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segunda-feira, 12 de julho de 2021

Má Absorção à frutose utilizando-se o teste do Hidrogênio no ar expirado

 Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista JPGN de janeiro de 2021, publicou um importante artigo de autoria de Allende, F. e cols., intitulado “Fructose Malabsorption in Chilean Children Undergoing Fructose Breath Test at a Tertiary Hospital” que a seguir passo a abordar em seus aspectos de maior relevância.

Introdução

A frutose é uma hexose que pode ser ingerida individualmente como o próprio monossacarídeo, formando parte da molécula da sacarose, ou mesmo com outros carboidratos. As principais fontes naturais da frutose estão presentes nas frutas, vegetais e no mel, porém, a frutose encontra-se em quantidade abundante nos carboidratos produzidos artificialmente, tais como, xarope de milho e nos alimentos dietéticos.

Estima-se que até 50% da população adulta seja incapaz de absorver uma sobrecarga de frutose acima de 25g por dia, a qual é digna de nota, considerando-se que o consumo médio da frutose pode alcançar 50g por dia ou até mesmo valores mais elevados. Investigações acerca da frequência da má absorção à frutose e seus sintomas associados em crianças são escassos. Um estudo realizado por Escobar e colaboradores, detectou que 54% das crianças que sofriam de dor abdominal, sem qualquer outra explicação, apresentaram teste do Hidrogênio positivo para má absorção à frutose. Vale ressaltar que 77% destas crianças demonstraram alívio dos sintomas com a utilização de uma dieta com baixos teores de frutose.

O objetivo primário deste estudo foi descrever a frequência da má absorção à frutose em pacientes abaixo de 18 anos de idade, e, em segundo lugar associar as características demográficas e clínicas com os resultados e a presença de sintomas.

Métodos

Desenho do Estudo

Trata-se de um estudo retrospectivo observacional de revisão do teste do Hidrogênio no ar expirado em crianças abaixo de 18 anos de idade, realizado em uma clínica de Santiago, Chile.

Teste do Hidrogênio no ar Expirado

Todos os testes foram realizados levando-se em consideração o mesmo protocolo, seguindo as clássicas  instruções internacionalmente validadas. O período de jejum foi requerido de acordo com a idade das crianças, a saber: 4 horas para as menores de 2 anos, 6 horas para as de 2-5 anos e 12 horas para as mais velhas. O teste foi realizado utilizando-se o equipamento QuinTronSCMicroLyzer (QT00130-M Milwaukee, WI). Uma amostra basal foi obtida, e então, foi feita a administração de uma solução de frutose à dose de 1g/kg de peso, até o valor máximo de 25g, dissolvida em 250ml de água, administrada oralmente ao paciente. Subsequentemente, amostras de ar expirado foram obtidas a cada 30 minutos, durante 180 minutos.        

Os níveis das curvas de Hidrogênio foram interpretados seguindo o consenso internacional, considerando má absorção à frutose no caso da ocorrência de uma elevação de pelo menos 20ppm do nível do Hidrogênio no ar expirado em relação ao valor basal.

Resultados

Foram realizados 273 testes correspondendo a 272 pacientes, 53,3% deles eram do sexo feminino. A idade mediana foi 7 anos, as meninas eram mais velhas que os meninos, 7 anos versus 6 anos, respectivamente. 

Frequência de má absorção à frutose

Cento e oitenta e três testes (67%) mostraram-se compatíveis com má absorção à frutose. A mediana do nível basal de Hidrogênio foi 6ppm e naqueles pacientes cuja curva mostrou-se alterada, a mediana do pico do nível de Hidrogênio foi 44ppm (variação 40-88ppm) (Figura 1). 



Relação entre dados demográficos e resultados do teste

Não houve diferença significativa no resultado do teste levando-se em consideração o sexo das crianças. Os pacientes que apresentaram má absorção à frutose apresentavam mediana de 5 anos idade (variação 4-8 anos) versus 8 anos (variação 6-13 anos) naqueles que apresentaram teste normal (p<0,001). Quando os pacientes foram classificados de acordo com a idade, os <6 anos versus ≥6 anos, 81,6% dentre os menores de 6 anos, apresentaram má absorção à frutose em comparação a 57,2% daqueles ≥6 anos (p<0,001). 

