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segunda-feira, 20 de julho de 2015

Síndrome do Intestino Irritável e Sensibilidade ao Glúten não Celíaca: uma complexa relação e possível sobreposição de duas entidades clínicas (Parte 4)

SII e SGNC: Intolerância alimentar e Sensibilidade alimentar, a possível sobreposição dos sintomas

Recentemente, Biesiekierski e cols. (21), em 2013, investigando pacientes portadores de SII com diarreia demonstraram que as alterações do hábito intestinal se deviam principalmente à presença de carboidratos fermentáveis não absorvíveis na dieta. Ao eliminar essas substâncias da dieta, porém, ainda que mantivessem alimentos contendo glúten ocorria um alívio dos sintomas digestivos. Esses autores passaram a utilizar a sigla FODMAPs, que significa carboidratos fermentáveis não absorvíveis, em especial os frutanos. Frutanos são polímeros da frutose sintetizados a partir da sacarose e que ocorrem na natureza no mundo vegetal em inúmeros alimentos comumente utilizados na dieta ocidental. Essas substâncias não são digeridas e consequentemente não são absorvidas pelo trato digestivo do ser humano. Alcançam o intestino grosso e aí são fermentadas pelas bactérias da flora colônica, sendo transformadas em ácidos graxos de cadeia média com alto poder osmótico. A presença destas substâncias no lúmen intestinal provoca flatulência, dor abdominal e diarreia, em especial nos pacientes portadores de SII. O trigo é a maior fonte dietética de frutano, e este, além do glúten, é um aspecto que deve ser levado em consideração como mais um fator potencial causador de sintomas, posto que o trigo está presente em praticamente todas as refeições tradicionais do mundo ocidental, tais como: pães, cereais, macarrão, bolos, biscoitos e etc (Figura 11).

Figura 11- Concentração de frutanos em alguns alimentos da dieta comum. 

 Vale salientar que, além do trigo os frutanos estão presentes em inúmeros outros alimentos de uso comum em nossas dietas, tais como: feijão, feijão branco, grão de bico, ervilha, lentilha, banana, cebola, alho, repolho, alho poró e etc.  Por esta razão, Biesiekierski e cols. (22) propõem que nos pacientes portadores de SII com diarreia e intolerantes ao glúten e aos frutanos seja utilizada uma dieta restritiva destes alimentos.


Diante desta polêmica entre os possíveis causadores dos sintomas, seja o glúten (sensibilidade) ou os FODMAPs (intolerância alimentar), ou mesmo ambos, torna-se importante definir claramente as diferenças entre estas duas as condições. Portanto, para evitar maiores confusões vale a pena levar em consideração o consenso do Instituto Nacional da Alergia e Infectologia dos Estados Unidos (23), a saber: intolerância alimentar ocorre quando o organismo deixa de produzir um determinado enzima responsável pela digestão de um certo nutriente ou quando há excesso de nutriente oferecido para a enzima específica (lactose x lactase). Nestas circunstâncias, portanto, os sintomas são exclusivamente digestivos, majoritariamente secundários à fermentação do carboidrato pela ação da microbiota colônica, que leva à produção de gás, com distensão e dor abdominal, e diarreia. Exemplos frequentes destas condições incluem a intolerância à lactose e/ou o excesso dos FODMAPs. Por outro lado, as sensibilidades alimentares são reações mediadas imunologicamente induzidas por alguns nutrientes; estas reações (digestivas e extra-digestivas) nem sempre ocorrem da mesma forma quando o indivíduo ingere um determinado alimento. A SGNC é um exemplo de sensibilidade alimentar. Entretanto, tem surgido publicações atribuindo mais aos FODMAPs do que ao glúten os sintomas descritos, o que poderia levar a crer que a SGNC não seria uma entidade clínica diversa da SII, mas sim um subgrupo da mesma. Entretanto, se levarmos em consideração de forma estrita as diferenças entre as definições de intolerância alimentar e sensibilidade alimentar pode-se afirmar que a SII e a SGNC são entidades clínicas distintas, mas com algumas manifestações que se sobrepõem.

Tratamento

Como a SII trata-se de um transtorno funcional de etiologia multifatorial torna-se extremamente difícil propor uma terapêutica única que venha solucionar todo o complexo causal dos sintomas apresentados pelos pacientes. Deve-se sempre preferentemente eliminar, ou ao menos minimizar, os fatores desencadeantes da sintomatologia apresentada, em especial o estresse emocional e a restrição de algum fator dietético que comprovadamente esteja contribuindo de forma decisiva para a perpetuação do quadro clínico do paciente. Os tratamentos incluem intervenção psicológica, manipulações dietéticas, alteração da microbiota colônica (pró-bióticos e pré-bioticos). Cada paciente deve receber uma atenção individualizada com ações terapêuticas combinadas, baseada na intensidade dos sintomas, na dependência da sua personalidade e de sua preferência, na natureza dos transtornos fisiológicos e também na presença e condição das comorbidades psicológicas. A utilização rotineira de drogas anti-depressivas não parece ser a melhor escolha para solucionar os problemas, posto que irão atuar na consequência e não na causa desencadeante da sintomatologia.

O tratamento da SGNC baseia-se na introdução de uma dieta isenta de glúten que deve resultar no desaparecimento dos sintomas. Por outro lado, a reintrodução do glúten na dieta deve provocar o recrudescimento dos sintomas, o que confirma o diagnóstico.

