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terça-feira, 26 de novembro de 2024

Rastreamento longitudinal para Doença Celíaca em crianças até 15 anos usando o teste genético HLA

 Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A renomada revista JPGN publicou um artigo de revisão, em fevereiro de 2024, intitulado “Longitudinal screening of HLA-nonrisk children for celiac disease to age 15 years: CiPiS study”, de Michaela Boström e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos. 

  1. Introdução 

A Doença Celíaca (DC) é assintomática em cerca de metade dos casos, porém, a abordagem diagnóstica pode ser um método de busca ativa, através do rastreamento de certos grupos de risco. O retardamento do diagnóstico é frequente, e, consequentemente são perdidos vários anos de tratamento pela dieta restrita isenta de glúten, o que pode acarretar complicações tais como, deficiência de ferro, osteopenia e osteoporose, e problemas da saúde mental. A prevalência global é aproximadamente de 1%, e maiores prevalências podem inclusive ser observadas, como na Suécia e na Finlândia. Existem testes disponíveis e largamente aceitos como marcadores para a DC, dos quais, o anticorpo anti-transglutaminase que apresenta uma performance diagnóstica média de 92,8% de sensibilidade 97,9% de especificidade, é atualmente o teste mais comumente utilizado no rastreamento da DC. Rastreamentos populacionais para a DC têm sido demandados, mas, parece haver uma necessidade para pesquisas mais aprofundadas para alcançar alguns dos critérios de rastreamento propostos pela OMS. 

A coorte de nascimento no sul da Suécia (Skane) para DC, foi iniciada para avaliar a presunção de rastreamento para DC, e examinou crianças nascidas entre 2001 e 2004, nas idades de 3, 9 e 15 anos, respectivamente, comparando as crianças portadoras dos antígenos leucocitários humanos (HLA) dos haplotipos DQ2 e DQ8 ou ambos, com crianças que não eram portadoras desses haplotipos de risco. Nós relatamos previamente o desfecho do rastreamento nas idades de 3 e 9 anos. Aos 3 anos de idade, 3,4% das crianças portadoras de haplotipos de HLA de risco foram diagnosticadas com DC em comparação com nenhuma das crianças HLA sem risco. Aos 9 anos de idade, 3,8% das crianças portadoras de HLA de risco, foram diagnosticadas com DC, comparadas com nenhuma criança portadora de HLA sem risco. Dentre aquelas crianças previamente rastreadas aos 3 anos de idade, 3,1% foram diagnosticadas com DC aos 9 anos de idade, comparados com 4,5% daquelas que nunca haviam sido rastreadas pelo teste aos 9 anos, o que indica que, o rastreamento nestas idades deve ser repetido, mas, podem ser restritos às crianças portadoras de HLA de risco. No presente estudo, são relatados os resultados do rastreamento nesta coorte aos 15 anos de idade. 

  1. Material e Métodos 

Skane é uma província do sul da Suécia que em 2004 possuía 1.2 milhão de habitantes, e, no período do registro entre junho 2001 a agosto de 2004, cerca de 39 mil crianças haviam nascido. Aos 5 anos de idade entre fevereiro de 2016 e fevereiro de 2020, 12.948 (99,4%) crianças foram convidadas para um novo rastreamento. 

  1. Resultados  

Um total de 5.969 (43,1% das 13.860 crianças convidadas) foram rastreadas pelo menos 1 vez pelo anticorpo anti-transglutaminase IgA e IgG. Neste grupo, 2.904 (48,7% eram meninas) e 2.778 (46,5% eram meninos) que pertenciam ao grupo HLA com risco. O número de crianças rastreadas nos diferentes momentos do estudo, está descrito na Figura 1. 

Figura 1

Figura 1

Ao todo, houve uma maioria de meninas em relação aos meninos diagnosticados com DC, porém, não houve diferença por sexo no rastreamento aos 3 ou aos 15 anos de idade (Tabela 1).

Tabela 1)

Tabela 1)

Dentre as crianças do grupo HLA de risco, que foram rastreadas aos 15 anos de idade, 14/1.071 (1,3%) foram inicialmente positivos para IgA ou IgG ou para ambos dos quais, 12/1.071 (1,1%) permaneceram persistentemente positivos em 2 amostras coletadas consecutivamente em comparação com 0/3.303 crianças HLA sem risco. 

Todas as 12 crianças IgA positivas, foram submetidas à EDA com biópsias e dentre elas, 10/1.071 (0,9%) foram diagnosticadas com DC e nas 2 remanescentes a biópsia revelou-se normal (Tabela 2).

Tabela 2

Tabela 2

Dentre as 12 crianças rastreadas com IgA positivo aos 15 anos, 6 (50%) tinham sido rastreadas aos 3 e aos 9 anos de idade, dentre as quais 1 havia apresentado valores elevados de IgA no rastreamento aos 9 anos de idade. Uma dessas crianças que também havia participado do estudo aos 3 anos de idade, apresentava IgA não-elevada, e 55 delas haviam participado pela primeira vez (Figura 1).  

O valor preditivo positivo para a persistência da positividade da IgA nas idades 3, 9 e 15 anos foram 78,9%, 93,5% e 83,3%, respectivamente (Tabela 2).

