ao mesmo tempo pode parecer uma incoerência, é que tudo se passou tão rapidamente que nem deu bem para sentir, mas, por outro lado, parece que estou aqui há muitos anos, ou melhor, que aqui sempre foi o lugar do meu trabalho; adaptei-me tão bem, sou muito bem tratado e respeitado que talvez seja essa a razão do meu sentimento... Nunca poderei esquecer-me de todos estes médicos que constituem o serviço da gastropediatria (Figuras 8-9 & 10)...

Figura 8- Almoço da minha despedida do Policlínico Alejandro Posadas, em dezembro de 1973, com a participação da equipe de médicos da Gastropediatria.
Figura 9- Enfermeira Anita, responsável pelos cuidados dos pacientes durante os procedimentos de investigação clínica, e eu em frente a entrada principal do Policlínico Alejandro Posadas.


Figura 10- Festa da minha despedida do Policlínico Alejandro Posadas realizada na casa da enfermeira Anita, em dezembro de 1973.
Por fim, o grande chefe do circo todo, o comandante genial, o cérebro de toda a coisa, o homem prático e matemático, o conselheiro de todas as horas, o amigo irrestrito. Este homem, Horácio Toccalino, eu não poderei nunca deixar de lembrar a cada momento da minha existência como médico e cidadão. Para que se tenha idéia, um dia quando me queixava de que no Brasil não havia possibilidades de se montar um serviço como o dele, ele me disse: Lá não é nada diferente daqui, e o que é necessário é trabalhar, trabalhar, trabalhar e acima de tudo formar uma equipe coesa.

Pensei muito a respeito dessas palavras e depois de algum tempo cheguei à conclusão que tudo é possível de se realizar basta haver determinação para tal. EU VOU FAZER O QUE ELE PREGA.”

Dito e feito retornei ao Brasil, houve concurso para ingresso no magistério superior, fui aprovado, iniciei a carreira docente e juntamente com Prof. Jamal Wehba, montamos o Setor de Gastropediatria. Trabalhamos ombro a ombro durante bons anos, começamos a receber especializandos da nossa instituição e de outros serviços. Em pouco tempo mais começamos a produzir conhecimento, nos transformamos em Disciplina do Departamento de Pediatria, abrimos programas para a Pós-Graduação sentido restrito, Mestrado e Doutorado. A Disciplina cresceu, novos docentes foram incorporados, passamos a receber especializandos de todo o país e mesmo de outros países da América Latina (Figuras 11 & 12).
Figura 11- Cena de uma reunião clínica da Disciplina de Gastropediatria, no início dos anos 1990. Da esquerda para a direita Profa. Elisabete Kawakami, Prof. Jamal Wehba e Prof. Mauro Batista de Morais.


Figura 12- Parte da delegação da Disciplina de Gastropediatria, docentes, pós-graduandos e especializandos, presentes no V Congresso da Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia e Nutrição realizado em Buenos Aires, em 1984.
Enfim, nossa missão está sendo cumprida e nossa Disciplina é atualmente reconhecida pela sua excelência nacional e internacionalmente. Seguimos com sucesso o lema de Horácio Toccalino!
Aqui termino a narrativa da minha experiência em Buenos Aires e no nosso próximo encontro retomaremos a discutir os aspectos das principais enfermidades do trato digestivo que afetam nossas crianças. Iniciarei as discussões sobre Doença Celíaca, até pouco tempo considerada uma enfermidade rara entre nós, mas após o advento dos marcadores sorológicos ganhou a conotação de um importante problema de saúde pública universal.