Conclusões

Considerando que a SGNC se trata de uma entidade clínica recentemente redescoberta e com limitado número de publicações, até o presente momento disponíveis na literatura científica, inúmeras questões a respeito deste transtorno digestivo ainda necessitam ser respondidas com maior precisão. Seria a SGNC um transtorno permanente ou transitório? Seria o limiar de sensibilidade o mesmo para todos os pacientes, ou haveria um limiar variável de indivíduo para indivíduo, e no mesmo indivíduo haveria variação com o decorrer do tempo? Seria apenas o glúten o causador dos sintomas ou haveria também uma associação com os carboidratos fermentáveis e não digeridos? Qual é a verdadeira prevalência da SGNC? Atualmente a prevalência relatada na literatura varia de 0,5 a 6%, números estes baseados em estudos realizados em diversos centros médicos, mas desprovidos de uma uniformidade científica no desenho dos projetos de pesquisa. Portanto, tornam-se cada vez mais urgentes investigações clínicas e laboratoriais de reconhecido valor científico que possam vir a elucidar um sem inúmero de dúvidas ainda existentes a respeito de tão importante, intrigante e atual problema, que afeta um número cada vez mais crescente de indivíduos em todo o mundo ocidental.

Riscos das Manipulações Dietéticas

Os profissionais da saúde ao recomendar o manejo dietético para seus pacientes devem estar cientes dos potenciais riscos que estas intervenções possam causar. Uma estratégia de intervenção nutricional inadequada pode acarretar uma super-restrição alimentar com graves consequências a médio e longo prazos. Um estudo na Noruega (24) revelou que 12% dos pacientes portadores da SII receberam orientação dietética inadequada o que resultou em exclusões alimentares excessivas e prejudiciais. Além disso, muitos pacientes que se julgam intolerantes à lactose não são mal absorvedores de lactose, o que exige, portanto, a necessidade de comprovar de forma fidedigna se tal intolerância realmente existe. A restrição indevida de lactose da dieta pode acarretar reduções na ingestão de vitamina B2, fósforo e cálcio, além de outros micronutrientes. Deve-se também considerar que dietas restritivas são economicamente mais custosas tanto do ponto de vista financeiro como social.   
  
Referências Bibliográficas

1-         Lovell RM & Ford AC – Clin Gastroenterol Hepatol 2012;10:712-21
2-         Rasquim A, Di Lorenzo C, Forbes D et al – Gastroenterology 2006;130:1527-37
3-         Kennedy PJ, Cryan JF, Dinan TG et al – World J Gastroenterol 2014;20:14105-25
4-         Gibson PR, Muir JG et al. – Gastroenterology 2015; 148:1158-74
5-         Simrén M – Gastroenterology 2009;136:1487-1505
6-         Camilleri M & Di Lorenzo C – J Pediatr Gastroenterol Nutr 2012;54:446-53
7-         Halmos EP, Power VA et al – Gastroenterology 2014;146:67-75
8-         Biesiekierski JR,Peters S et al – Gastroenterology 2013;145:320-28
9-         Ellis A & Linaker BD – Lancet 1978;1:1358-59
10-     Cooper BT, Holmes GK et al – Gastroenterology 1980;79:801-06
11-     Sapone A, Lamers KM et al – Int Arch Allergy Immunol 2010;152;75-80
12-     Fasano A, Sapone A et al – Gastroenterology 2015;148:1195-1204
13-     Digiacomo DV, Tennyson CA et al – Scand J Gastroenterol 2013;48:921-25
14-     Francavilla R, Cristofori F et al – J Pediatrics 2014;164:463-7
15-     Carroccio A, Mansueto P et al – Am J Gastroenterol 2013;108:1845-52
16-     Mauri L, Ciacci C et al – Lancet 2003;362:30-7
17-     Fritscher-Ravens, Schuppan D et al – Gastroenteology 2014;147:1012-1020
18-     Sapone A, Bai J et al – BMC Med 2012;10:13
19-     Carroccio A, Mansueto P et al – Am J Gastroenterol 2012;107:1898-1906
20-     Vasquez-Roque MI, Camilleri M et – Gastorenterology 2013;144;903-11
21-     Biesiekierski JR, Newnham Ed et al – Am J Gastroenterol 2011;106:508-14
22-     Biesiekierski JR, Peters Sl – Aliment Pharmacol Ther 2014;39:1104-1112
23-     Boyce JA, Assaad A et al – J Allergy Clin Immunol 2010;126:S1-S58
24-     Monsbakken KW, Vandik PO et al – Eur J Clin N Utr 2006;60:667-72

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Síndrome do Intestino Irritável e Sensibilidade ao Glúten não Celíaca: uma complexa relação e possível sobreposição de duas entidades clínicas (Parte 1)

Síndrome do Intestino Irritável (SII) 

A SII constitui-se no transtorno funcional gastrointestinal mais frequente. A prevalência da SII varia de 10% a 25% no mundo ocidental afetando indistintamente crianças, adolescentes e adultos de ambos os sexos. Estima-se que a prevalência alcance entre 5 e 14% das crianças em idade escolar e de 12 a 45% entre os adolescentes e adultos, cifras estas identificadas em clínicas de referência terciária, aplicando-se os critérios de Roma III. Há também variações geográficas na prevalência da SII alcançando 7% na Ásia até 21% na América do Sul (1). 

Manifestações Clínicas e Diagnóstico

As manifestações clínicas e o diagnóstico da SII baseiam-se essencialmente nas definições estabelecidas pelos critérios de Roma III, os quais foram elaborados em 2006 por um grupo de experts na especialidade (2). 

A SII é um transtorno funcional cujas manifestações clínicas devem ser recorrentes, com a frequência de pelo menos uma vez por semana, durante pelo menos os últimos 2 meses anteriores ao diagnóstico, caracterizada pelos seguintes sintomas:

1- Desconforto e/ou dor abdominal associada a 2 ou mais dos seguintes sintomas, durante pelo menos 25% do tempo: 
- Alívio com a evacuação;
- Início associado com alteração na frequência das       evacuações;
- Início associado com alteração no formato das fezes.

2- Ausência de processo inflamatório, anatômico, metabólico ou neoplásico que possa justificar os sintomas.

Além disso, a SII pode estar associada a manifestações extra digestivas, tais como: fadiga cefaleia, depressão, dor musculoesquelética, formigamento e/ou adormecimento das mãos e dos pés.