Relação entre os sintomas intra-teste e os resultados dos testes 

Neste grupo estudado 269 pacientes (98,9%) apresentaram pelo menos 1 dos sintomas pesquisados, a saber: flatulência (83,85%), dor abdominal (73,9%), diarreia (43,8%), ou náusea  (11,8%). A relação entre os sintomas clínicos e os resultados   do teste está descrita na Tabela 1, salientando-se que a frequência de náusea mostrou-se ser significantemente menor nos pacientes com má absorção à frutose em comparação com aqueles que apresentaram teste normal 7,1% versus 20,2%, respectivamente (p=0,003).

Considerando-se os sintomas apresentados durante a realização dos testes, no total, 31,6% dos pacientes apresentaram pelo menos um sintoma, a saber: dor abdominal (20,9%), flatulência (13,9%), náusea (4,4%) e diarreia (1,8%). Vale salientar que apenas os pacientes que apresentaram má absorção à frutose sofreram diarreia durante a realização dos testes  (5 pacientes).

Discussão

No presente trabalho foi encontrada uma alta frequência de má absorção à frutose, nesta amostragem, com pacientes pediátricos sintomáticos (67%). Pacientes menores de 6 anos (81,3%) e aqueles que não apresentaram náuseas, foram os que demonstraram maior probabilidade para teste positivo. A má absorção à frutose deve ser considerada na investigação de crianças com dor abdominal, flatulência e/ou diarreia crônica, especialmente naquelas menores de 6 anos de idade.

Meus Comentários

A má absorção à frutose e sua consequente intolerância que pode se manifestar com flatulência, distensão abdominal e diarreia, trata-se de uma entidade clínica raramente descrita  em passado recente, e que tem sido cada vez mais frequentemente observada em crianças e adultos. Este fato passou a ocorrer devido à sua inclusão como edulcorante nos mais diversos produtos industrializados, como alternativa à sacarose, visto que sua produção se tornou mais barata que a da sacarose. A frutose, por ser o carboidrato de sabor mais doce dentre todos os outros carboidratos, tem sido frequentemente adicionada aos sucos de frutas artificialmente industrializados, confeitos e guloseimas.

A frutose, quando presente no lúmen do intestino delgado, é transportada através do epitélio intestinal por um mecanismo de transporte facilitador denominado GLUT5, o qual apresenta uma alta afinidade pela frutose para carregar este monossacarídeo através da membrana apical do enterócito. Vale enfatizar que este mecanismo apresenta um fator limitante na sua capacidade absortiva. Por outro lado, a frutose também pode ser absorvida de forma eficiente quando está presente em concentração equimolar com a glicose, como ocorre na composição da sacarose, por um mecanismo denominado draga do solvente, através das junções firmes dos enterócitos. Entretanto, quando a concentração de frutose, em determinados alimentos, encontra-se presente em excesso de glicose, como por exemplo, condição frequentemente observada no mel, sucos como de maçã, pera e uva, entre outros alimentos, isto pode provocar má absorção e/ou intolerância à frutose em certos indivíduos. Em 2013, nós tivemos a oportunidade de descrever pela primeira vez no nosso meio a má absorção à frutose utilizando o teste do Hidrogênio no ar expirado em um grupo de crianças portadoras de transtornos digestivos funcionais, a saber “Fructose malabsorption in children with functional digestive disorders” (Lozinsky A, Boé C, Palmro R and Fagundes-Neto U - Arquivos de Gastroenterologia 2013; 50:226-230). Desde esta data tenho observado com elevada frequência, conforme pode-se constatar nas figuras abaixo (Figuras 2-3), em crianças e adultos, manifestações de intolerância à frutose. Entretanto, é importante enfatizar que a intolerância à frutose é situação clínica que não traz consequências nefastas aos pacientes, ademais de afetar a qualidade de vida do paciente.

 


Figura 2- Paciente intolerante à frutose 60 minutos após ingerir solução aquosa de frutose durante a realização do teste do Hidrogênio no ar expirado.



Figuras 3- Menina intolerante à frutose antes e após a introdução de uma dieta com baixo teor de frutose.

A partir da obtenção da história clínica basta confirmar a suspeita diagnóstica por meio do Teste do Hidrogênio no ar expirado, e, isto posto, recomendar a diminuição do teor da frutose na dieta do paciente, pois, uma vez eliminada a causa o efeito indesejado desaparecerá.         

Referências Bibliográficas

1-  Aliiende, F e cols. JPGN 2021;72:e1-e3).

2-  Escobar MA Jr e cols. JPGN 2014;58:498-501.

3-  Wilder-Smith CH e cols. Gastroenterol 2018;155:1034.e6-44.