É importante enfatizar que a SII pode também cursar com alguns sintomas subjacentes cuja presença pode auxiliar como suporte diagnóstico, na dependência do subtipo da sua apresentação, ou seja, Diarreia (D), Constipação (C) ou Mista (M), tais como:

1- Frequência aumentada das evacuações, podendo alcançar 4 ou mais evacuações por dia.
2- Frequência diminuída das evacuações de apenas 1 ou menos por semana.
3- Formato anormal das fezes, líquidas (D) ou endurecidas (C).
4- Evacuação anormal com esforço, urgência e sensação de evacuação incompleta (D).
5- Eliminação de muco.
6- Flatulência: sensação subjetiva de inchaço abdominal.
7- Distensão abdominal: aumento objetivo da circunferência abdominal.

É de fundamental importância, além dos critérios de Roma III, também levar em consideração os sintomas subjacentes acima relacionados, pois eles são de extrema valia para auxiliar na confirmação diagnóstica, visto que não se encontra disponível, até o presente momento, a existência de algum marcador específico, seja sorológico ou histopatológico, portanto, a SII trata-se de um transtorno cujo diagnóstico se estabelece por meio da análise detalhada dos sintomas referidos associado ao exame físico, que não deve revelar alterações dignas de nota.

Fisiopatologia

Os mecanismos fisiopatológicos envolvidos na SII ainda não estão totalmente esclarecidos, porém, admite-se a ocorrência da interação de múltiplos fatores biológicos, psicológicos e sociais na sua gênese, os quais são responsáveis pelas alterações da motilidade, em especial a indução do trânsito colônico acelerado (subtipo Diarreia) ou espástico (subtipo Constipação) e da sensibilidade do intestino (hipersensibilidade visceral).

Deve-se também levar em consideração que pesquisas realizadas nos últimos anos têm identificado outros fatores contribuintes para o surgimento da SII. Entre estes fatores devem ser incluídos os que se seguem, atuando de forma independente ou em associação, a saber: episódio prévio de gastroenterite, genética, irritantes intraluminais (má absorção de sais biliares), alterações na microbiota intestinal (sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado), transtornos na eliminação de gases, inflamação da mucosa colônica (alteração da barreira de permeabilidade), hipersensibilidade retal, bem como a ação não fisiológica de alguns mediadores químicos, tais como a serotonina. Admite-se que respostas imunológicas anormais desencadeadas por estímulos de alguns componentes da dieta possam estar presentes como geradores dos sintomas da SII. Além disso, considera-se também que a persistência de um baixo grau de inflamação possa favorecer o surgimento dos sintomas da SII (3).

Dentre os sintomas da SII destacam-se a flatulência e a distensão abdominal. Estudos realizados utilizando-se a tomografia computadorizada têm claramente demonstrado que a distensão abdominal é um fenômeno real e que pode alcançar até 12 cm em determinados pacientes. Por outro lado, aqueles pacientes que se queixam de flatulência, embora tenham a sensação de distensão abdominal, em apenas cerca de metade deles pode-se objetivamente demonstrar tal transtorno. Vale salientar que no grupo de pacientes que apresenta uma real distensão abdominal, constipação e hiposensibilidade visceral são os mais frequentemente observados, enquanto que o grupo que apresenta flatulência, sem distensão abdominal, predomina o subtipo diarreia e hipersensibilidade visceral. Tem sido demonstrado que a causa da flatulência e/ou da distensão abdominal se deve a retenção de gás e/ou a uma percepção aumentada de sobrecarga de gás exógeno, devido a uma combinação de deficiência no trânsito e aumento da sensibilidade visceral (4).   

Enfim, há um consenso geral para considerar a etiopatogenia da SII como um processo multifatorial em que estão envolvidos inúmeros aspectos da economia interna do indivíduo associados a fatores externos, na gênese dos sintomas, conforme encontra-se ilustrado na Figura 1 (5).  

 
Figura 1- Representação esquemática dos múltiplos fatores envolvidos na gênese da SII.

Dentre os aspectos psicossociais está bem estabelecida a existência de um eixo cérebro-trato digestivo, sendo este último metaforicamente denominado de “segundo cérebro”, pois trata-se do órgão de choque das tensões emocionais, responsável pela somatização visceral das situações de estresse, ansiedade e depressão. As comunicações bidirecionais envolvendo as regiões neuroanatômicas, entre o cérebro e o trato digestivo conforme ilustradas na Figura 2, são as responsáveis pelas diversas síndromes de dor abdominal (6).

Figura 2- Representação esquemática do eixo Cérebro-Trato digestivo.

Uma grande proporção de pacientes associa o surgimento dos sintomas abdominais a alguns alimentos da dieta, porém, torna-se difícil estabelecer uma relação direta entre um determinado alimento específico com os sintomas relatados. Esta dificuldade se deve à complexidade da composição dos alimentos e, também, aos supostos múltiplos mecanismos pelos quais os alimentos e/ou seus componentes afetam o trato digestivo na gênese dos sintomas. Dentre os inúmeros mecanismos potencialmente envolvendo os alimentos e consequentemente o surgimento dos sintomas digestivos, o primeiro deles é a fase cefálica. Na fase cefálica os efeitos sobre as secreções e a motilidade gastrointestinais são influenciados pelo visual, odor, imaginação e o sabor dos alimentos; tais efeitos ocorrem por meio de sinais neurológicos enviados desde o córtex cerebral e o centro do apetite localizado no cérebro ao trato digestivo. Os sintomas também podem ser induzidos pela estimulação química de receptores intestinais. Estes receptores localizam-se ao longo de todo o trato digestivo e podem ser ativados por moléculas bioativas dos alimentos ou por produtos da sua digestão, como por exemplo peptídeos, ou ainda por subprodutos do seu metabolismo, tais como os ácidos graxos de cadeia curta. A ativação destes receptores pode levar a liberação de múltiplos neurotransmissores e hormônios, incluindo a 5-hidroxitriptamina, colecistoquinina, peptídeo-1 similar ao glucagon, peptídeo YY, motilina, incretina e cefalina, sendo esta ativação um potencial mecanismo dos sintomas digestivos referidos pelos pacientes.    