4-  Wilder-Smith CH e cols. Aliment Pharmacol Ther 2017;45:1094-106.

 

 

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Síndrome do Intestino Irritável (SII) com predominância de Diarreia: protocolo de avaliação clínica e laboratorial



Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

Introdução

A revista Gastroenterology em seu exemplar de setembro de 2019, publicou as recomendações oficiais da American Gastroenterology Association (AGA) a respeito de um protocolo de avaliação laboratorial da diarreia funcional e da Síndrome do Intestino Irritável (SII-D) com predominância de diarreia. O foco deste protocolo tem por objetivo auxiliar os clínicos na escolha mais apropriada dos testes laboratoriais com o propósito de excluir outras hipóteses diagnósticas quando a suspeita principal, trata-se de diarreia funcional ou a SII-D. Estas orientações se aplicam na avaliação de pacientes imunologicamente competentes portadores de diarreia aquosa com pelo menos quatro semanas de duração. Estas orientações, portanto, visam excluir aqueles pacientes que apresentam diarreia sanguinolenta, diarreia com sinais de má absorção de gorduras, manifestações clínicas com sinais de alarme, tais como, parada do ritmo do crescimento, perda de peso, anemia e hipoalbuminemia, aqueles pacientes com história familiar de doença inflamatória intestinal, doença celíaca e aqueles que tenham viajado para regiões especificamente reconhecidas pela elevada prevalência de microrganismos enteropatogênicos (Tabelas 1 e 2).




Recomendações 

1-   Calprotectina e Lactoferrina fecal: esses testes têm sido propostos como marcadores para condições inflamatórias, tais como Doença Inflamatória Intestinal (DII). Inúmeros estudos têm utilizado a calprotectina fecal com diferentes limiares de valores normais para identificar pacientes com DII. Baseando-se em uma revisão dos dados disponíveis, tudo indica que o uso da calprotectina fecal com um limiar de 50ug/g oferece o melhor desempenho. Dentre os estudos que utilizam esse limiar, o conjunto da sensibilidade para DII foi de 0,81 e o conjunto da especificidade foi de 0,87. O risco de viés e a imprecisão estatística influenciaram a decisão para considerar o uso da calprotectina fecal como uma evidência de baixa qualidade, ou seja, a confiança desta estimativa é limitada. Em outras palavras, o verdadeiro efeito pode ser substancialmente diferente do que a eficácia estimada.
Da mesma maneira, a lactoferrina fecal tem sido estudada como um marcador para DII. Utilizando-se os dados dos estudos disponíveis, levando-se em consideração os limiares dos valores normais entre 4,0 a 7,25ug/g o conjunto da sensibilidade para DII foi 0,79 e o conjunto da especificidade 0,93. O risco de viés, a significativa heterogeneidade, e a imprecisão estatística influenciaram a determinação da decisão para considerar o uso da lactoferrina fecal como uma evidência de baixa qualidade, ou seja, a confiança desta estimativa é limitada. Em outras palavras, o verdadeiro efeito pode ser substancialmente diferente do que a eficácia estimada.

A baixa qualidade das evidências para apoiar o uso destes testes é composta pela pequena probabilidade de que um teste positivo deveria indicar o início de uma avaliação confirmatória posterior, levando a um diagnóstico mais precoce de DII, comparado aos 10% de probabilidade de que indivíduos não portadores de DII, poderiam ser desnecessariamente expostos a testes confirmatórios mais detalhados.  

2-   Hemossedimentação e/ou Proteína C Reativa: nos pacientes portadores de diarreia crônica a AGA se manifesta contra o uso desses marcadores como rastreadores para DII. Ambos os testes têm sido avaliados em populações com diarreia para identificar pacientes com DII. Nos estudos utilizando-se o valor de 5-6mg/l como limiar para o nível da PCR, o conjunto da sensibilidade foi de 0,73 e o conjunto da especificidade foi de 0,78. Estudos similares utilizando o limiar de valores de 10-15mm/h para hemossedimentação resultaram em estimativas baixas para a acurácia diagnóstica da DII. Entretanto, naquelas situações em que os testes fecais de lactoferrina ou calprotectina, não se encontraram disponíveis, o uso da PCR deve ser considerado, por ser uma opção razoável para o rastreamento da DII. 