Recentemente, um novo aspecto de significativa importância quanto a etiopatogenia da SII se agrega, aos outros já conhecidos, e diz respeito à intolerância a determinados carboidratos da dieta, os quais são lentamente digeridos ou não são digeridos no intestino delgado. Estes carboidratos podem ser agrupados de acordo com o comprimento da cadeia (grau de polimerização) em 3 diferentes categorias funcionais de importância relevante na SII, a saber: fibras, prebióticos e o complexo de carboidratos que recebeu a denominação de FODMAPs (fermentable oligo-, di-, monosaccharides and polyols). Estes últimos se constituem em um grupo de oligossacarídeos não digeríveis, e que, portanto, não são devidamente absorvidos no intestino delgado por falta de hidrolases específicas (7). Além disso, aí também devem ser incluídos alguns monossacarídeos, como por exemplo a frutose, pois este monossacarídeo para sofrer absorção ótima necessita estar presente no lúmen intestinal em uma concentração equimolar de glicose, condição que facilita sua absorção pelo mecanismo da draga do solvente. No entanto, no caso de haver excesso de frutose em relação a glicose pode ocorrer intolerância à mesma, quando esta fração excedente não é totalmente absorvida de forma passiva pelo transportador GLUT5. Caso uma proporção significativa destes FODMAPs não venha a ser absorvida no intestino delgado, por efeito osmótico aumenta a concentração intra-luminal de água no intestino delgado, cuja sobrecarga é levada ao intestino grosso. No cólon ocorre o processo de fermentação por ação das bactérias da microflora colônica o que leva à produção aumentada de gás e ácidos graxos de cadeia curta. Estes fatores provocam distensão abdominal a qual induz a sensação de dor, flatulência e alteração da motilidade, com consequente diarreia pelo excesso de água gerada no intestino delgado. Estes mecanismos estão exemplificados nas Figuras 3 e 4 (8).

Figura 3- Representação esquemática da ação dos FODMAPs sobre o trato digestivo.

Figura 4- Mecanismo fisiopatológico da má absorção da frutose e dos frutanos.

A associação entre os FODMAPs e os sintomas apresentados pelos pacientes portadores da SII tornou-se evidente a partir de várias observações bem documentadas. A administração oral de FODMAPs individualmente foi capaz de provocar sintomas similares à SII baseada no princípio da dose dependência, e, tais sintomas, ao que tudo indica, surgem devido a hipersensibilidade visceral, fenômeno similar ao que se observa nos pacientes portadores de intolerância à lactose. Os sintomas se agravam quando estes carboidratos são consumidos em combinação entre si, como por exemplo, frutanos com lactose, frutose com sorbitol, frutose com frutanos, indicando a existência de um efeito aditivo (Figuras 5-6).

Figura 6- Manifestações clínicas da má absorção dos carboidratos da dieta.

Figura 6- Representação esquemática da ação fisiopatológica dos diferentes carboidratos da dieta.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Prevalência de Má Absorção à Frutose utilizando o teste do Hidrogênio no ar expirado (1)

Adriana Chebar Lozinsky*, Cristiane Boé*, Ricardo Palmero**, Ulysses Fagundes-Neto***

*Residente de 4º ano da Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal de São Paulo (EPM-UNIFESP).
** Biomédico da Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Pediatria EPM-UNIFESP.
 ***Doutor em Gastroenterologia e Pediatria pela EPM-UNIFESP, Professor Titular da Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Pediatria da EPM-UNIFESP.

Introdução

A frutose é um carboidrato monossacarídeo encontrado na natureza em sua maior parte como constituinte da sacarose. Tem sido cada vez mais utilizada na dieta ocidental na forma de adoçante em produtos industrializados, por ser alternativa mais barata que a sacarose. Sua presença é comumente observada em refrigerantes, doces e principalmente em sucos de frutas naturais e artificiais (1). A frutose é transportada através do epitélio intestinal por um mecanismo facilitador denominado GLUT 5 (transportador facilitador de hexose), o qual apresenta alta afinidade pela frutose, que carrega este monossacarídeo através da membrana apical do enterócito (2). Este mecanismo possui capacidade limitada de absorção deste carboidrato.  A frutose pode também ser absorvida quando ingerida em associação com a glicose, sendo então arrastada pelo mecanismo da draga do solvente, pelas junções firmes dos enterócitos (3). Entretanto, quando a concentração da frutose em um determinado alimento encontra-se em excesso em relação àquela da glicose, condição esta muito frequentemente verificada em sucos de frutas, principalmente nos sabores maçã, uva e pêra, alguns indivíduos podem desenvolver má absorção à frutose (4-5). Estes indivíduos apresentam sintomas que incluem flatulência, diarréia, dor e distensão abdominal. Para se estabelecer o diagnóstico da má absorção/intolerância à frutose a anamnese deve incluir uma detalhada história dietética associada à investigação laboratorial que pode ser realizada por meio do teste do hidrogênio no ar expirado, o qual é realizado após ingestão de sobrecarga de frutose (6). Nesta circunstância, o monossacarídeo não absorvido no intestino delgado, é fermentado pelas bactérias colônicas resultando na produção de gases como metano, dióxido de carbono e hidrogênio, além de ácidos graxos voláteis de cadeia curta, tais como ácido acético, butírico e propiônico. O hidrogênio, por sua vez, atravessa a mucosa colônica, passa para a circulação sistêmica e, finalmente, é eliminado pela expiração. A confirmação diagnóstica se complementa quando ocorre alívio dos sintomas depois da retirada da frutose da dieta.
O objetivo do presente estudo é descrever a prevalência de má absorção à frutose utilizando o teste do hidrogênio no ar expirado em pacientes com transtornos digestivos e/ou nutricionais.

Casuística e Métodos

A)      Pacientes

Foram investigados 43 pacientes de forma consecutiva, de ambos os sexos, atendidos no ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica da EPM-UNIFESP, com queixa de transtornos digestivos e/ou nutricionais, tais como: dor abdominal crônica e recorrente, diarréia, vômitos e baixo ganho pôndero-estatural, no período compreendido de setembro de 2010 a fevereiro de 2012.