3-   Teste para Giardia: de uma maneira geral a infestação por Giardia é uma causa frequente de diarreia aquosa que pode ser prontamente tratada. Teste diagnósticos modernos para Giardia apresentam características de bom desempenho, sendo que vários estudos têm demonstrado sensibilidade e especificidade acima de 95%. Os testes melhor avaliados utilizam tanto a detecção dos antígenos da Giardia como a reação da polimerase em cadeia. Considerando-se que os tratamentos para Giardia são extremamente eficazes esses testes devem ser utilizados para a avaliação da diarreia crônica líquida.

4-   Pesquisa de parasitas nas fezes: naqueles pacientes que apresentam diarreia crônica e que não referem viagens recentes ou imigração para áreas de alto risco, a AGA sugere que não se faça estudo parasitológico fecal.

5-   Teste para Doença Celíaca: aqueles pacientes que apresentam diarreia crônica, a AGA recomenda fortemente que se realizem testes para pesquisa de Doença Celíaca (DC) por meio do anticorpo antitransglutaminase IgA. A DC é uma importante causa de diarreia crônica e também de outras manifestações clínicas. Naqueles pacientes que apresentam diarreia crônica e que não sofrem de deficiência de IgA, a determinação do anticorpo antitransglutaminase IgA, representa uma estratégia altamente eficiente na determinação da existência da DC. Entretanto, apesar da alta especificidade deste teste, acima de 90%, a realização da biópsia duodenal para confirmar a DC faz-se necessária. É importante enfatizar, que a prescrição de uma dieta isenta de glúten só deve ser proposta após a confirmação da DC por meio da biópsia duodenal.  

Resumo     

Estas recomendações práticas para avaliação da diarreia funcional e da SII-D com intuito de excluir outros diagnósticos, foram propostos para reduzir as diversidades de conduta na prática clínica, e, ao mesmo tempo, promover cuidados de alta qualidade neste grupamento populacional. As presentes evidências apoiam o emprego da calprotectina fecal e da lactoferrina fecal, a pesquisa fecal de Giardia nos pacientes que apresentam diarreia crônica. O painel se mostra contrário ao uso de testes sanguíneos como o PCR e a hemossedimentação para rastrear a DII. Nossa evidência recomenda fortemente a pesquisa da DC por meio do anticorpo antitransglutaminase IgA. Uma ferramenta para apoiar a decisão clínica está incluída na figura abaixo para guiar a avaliação dos pacientes com diarreia liquida crônica (Figura 1 e Tabela 3).


  

Meus comentários
      
A SII trata-se de um transtorno digestivo funcional, e, segundo os critérios de Roma IV, pode se manifestar clinicamente por 3 formas distintas, a saber: diarreia, constipação e mista (diarreia alternada com constipação). Tendo em vista a inexistência de qualquer teste laboratorial que possibilite estabelecer o diagnóstico de certeza, este diagnóstico acaba sendo estabelecido por exclusão.

Historicamente a primeira descrição da SII-D foi feita por Murray Davidson, na década de 1960, nos Estados Unidos, sob a denominação de Diarreia Crônica Inespecífica. Posteriormente, esta entidade clínica foi confirmada por Horácio Toccalino, na década de 1970, na Argentina, sob a denominação de Diarreia Fermentativa. No nosso meio tive a primazia de descrever a SII-D, na década de 1980 (Fagundes Neto U e cols – Síndrome do colon irritável e diarreia na infância: diagnóstico e evolução - Jornal de Pediatria 58;366-70,1985), avaliando um grupo de crianças portadoras de diarreia crônica, cuja investigação laboratorial revelou-se normal para os testes de avaliação da função digestivo-absortiva disponíveis à época. Um dado clínico que despertou a atenção foi o fato de os pacientes não apresentarem qualquer agravo do estado nutricional para peso e estatura, a despeito da queixa de diarreia crônica, informações que analisadas em conjunto excluíam anormalidades nos processos digestivo-absortivos.

Como é do conhecimento geral a diarreia crônica apresenta um amplo espectro de diagnóstico diferencial envolvendo inúmeras enfermidades que são devidas a lesões orgânicas, a saber: infecções, doença celíaca, intolerância à lactose, intolerância à frutose, doença inflamatória intestinal, síndrome do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado (sigla em inglês SIBO – small intestinal bacterial overgrowth) (Figura 2), colite microscópica entre outras. Levando-se em consideração que estas enfermidades orgânicas em algumas circunstâncias podem apresentar manifestações clínicas que venham se sobrepor à SII-D, torna-se crucial a realização de uma abordagem clínico-laboratorial para que elas possam ser descartadas, e, desta forma, permitir, por exclusão, selar o diagnóstico da SII-D com ampla margem de segurança.