 Todos os pacientes foram submetidos ao Teste do Hidrogênio (H2) no ar expirado com sobrecarga oral dos seguintes carboidratos, a saber: glicose, frutose, lactose e lactulose, como parte rotineira da investigação da função digestivo-absortiva.

Além destes testes outros exames laboratoriais pertinentes para cada caso específico foram realizados.

B)      Teste do Hidrogênio no ar expirado com sobrecarga oral de carboidrato

B.1) Procedimento

Os testes foram realizados individualmente para cada carboidrato e em dias subsequentes.

Para a realização do teste os pacientes foram mantidos em jejum de 8 horas, sendo permitida a ingestão de pequenas quantidades de água; para os lactentes o período mínimo de jejum foi de 6 horas. Os testes foram realizados pela manhã, após o jejum noturno e lavagem bucal com antisséptico apropriado.

Os carboidratos foram administrados por via oral em solução aquosa a 10%, nas seguintes doses: Lactose 2g∕Kg (máximo 25g), Glicose 1g∕Kg, (máximo 12g), Frutose 1g/Kg (máximo 12g) e Lactulose 20g.

As amostras de ar expirado foram obtidas em jejum e a cada 15 minutos de intervalo de tempo durante a primeira hora e a cada 30 minutos de intervalo de tempo por 1 hora adicional, após a ingestão da solução contendo o respectivo carboidrato, totalizando 2 horas para cada exame.

B.2) Critérios de avaliação diagnóstica

No caso dos testes terem sido realizados com sobrecarga de frutose, glicose e lactose, considerou-se má absorção quando ocorreu incremento >20 partes por milhão (ppm) de H2 em relação ao jejum; considerou-se intolerância, caso durante o exame e∕ou até 8 horas após o mesmo, o paciente viesse a apresentar distensão abdominal, dor abdominal, diarréia e/ou vômito.

Por outro lado, no caso do teste realizado com sobrecarga de lactulose considerou-se sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado quando houvesse incremento >20 ppm de H2 no ar expirado em relação ao jejum, nos primeiros 60 minutos após a ingestão do carboidrato.

C)      Definições

Os diagnósticos clínicos dos transtornos funcionais foram caracterizados de acordo com os critérios de Roma III (7), a saber:

1-         Síndrome do intestino irrtitável (SII)

Desconforto abdominal ou dor, pelo menos um episódio por semana com duração de 2 meses anterior ao diagnóstico, associados a 2 ou mais dos seguintes sintomas:

- alívio com a evacuação;
- início do quadro associado à mudança na frequência das evacuações;
- início do quadro associado à mudança no formato das fezes;
- nenhuma evidência da coexistência de processo inflamatório, neoplásico, anatômico ou metabólico que pudesse explicar os sintomas.

2-         Dor abdominal funcional (DAF)

Dor abdominal caracterizada por ao menos um episódio por semana ou de forma contínua com duração de 2 meses anterior ao diagnóstico, cuja manifestação não apresentasse qualquer evidência de coexistência de processo inflamatório, neoplásico, anatômico ou metabólico que pudesse explicar os sintomas.

3-         Baixa estatura (BE)

O diagnóstico clínico de baixa-estatura foi caracterizado quando a estatura para a idade encontrava-se abaixo de -2 desvios padrões, utilizando-se como referência o z-score (8).

4-         Doença celíaca (DC)

O diagnóstico de doença celíaca foi caracterizado segundo os critérios da ESPGHAN (9).
Foi obtido consentimento formal dos pais dos pacientes para a realização dos testes diagnósticos.

O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da EPM/UNIFESP.

Referências:
1- Mishkin D, Sabrauskas L, Yalovsky M et al. Fructose and sorbitol malabsorption in ambulatory patients with functional dyspepsia: comparison with lactose maldigestion/malabsorption. Dig Dis Sci 1997; 42; 2591-8.
2- Jones HF, Butler RN, Brooks DA. Intestinal fructose transport and malabsorption in humans. Am J Physiol Gastrointest Liver Physiol 2011; 300: g202-6.
3- Shi X, Schedl HP, Summers RM et al. Fructose transport mechanisms in humans. Gastroenterology 1997; 113: 1171-9.
4- Lifshtz F, Ament ME, Kleinman RE, Klish W, Lebenthal E, Pearman J et al. Role of juice carbohydrate malabsorption in chronic nonspecific diarrhea in children. J Pediatr 1992; 120: 825-9.
5- Baker SS, Cochrane WJ, Greer FR et al. The use and misuse of fruit juice in Pediatrics. Pediatrics 2001; 107: 1210-13.
6- Duro D, Rising R, Cedillo M, Lifshitz F. Association between infantile colic and carbohydrate malabsorption from fruit juice in infancy. Pediatrics 2002; 109: 797-805.
7- Rasquin A, Di Lorenzo C, Forbes D et al. Childhood functional gastrointestinal disorders: child/adolescent. Gastroenterology 2006; 130: 1527-37.
8- World Health Organization. Physical status: the use and interpretation of anthropometry. Geneve: WHO; 1995.
 9- Husby S, Koletzko S, Korponay-Szabo IR et al. Coeliac disease diagnosis: ESPGHAN 1990 criteria or need a change? Results of a questionnaire. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2012; 54: 15-9.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Bactérias, Fezes e Síndrome do Intestino Irritável: demasiado é tão ruim quanto muito pouco