Figura 2- Teste de sobrecarga com lactulose evidenciando pico precoce de elevação do Hidrogênio no ar expirado, o que caracteriza a SIBO.

Vale a pena ressaltar que além dos testes diagnósticos referidos no presente artigo do protocolo da AGA, saliento a necessidade de serem realizados também outros testes de investigação não invasivos. Neste sentido refiro-me aos testes do Hidrogênio no ar expirado com sobrecargas de lactose, frutose e lactulose (investigação de SIBO). A título de informação, em 2013 publicamos na revista Arquivos de Gastroenterologia 50;226-30 o artigo intitulado ”Fructose malabsorption in children with functional digestive disorders” cujos autores são: Lozinsky AC, Boé C, Palmero R e Fagundes-Neto U. Foram estudados 43 pacientes, de forma consecutiva, de ambos os sexos com idades que variaram de 3 meses a 16 anos, mediana 2,6 anos, que apresentavam queixa de transtornos gastrointestinais e/ou nutricionais. Deste grupo, 16 pacientes foram diagnosticados portadores da SII-D, e o teste do Hidrogênio no ar expirado com sobrecarga de frutose mostrou-se alterado em 7 (22,8%) deles (Figuras 3-4 e 5).   


Figura 5- Menina portadora de intolerância à frutose com distensão abdominal após ingestão de grande quantidade de frutose e em condições normais.

Recentemente, 2 biomarcadores tornaram-se potencialmente viáveis, e, ao que tudo indica, poderão vir a ser de utilidade para confirmar o diagnóstico da SII-D, a saber: um anticorpo contra uma neurotoxina (CdtB) produzida por diversas bactérias enteropatogênicas, que interage com a proteína vinculina na mucosa intestinal, mecanismo que é postulado para a lesão do trato gastrointestinal causado pela infecção entérica aguda, o que poderia identificar um grupo de pacientes que apresenta a SII-D pós-infecciosa. Estudos realizados para avaliar o desempenho dos anticorpos anti-neurotoxina e anti-vinculina em pacientes portadores da SII-D mostraram-se significativamente mais elevados do que os verificados em controles sadios, mas não se diferenciaram de pacientes com doença celíaca. Tudo indica que a especificidade destes anticorpos seja razoavelmente boa, com elevado valor preditivo positivo, entretanto, por outro lado, a sensibilidade foi baixa, menor que 50%. Portanto, quando o teste for positivo aumenta a probabilidade de confiança para o diagnóstico da SII-D. Por outro lado, o teste negativo não permite a possibilidade de descartar o diagnóstico da SII-D. Vale ressaltar que estes testes ainda se encontram em fase de experimentação, e, portanto, ainda não se encontram disponíveis para a serem utilizados na prática clínica diária.

Em conclusão, devido a inexistência, até o presente momento, da disponibilidade de biomarcadores que permitam estabelecer o diagnóstico de certeza da SII-D, na ausência de sinais clínicos de alarme, o diagnóstico da SII-D continua sendo de exclusão.
     
Referências Bibliográficas

1-          Smalley W. e cols. - Gastroenterology 2019; 157:851-54.
2-          Carrasco-Labra A. e cols. – Gastroenterology 2019; 157:859-80.



terça-feira, 5 de setembro de 2017

Frutanos e sua real importância para o trato digestivo: Bem-Estar e Intolerância (parte 3)

Diagnóstico da Intolerância aos Frutanos utilizando o teste do Hidrogênio no ar expirado com sobrecarga de Inulina

No passado, acreditava-se que o pulmão fosse um órgão apenas responsável pela respiração e, portanto, tinha-se o conceito de que somente Oxigênio (O2) e Dióxido de Carbono (CO2) pudessem ser dosados no ar expirado. Atualmente, porém, sabe-se que o ar expirado dos pulmões contém mais de 2000 substâncias distintas, e que, além da respiração, os pulmões apresentam uma função adicional, qual seja a excreção de substâncias voláteis, o que tornou os pulmões reconhecidamente como “órgãos excretores” de gases que se encontram dissolvidos no sangue. Uma destas inúmeras substâncias voláteis excretadas pelos pulmões é o Hidrogênio (H2), o qual pode ser facilmente medido com a utilização de um equipamento manual de teste respiratório (Figura 8).

Figura 8- Referência Ledochowiski M. 
Journal of Breath Research 2: 1-9, 2008.