Introdução
Algumas novidades altamente promissoras estão surgindo na literatura médica para tentar elucidar os mecanismos desencadeadores da Síndrome do Intestino Irritável (SII), tanto em adultos como na população pediátrica. Atualmente está bem estabelecido que as manifestações clínicas da SII obedecem características  multifatoriais, o que, portanto, determina a necessidade de envidar esforços para o esclarecimento específico de cada um destes componentes, para que se possa ter uma definição global deste tema tão prevalente e, ao mesmo tempo, igualmente intrigante. Neste sentido o número de novembro do Gastroenterology, 2011;141:1555-59, traz um interessante Editorial (Bugs, Stool, and the Irritable Bowel Syndrome: Too Much Is as Bad as Too Little? Talley NJ & Fodor AA) que comenta 2 artigos publicados nesta revista, um deles realizado com uma população de adultos, em Houston, Texas, EUA, e o outro realizado com crianças, em Helsinki, Finlândia), que trazem resultados antagônicos. As diferenças observadas podem ser devidas aos diferentes grupos estudados (adultos x crianças) e/ou as diferentes regiões geográficas aos quais os pacientes pertenciam. De qualquer forma, porém, os resultados obtidos são novos e interessantes que poderão indicar rumos a serem perseguidos para o entendimento de como a microbiota intestinal poderia interferir diretamente na gênese da SII. Abaixo, transcrevo os principais tópicos do referido Editorial.
Editorial
A SII é um transtorno altamente prevalente, até o presente momento sem explicação conhecida, e que afeta mais de 10% dos americanos. A SII tem sido reconhecida em todo o globo terrestre e está presente nas populações de todas as nações investigadas. A SII prejudica de forma significante a qualidade de vida, cujo prejuízo se reflete em uma diminuição da produtividade, das funções físicas e mentais, dos relacionamentos pessoais e do sono. Não há até o presente momento qualquer medicação que cure a SII, e, no máximo, alguns medicamentos existentes no mercado, são capazes de trazer alívio temporário e sintomático.
O fenótipo da SII é tão característico que permite que o mesmo seja usualmente reconhecido na prática clínica, sem que haja a necessidade da realização de qualquer teste diagnóstico, e, o qual se apresenta com dor abdominal recorrente ou algum desconforto ligado a um distúrbio errático da evacuação, diarreia ou constipação, ou ambos, e frequentemente flatulência. A despeito dos enormes custos pessoais e econômicos associados a SII, os mecanismos estruturais causais ainda são desconhecidos. Entretanto, tem se tornado cada vez mais claro que em indivíduos geneticamente predispostos a SII provavelmente surge após um ou mais agravos ambientais (mais frequentemente, infecção intestinal aguda).
Tradicionalmente a SII tem sido conceituada como um transtorno do eixo cérebro-intestino, especialmente devido à ansiedade, depressão, e sintomas extras intestinais, tais como fadiga, as quais são condições comórbidas que estão fortemente associadas. Entretanto, a evidência emergente dá suporte à visão de que pelo menos em um subgrupo de pacientes que sofre de SII, o trato digestivo pode ser o deflagrador primário das manifestações clínicas. Há dados convincentes de que uma sutil inflamação da mucosa do intestino delgado e do colón, especialmente a infiltração de mastócitos e linfócitos T, ocorre em um subgrupo de pacientes com SII; a ligação com os mastócitos é particularmente saliente e esta pode representar um biomarcador da mucosa neste transtorno. Citocinas séricas estão aumentadas na SII; níveis basais elevados do fator alfa de necrose tumoral, interleucina 1β e  IL-6, por exemplo, tem sido observados. Tem sido especulado, que certos perfis de citocinas podem ser responsáveis pelo excesso de sintomas somáticos incluindo estresse psicológico na SII (porque correlações positivas têm sido identificadas), embora haja incertezas a respeito da exata fonte das elevações séricas das citocinas. Sabe-se que até 25% dos indivíduos desenvolve a SII depois de um episódio de gastroenterite infecciosa. Outras linhas de evidências sugerem que a permeabilidade intestinal está prejudicada naqueles indivíduos que sofrem de SII pós-infecciosa, o que levanta a hipótese de que antígenos presentes no lúmen intestinal (por exemplo, de bactérias) podem penetrar na mucosa e estimular respostas imunes anormais no hospedeiro com SII.
Qual o deflagrador da cascata inflamatória de citocinas na SII? Uma possibilidade é a composição da nossa própria flora intestinal que predispõe para a SII, e que depois de algum insulto inicia o transtorno (Figura 1).


Micro-organismos respondem pelo impressionante número de 90% das células existentes no corpo, sendo que somente 10% das nossas células é representada por células “humanas”. A extraordinária massa microbiana presente no intestino é estabelecida ao nascimento, cuja exata composição depende dos nossos genes e do meio ambiente local. Ela pode desempenhar um papel crítico em todas as enfermidades inflamatórias intestinais incluindo a SII. O desenvolvimento de uma interessante nova tecnologia tem permitido estabelecer a contagem detalhada do vastíssimo número de micro-organismos que constituem o microbioma intestinal humano. Descrições iniciais que tem explorado a microflora bacteriana por meio de métodos altamente sofisticados verificaram que diferentes pessoas tendem a ter microfloras muito diferentes no interior dos seus intestinos e que essas diferenças mantêm-se bastante estáveis ao longo do tempo. Assim sendo, torna-se tentador especular que algumas dessas diferenças entre os indivíduos no que diz respeito ao seu microbioma intestinal podem explicar as variações pelas quais algumas pessoas desenvolvem a SII e outras assim não o fazem. Por meio da utilização de técnicas de cultura livre tais como a eletroforese em gel de gradiente desnaturante e a reação quantitativa da polimerase em cadeia alvejando um microbiota específico, inúmeros estudos tem tentado encontrar bactérias que possam discriminar casos de SII em contraposição aos controles. Muitos desses estudos foram capazes de encontrar microbiota que parecem ser diferentes nos casos versus controles. Entretanto, a caracterização de microbiota específico que poderia estar consistentemente associado à SII, utilizando-se diferentes coortes e diferentes técnicas, ainda não foi possível determinar.
Rajilic-Stojanovic M e cols., (Gastroenterology 2001;141:1792-1801), utilizando técnicas sofisticadas de alta resolução, estudaram a microbiota de 62 pacientes com SII e 46 controles sadios; seus resultados confirmaram de forma robusta que existe uma nítida separação entre a microbiota dos casos em relação aos controles. Essas diferenças fornecem novas evidências à respeito da hipótese de que há uma variação da comunidade microbiana associada a SII.
Por outro lado, Saulnir D e cols., (Gastroenterology 2011;141:1782-1791), em um estudo pioneiro, utilizaram técnicas de sequenciamento de nova geração e plataformas de micro arranjos para descrever as diferenças dentro da comunidade microbiana entre crianças com SII e crianças sadias, e crianças com diferentes subtipos de SII.  Contraditoriamente, a carga microbiana total não se mostrou significantemente diferente entre as crianças sadias e aquelas com SII. Levando-se em consideração estes achados, será muito interessante analisar como estas observações impactariam na consideração de saber se o número total de bactérias presentes no intestino (a hipótese do “sobrecrescimento bacteriano”) tem importância mais significativa na SII do que os tipos de bactérias presentes, o que agora poderá ser mensurado com estas técnicas altamente sofisticadas disponíveis para as investigações clínicas.
Meus Comentários
Desde há muito tempo a SII é bem conhecida dos gastroenterologistas, tanto para os clínicos que atendem pacientes adultos quanto para os que assistem a população pediátrica, mas, no entanto, além da reconhecida influência bio-psico-social e da característica manifestação pós-infecciosa, seja ela intestinal ou extra-intestinal, inúmeras dúvidas ainda pairam para todos os interessados no estudo desta síndrome, a respeito dos mecanismos íntimos da sua fisiopatologia. Em minha opinião, dentro da multifatoriedade causal das manifestações clínicas da SII, alguns aspectos estão bem definidos, tais como os já supracitados, mas, ao que tudo indica, novos importantes fatores passam a surgir, inclusive a possibilidade da potencial existência de biomarcadores e de um melhor conhecimento do papel da microbiota intestinal, como mais um agente causal na deflagração dos sintomas. Tudo isto somado explica claramente o porquê da inexistência de um único medicamento capaz de controlar os sintomas da SII e, ao mesmo tempo, traz maiores dilemas para o clínico e seus pacientes de como abordar de forma global este tão intrigante e desafiador transtorno funcional. Será mesmo apenas um transtorno funcional? Parece-me que estamos no limiar de serem encontrados, se não todos, pelo menos alguns mecanismos fisiopatológicos palpáveis que poderão trazer possibilidades terapêuticas específicas para este grupo significativo de pacientes, e com estes avanços diminuir seus sofrimentos. É o desejo de todos que tenhamos respostas positivas e otimistas dentro do mais breve período de tempo possível.   

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Síndrome do Intestino Irritável: Novos Conhecimentos Sobre a Flatulência e a Distensão Abdominal (2)

RESPOSTAS VISCEROSSOMÁTICAS ANORMAIS

Tem sido proposto que a ação conjunta do rebaixamento do diafragma, abaixo da lordose lombar, hipotonia da musculatura abdominal, e protrusão voluntária do abdome podem ter importância na geração da flatulência e da distensão abdominal, porém nenhuma destas alterações foi confirmada em um estudo anterior utilizando tomografia computadorizada (Maxton e cols., Gut 1991; 32: 662-64), ou mesmo em outro estudo, realizado na Austrália, aonde se verificou ser normal a atividade da musculatura abdominal na SII (McManis e cols., Am J Gastroenterol 2001; 96: 1139-42). Entretanto, com a utilização da eletromiografia da parede abdominal e do diafragma e a análise da imagem da tomografia computadorizada moderna, o grupo de Barcelona em uma série de cuidadosos estudos incluindo voluntários sadios e pacientes trouxe novos importantes conhecimentos a respeito da gênese da distensão abdominal em pacientes com transtornos funcionais gastrointestinais. Nestes estudos ficou demonstrado que a acomodação abdominal a sobrecargas de volume é um processo ativo que envolve respostas musculares abdominofrênicas (Vitoria e cols., Am J Gastroenterol 2008; 103: 2807-15) e que pacientes com SII que apresentam flatulência sofrem de reflexos viscerossomáticos prejudicados e distonia da parede abdominal, com fracasso na concentração tônica da parede abdominal, e relaxamento do músculo oblíquo interno em resposta a uma sobrecarga gasosa colônica (Perez e cols., Am J Gastroenterol 2007; 102: 842-49). Accarino e cols. (Gastroenterology 2009; 136: 1544-51) investigaram um grupo significantemente grande de pacientes que apresentavam queixa predominantemente de flatulência e voluntários sadios utilizando a tomografia abdominal de varredura, por meio de um software especializado para analisar o conteúdo de gás e os volumes intra-abdominais. Considerando-se o grande interesse do tema, pacientes que sofrem de flatulência como queixa do transtorno funcional foram comparados com aqueles com grave dismotilidade intestinal e flatulência. Ambos os grupos foram submetidos a um estudo com tomografia computadorizada de varredura durante condições basais e também durante um episódio de flatulência intensa. Não houve diferença significativa entre os grupos no estado basal. Entretanto, diferentes mecanismos de origem foram detectados durante os episódios de flatulência entre os dois grupos; os pacientes que sofriam de dismotilidade funcional demostraram um real aumento do volume abdominal total com um deslocamento cefálico do diafragma; por outro lado, os pacientes com transtorno funcional apresentaram um incremento muito modesto do volume abdominal, e, ao contrário do grupo anterior, a distensão abdominal mostrou-se relacionada com um movimento descendente do diafragma, o que resultou em um deslocamento abdominofrênico e redistribuição dos conteúdos gasosos intestinais no sentindo ventro-caudal.