O ser humano sadio em jejum e em repouso não elimina H2 porque o seu metabolismo não produz este gás, o qual somente é gerado durante o metabolismo anaeróbio. Considerando que o organismo humano em repouso não possui metabolismo anaeróbio, o H2 produzido e excretado pelos pulmões tem origem pela ação das bactérias anaeróbias, as quais são habitantes naturais do intestino grosso, sobre um substrato não digerido pelo organismo humano. Como se sabe, o trato digestivo alberga um número elevado de bactérias, que são predominantemente anaeróbias e que produzem grandes quantidades de H2. De fato, a concentração de bactérias, em especial as anaeróbias, alcança no íleo terminal e no intestino grosso valores de até 1015 colônias/ml. Por outro lado, no duodeno e nas porções superiores do jejuno, praticamente não ocorre colonização por bactérias anaeróbias, pois nestas porções do trato digestivo são encontradas apenas bactérias aeróbias, consideradas residentes das vias aéreas superiores e resistentes à barreira bactericida ácida gástrica, na concentração de até 104 colônias/ml. Portanto, pode-se assumir, com boa margem de segurança, que o H2 eliminado pelos pulmões dos seres humanos em repouso, durante a expiração, é produzido, quase que exclusivamente, pelo metabolismo bacteriano dos anaeróbios que colonizam o íleo e o intestino grosso. Desta forma, pode-se afirmar que, em condições normais, o H2 mensurado no ar expirado diz respeito à quantidade da atividade metabólica das bactérias anaeróbias presentes no trato digestivo, em particular, no íleo e no intestino grosso. As bactérias anaeróbias têm a capacidade de metabolizar os carboidratos como fonte de energia para sua nutrição, os quais, em virtude desta reação química de fermentação, são “quebrados” dando a formação de ácidos graxos de cadeia pequenaCO2 e H2 (Figura 9).

Figura 9- Referência Eisenmann & cols. 
Journal of Breath Research 2: 1-9, 2008.

Uma significativa parcela do CO2 que permanece na luz do intestino é responsável pela sensação de flatulência, enquanto que os ácidos graxos de cadeia pequena exercem efeito osmótico atraindo água para o interior do lúmen intestinal, causando diarreia. O H2 produzido no intestino atravessa a parede intestinal é incorporado na circulação sanguínea sistêmica, é transportado até os pulmões e, finalmente, é eliminado pela respiração como parte do ar expirado. A concentração de H2 expirada pode, portanto, ser facilmente mensurada em partes por milhão (ppm) por técnica não invasiva, por um equipamento de uso manual. A concentração do H2 mensurado na expiração é sempre um reflexo da massa de bactérias e da atividade metabólica bacteriana no trato digestivo. O momento no qual a concentração de H2 no ar expirado se eleva durante a realização do teste respiratório fornece uma indicação em qual região do intestino se deu a fermentação.

Normas para a realização do teste do H2 no ar expirado

Cada teste deve sempre ser iniciado com a obtenção da amostra de jejum para a mensuração do H2 no ar expirado. Vale ressaltar que o paciente deve estar em jejum pelo período de ao menos 4 horas. Após a mensuração do valor basal de jejum, o qual deve na imensa maioria dos casos ser inferior a 5 partes por milhão (ppm), o teste respiratório pode começar. O paciente deve ingerir o conteúdo de uma solução aquosa diluída a 10% contendo 25 gramas de Inulina. Após a obtenção da amostra de jejum devem ser obtidas amostras de ar expirado sequencialmente aos 30, 60, 90, 120, 150 e 180 minutos após a ingestão da solução aquosa de Inulina.

Interpretação do Teste do H2 no ar expirado

A interpretação do resultado do teste do H2 no ar expirado baseia-se em 2 fatores fundamentais, a saber: 1- a concentração em ppm do Hidrogênio no ar expirado e/ou 2- o aparecimento de sintomas após a realização do teste de sobrecarga.

1- Teste Normal: No caso de haver suficiência digestivo-absortiva, não deverá ocorrer aumento significativo da concentração de H2 no ar expirado (elevação inferior a 10 ppm sobre o nível de jejum) e nem tampouco referência a manifestações clínicas. Desta forma o teste deve ser considerado Normal (Figura 10).

Figura 10- Referência Eisenmann A. & cols. 
Journal of Breath Research 2: 1-9, 2008.

2- Teste Anormal: Uma elevação da concentração de H2 acima de 20 ppm sobre o nível de jejum a partir dos 60 minutos depois da ingestão da Inulina é considerado um teste anormal (Figura 11) e caso concomitantemente surjam sintomas, caracteriza o diagnóstico de “intolerância”.


Figura 11- Referência Eisenmann A. & cols. 
Journal of Breath Research 2: 1-9, 2008.

Tratamento da Intolerância aos Frutanos

O tratamento da intolerância aos Frutanos é essencialmente dietético. Visa, acima de tudo, provocar alívio significativo dos sintomas digestivos que afligem o paciente, os quais afetam de forma decisiva sua qualidade de vida. Deve-se em um primeiro momento, em torno de 3 semanas aproximadamente, seguir uma dieta restrita dos FODMAPS, para que haja tempo suficiente de se obter uma observação clínica confiável quanto ao sucesso da terapêutica dietética proposta (vide Tabela 1). No caso de o paciente sentir um real alívio dos sintomas digestivos, durante este período de tratamento radical, é recomendável fazer-se a reintrodução gradativa dos alimentos contendo FODMAPS para avaliar qual o grau de tolerabilidade de cada paciente para os alimentos contendo os Frutanos mais frequentemente utilizados, pois, é necessário ter em mente que este limiar de tolerância é extremamente variável entre os diferentes pacientes. Além disso, a importância da reintrodução dos alimentos, ainda que de forma mais reduzida, faz-se necessária para evitar um possível agravo nutricional ocasionado por uma restrição dietética prolongada.  

terça-feira, 16 de maio de 2017

Intolerância à Lactose: História, Genética, Prática Clínica, Diagnóstico e Tratamento (Parte 4)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo
(I-Gastroped)

Má Absorção x Intolerância

Teste do H2 no ar expirado com sobrecarga oral de lactose

Atualmente este teste é considerado padrão ouro por ser sensível e especifico, de fácil execução e não invasivo.

Cerca de 20% do H2 formado durante a fermentação bacteriana no cólon é absorvido e eliminado pelos pulmões, podendo, portanto, ser medido por cromatografia gasosa.

Figura 45- Teste do Hidrogênio no ar expirado: princípios teóricos do teste.

Este teste baseia-se nos seguintes princípios da fisiologia da digestão e absorção dos carboidratos da dieta:

1º) O Hidrogênio não é produzido ou metabolizado pelos seres humanos sadios em jejum e em repouso.

2º) A fermentação bacteriana é a única fonte de produção de Hidrogênio no ser humano. A microbiota do cólon, em especial as bactérias anaeróbias, é capaz de produzir Hidrogênio pela fermentação dos carboidratos não absorvidos. O Hidrogênio é excretado por meio de flatos e/ou por difusão, atravessa a mucosa intestinal, alcança a circulação sanguínea, chega aos pulmões aonde é eliminado durante a respiração.

3º) Portanto, a excreção pulmonar de Hidrogênio reflete sua produção no cólon, e sua concentração   pode ser mensurada no ar expirado, em partes por milhão (ppm).


Figura 46- Princípio prático do teste do Hidrogênio no ar expirado.

O paciente deve estar em jejum de 6-8 horas. Inicialmente coleta-se uma amostra de ar expirado em jejum para dosagem basal de H2.

A seguir o paciente deve ingerir uma solução aquosa de Lactose a 10%, à dose de 2 gramas/kg de peso (máximo 25 gramas). Amostras de ar expirado devem ser obtidas aos 15, 30, 45, 60, 90 e 120 minutos após ingestão da solução aquosa.


A elevação dos níveis de H2 no ar expirado acima de 20 ppm sobre o nível do jejum, indica má digestão e/ou absorção da Lactose.

Podem ocorrer falsos positivos e falsos negativos (até 20%) por hiperventilação, retardo no esvaziamento gástrico, colonização bacteriana do intestino delgado, alteração da flora intestinal, alterações da motilidade intestinal e não produção de H2.


Sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado

Pode ocorrer duplo pico de produção de Hidrogênio, a saber: a) precoce, devido a presença da flora colônica nas porções altas do intestino; b) tardio, devido à má absorção de Lactose.



Tratamento

O tratamento da intolerância/má absorção de Lactose baseia-se simplesmente na exclusão da causa, ou seja,  eliminação da Lactose da dieta.

Existem também outras propostas terapêuticas com ofertas diminuídas na concentração de Lactose que podem ser bem toleradas pelos pacientes que não apresentam ausência total da Lactase, a saber: fermentação da Lactose (iogurtes), adição de Lactase aos alimentos contendo Lactose, utilização de fórmulas lácteas com baixo teor de Lactose, Fórmulas à base de soja, que são isentas de Lactose, e fórmulas à base de Hidrolisados Proteicos, quando há associação com Alergia à Proteína do Leite de Vaca.