Esses achados são potencialmente de grande valor para explicar os desconfortos sintomáticos da flatulência e da visível distensão abdominal; um pequeno, embora significante, aumento do conteúdo gasoso intestinal, como demonstrado neste estudo pode provocar o desencadeamento da distensão abdominal através da existência de reflexos viscerossomáticos anormais. Entretanto, este estudo apresenta alguns aspectos que merecem críticas. O grupo que sofria de distensão abdominal de causa funcional foi selecionado baseando-se na existência de sintomas graves de flatulência e distensão abdominal, e compreendia pacientes com SII, com constipação e hábitos intestinais mistos, assim como um grupo de pacientes com flatulência funcional, mas nenhum paciente portador de SII com diarreia foi incluído; portanto, a partir deste estudo a generalização dos achados para todos os pacientes que sofrem de transtorno funcional intestinal não fica clara, e a relevância dos achados fica confinada a pacientes com distensão abdominal visível e não para pacientes com a sensação isolada de flatulência. Estudos de acompanhamento são agora necessários utilizando diferentes grupos de pacientes fazendo-se comparações entre diferentes subgrupos de pacientes. Além disso, outro ponto que merece crítica no presente estudo refere-se ao papel do índice de massa corporal, o que não foi claramente esclarecido.

De qualquer forma um novo e potencialmente muito importante mecanismo desencadeador da distensão abdominal nos transtornos funcionais gastrointestinais foi demostrado, e os próximos passos a serem seguidos deverão ser para avaliar sua relativa relevância para conjuntamente atuar em outros mecanismos propostos, e encontrar uma potencial opção de tratamento para se tentar reduzir os sintomas que causam desconforto.

CONCLUSÃO

Os mecanismos potenciais que se encontram por traz dos sintomas desconfortáveis de flatulência e distensão abdominal visível têm emergido nos últimos anos e estão diagramados na Figura 1.

Figura 1- Representação esquemática dos potenciais mecanismos causadores de flatulência e distensão abdominal nos transtornos funcionais gastrointestinais. 

O trânsito prejudicado de gás no intestino parece desempenhar um importante papel associado a uma alteração da motilidade funcional, fato frequentemente encontrado em pacientes com transtornos gastrointestinais funcionais. A hipersensibilidade visceral, um dos principais fatores fisiopatológicos nos transtornos gastrointestinais funcionais, é de grande importância no desencadeamento dos sintomas, em especial naqueles pacientes que sofrem de flatulência e que não apresentam uma distensão abdominal visível. Respostas viscerossomáticas anormais podem resultar de uma aglomeração focal do conteúdo intestinal com incoordenação abdominofrênica e, como consequência, protrusão da parede abdominal. Outros fatores ainda não bem esclarecidos e/ou estudados, e que são de potencial importância, referem-se a uma ativação imunológica anormal da mucosa, alteração da flora bacteriana, hormônios sexuais, e fatores psicológicos, incluindo somatização. O próximo passo que agora deve ser seguido refere-se a avaliação da importância relativa destes diferentes fatores e a inter-relação entre eles. Assim sendo, algumas perguntas permanecem para serem respondidas: será relevante do ponto de vista clínico constituir subgrupos de pacientes que sofrem de flatulência isoladamente versus flatulência com distensão abdominal, baseados na presença/ausência de diferentes fatores fisiopatológicos? Além disso, desde o ponto de vista do paciente, tudo indica ser de enorme importância traduzir estes achados no desenvolvimento de potenciais opções terapêuticas para reduzir a intensidade da flatulência e da distensão abdominal visível. Sem duvida alguma este será o maior passo a ser dado para atender as necessidades dos pacientes e de seus médicos assistentes.

Meus Comentários

Como é possível depreender deste editorial e dos artigos a que ele se refere, os transtornos funcionais gastrointestinais continuam a ser um enorme desafio para os pesquisadores/investigadores/indústria farmacêutica, quanto à sua fisiopatologia e, consequentemente, ao surgimento de potenciais medicamentos que possam a vir controlar/curar os pacientes portadores destes transtornos. Indiscutivelmente, ao longo dos anos, tem ocorrido avanços para uma melhor compreensão dos mecanismos íntimos que geram uma sintomatologia comum a alguns transtornos funcionais, porém, por outro lado, sabemos que ainda estamos engatinhando para alcançarmos uma solução definitiva a respeito do tema. Sem dúvida alguma, os avanços verificados nos critérios de Roma (I - II e III) têm contribuído decisivamente para que sejam definidos de forma mais detalhada cada um dos transtornos considerados como funcionais, bem como inclusive tem sido ampliada a lista dos mesmos, como no caso da Pediatria, agora subdividindo-os entre recém-nascidos e lactentes, e entre escolares e adolescentes. Os últimos conhecimentos gerados pelos pesquisadores vêm demonstrando cada vez mais que estamos diante de um problema que não é necessariamente devido a uma única causa específica, mas sim, pode ser a múltiplos fatores que interagem para desencadear um sintoma comum, ou seja, estamos literalmente lidando com uma síndrome, e discriminar qual ou quais os mecanismos causais para a deflagração dos sintomas torna-se o grande desafio a ser vencido. Será, sem dúvida alguma, a partir do conhecimento específico de cada um destes mecanismos, e de como eles estão atuando em um determinado paciente, é que se poderá propor o melhor tratamento. Torna-se ainda necessário aprimorar a metodologia e a técnica de investigação clínica para serem elucidados e identificados os meandros desta síndrome, para que se possa em futuro próximo, discriminar com exatidão qual o fator/fatores desencadeante/desencadeantes dos sintomas em um determinado paciente, e assim propormos o tratamento correto. Este é, sem dúvida alguma, o grande desafio para a indústria farmacêutica, desvendar medicamentos específicos para abarcar cada um dos fatores causais dos sintomas, porém, sabe-se de antemão, que isto será praticamente impossível enquanto o conhecimento íntimo de cada processo fisiopatológico não for conhecido. Entretanto, nem tudo são desilusões, porque se sabe, isto sim está bem estabelecido, que apesar do desconforto causado pela flatulência, distensão abdominal, constipação e/ou diarreia que por ventura afeta os pacientes portadores dos transtornos gastrointestinais funcionais, estes sintomas tem caráter absolutamente benigno, e, portanto, não oferecem riscos de efeitos colaterais indesejáveis.