O tratamento só deve ser iniciado na presença de sintomas comprovados de intolerância à Lactose. Deve ser ressaltado que, devido à variabilidade individual da intolerância à Lactose, é de fundamental importância personalizar a orientação nutricional. O consumo de Lactose deve ser reduzido a uma quantidade que não proporcione o aparecimento de sintomas. Há evidência disponível de que muitos adultos e adolescentes com diagnóstico comprovado de má absorção à Lactose podem chegar a tolerar a ingestão de até cerca de 12g de Lactose (equivalente a 1 xícara de leite de vaca = 250ml), sem que esta carga de Lactose cause sintomas.

Pequenas quantidades de Lactose consumidas diversas vezes ao longo do dia são melhor toleradas do que se consumidas em uma única refeição. Alimentos contendo Lactose são melhor tolerados se consumidos juntamente com outros alimentos; tal fato pode ser atribuído ao retardo no esvaziamento gástrico. Outras modificações dietéticas que colaboram para a redução dos sintomas de intolerância à Lactose incluem consumir alimentos com baixo teor deste carboidrato, tais como iogurte e produtos lácteos tratados com Lactobacillus.

O iogurte é uma excelente alternativa visto que a Lactose nele contida encontra-se em concentração reduzida pela metade. Além disso, deve-se levar em conta que o iogurte também contém proteínas e gorduras na sua composição. Diferentemente do que ocorre na solução aquosa de Lactose, a presença destes outros nutrientes leva ao retardamento do esvaziamento gástrico, ao aumento do tempo de trânsito intestinal e, portanto, a uma menor oferta da concentração de Lactose por área de superfície dos enterócitos na unidade de tempo.

Caso seja necessária a utilização de uma dieta de exclusão total de Lactose, devido à uma incapacidade de digerir uma concentração minimamente ideal deste carboidrato, a mesma deve incluir um boa fonte de Cálcio, ou então, iniciar a suplementação de Cálcio, para atender os níveis de ingestão diários recomendados para este micronutriente.

Sempre que possível, produtos lácteos não devem ser totalmente eliminados da dieta, pois fornecem micronutrientes essenciais, tais como: Cálcio, vitaminas A e D, riboflavina e fósforo.


Figura 47- Tabela da concentração da Lactose em diversos tipos de leite em comparação com o leite humano.


Figura 48- Concentração da Lactose em diversos tipos de queijo e no iogurte.

Conclusões

Deve ser enfatizado que não existe um tratamento para aumentar a capacidade de produção da Lactase, porém, os sintomas de intolerância à Lactose podem ser minimizados, ou mesmo eliminados, ao se utilizar uma dieta com teor reduzido deste carboidrato, dentro do limiar de tolerância de cada indivíduo.

É importante assinalar que toda dieta deve ser devidamente apropriada para suprir as necessidades nutricionais de um determinado indivíduo e garantir a manutenção de um estado nutricional global adequado.


PESQUISA CLÍNICA

Genética da Produção ou Restrição da Lactase

No heredrograma abaixo foram estudados 2 grupos étnicos distintos na África comparados com indivíduos europeus, a saber: a) Yoruba reconhecidamente mal absorvedores da Lactose; b) um grupo misto composto por indivíduos da etnia Yoruba miscigenada com indivíduos de origem europeia Yoruba-Europeus, dos quais 44% eram mal absorvedores europeus da Lactose; c) um grupo de indivíduos Europeus dos quais 22% eram mal absorvedores da Lactose

Y= Yoruba LAC*R (Má Absorção de Lactose)
BR= Europeu (LAC*P/LAC*R)
Y-Br= Yoruba-Europeu LAC*R e LAC*P/LAC*R


Este estudo realizado na África demostrou que quando ambos os progenitores eram Mal Absorvedores toda a progênie resultou Mal Absorvedora de Lactose.

Entretanto, quando o correu a miscigenação entre o grupo 100% LAC*R (Yoruba) e o grupo de etnia europeia dentre os quais 22% eram LAC*R e os demais 78% eram LAC*P/P e/ou LAC*P/LAC*R resultou em uma progênie mista de Absorvedores e Mal Absorvedores à Lactose.

Estes dados confirmam enfaticamente a dependência genética da produção de Lactase na vida adulta.