  1. Discussão

O presente estudo foi o primeira que seguiu longitudinalmente uma coorte do nascimento aos 15 anos de idade, e que rastreou tanto as crianças portadoras de HLA com risco como crianças HLA sem risco para DC, em tempos regularmente propostos aos 3, 9 e 15 anos de idade. Foi observada uma predominância de meninas diagnosticadas com DC em todas as idades, o que está de acordo com outros rastreamentos populacionais, e, uma meta análise prévia demonstra um risco aumentado de 1,5x nas mulheres sobre os homens para desenvolver DC.  

Este estudo, também teve um achado de grande importância, posto que nenhuma das crianças que apresentavam HLA sem risco, desenvolveu DC em todos os momentos do rastreamento. Este fato, endossa que o valor preditivo negativo do HLA DQ2/DQ8, apoiando a proposta de que o rastreamento deve ser restrito somente às populações portadoras de HLA com risco de DC.

Outro achado de relevância foi que novos casos foram detectados em todas as idades nas crianças portadoras de HLA com risco. Embora a incidência de novos casos de DC tenha declinado depois dos 9 anos, fica demonstrado que o rastreamento deve ser realizado em múltiplos momentos de tempo, para também detectar casos com início da DC em idades maiores.

  1. Conclusões 

Este estudo conclui que o rastreamento da população pediátrica em geral para DC aos 15 anos de idade detecta novos casos, mesmo naquelas crianças previamente rastreadas, e, que o rastreamento necessita ser repetido, mas deve ser limitado aos indivíduos que são portadores de HLA com risco (DQ2/DQ8). 

  1. Referências Bibliográficas
  1. Boström, M. e cols. – JPGN, 2024;78:1143-1148. 
  2. Husby S. e cols – JPGN, 2020;70:141-156
  3. Andren AC. e cols.-JAMA, 2019;322:514-523
  4. Meijer CR. e cols. – Gastroenterology 2022;163:426-436

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Doença Celíaca: a história de uma enfermidade considerada rara até passado recente e que se revelou de alta prevalência no mundo ocidental (Parte 4)

Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo

(I-GASTROPED)

O papel desempenhado pela Genética na Doença Celíaca

A suscetibilidade para a ocorrência da DC está, em parte, determinada por uma associação com um Antígeno de Histocompatibilidade (HLA – human leukocytes antigen) dominante comum, especificamente, com o mais importante complexo de antígenos classe II de histocompatibilidade, DQ2 e DQ8. Esses genes são codificados para glicoproteinas que se ligam a peptídeos e formam um complexo antigênico HLA que pode ser reconhecido pelas células T receptoras CD4+ na mucosa intestinal. O gene DQ2 está presente em cerca de 90% dos pacientes e quando esses alelos são homozigotos respondem pela instalação precoce da forma clássica da DC. Vale ressaltar que embora o gene DQ2 represente a base da suscetibilidade genética da DC, eles estão presentes em cerca de 30% de toda a população. O gene DQ8 está presente na maioria dos restantes 10% dos pacientes. Portanto, como as moléculas de DQ2 e DQ8 respondem pela quase totalidade dos pacientes com DC, a ausência das mesmas, nos testes genéticos, praticamente exclui a possibilidade da existência da DC em um determinado indivíduo. Vale ressaltar, porém, que embora DQ2 esteja presente em 30% da população geral e que tanto DQ2 como DQ8 estejam presentes em 40% da população geral, a auto-imunidade para DC irá surgir em apenas cerca de 3% da população geral que possui DQ2. Desta forma as sondas genéticas para DQ2 e DQ8 apresentam alta sensibilidade (baixas taxas de falso negativo), mas baixa especificidade (altas taxas de falso positivo), indicando, portanto, baixo valor preditivo positivo, mas um alto valor preditivo negativo para a DC.

Diagnóstico

O diagnóstico da DC usualmente é suspeitado em um primeiro momento pela presença dos auto-anticorpos, porém, deve sempre ser confirmado pela realização da biópsia de intestino delgado. Há uma série de artigos disponíveis na literatura médica demonstrando que o diagnóstico baseado em critérios clínicos levando-se em consideração apenas as manifestações gastrointestinais mostraram-se incorretos em mais de 50% dos casos. Exames radiológicos ou mesmo outros testes laboratoriais também são incapazes de definir corretamente a existência ou não da atrofia vilositária.

Atualmente, é consenso internacional que crianças maiores de 2 anos de idade (em crianças menores as mesmas alterações histológicas também podem ser observadas em lactentes portadores de enteropatia por alergia à proteína do leite de vaca), que apresentam manifestações clínicas sugestivas da DC associadas a lesões morfológicas características do intestino delgado, e que evoluem para a recuperação clínica e nutricional quando submetidas à dieta isenta de glúten, o diagnóstico da DC pode ser considerado definitivamente correto, sem que haja necessidade da realização de novas biópsias do intestino delgado. Além disso, caso tenham sido demonstrados auto-anticorpos antes do diagnóstico e o consequente desaparecimento dos mesmos, após a introdução da dieta isenta de glúten, estes eventos reforçam ainda mais o acerto diagnóstico da DC.

As características lesões morfológicas da mucosa do intestino delgado descritas na DC incluem um número aumentado de linfócitos intra-epiteliais (>30 linfócitos por 100 enterócitos), índice mitótico dos linfócitos intra-epiteliais superior a 0,2%, diminuição na altura das células epiteliais, com transformação cuboidal, hiperplasia das criptas, atrofia vilositária parcial ou total, com nítida diminuição da relação vilosidade:cripta (Figuras 24 e 25).
Figura 24- Aspecto histopatológico característico da DC. Atrofia vilositária total, transformação cuboidal do epitélio, com hiperplasia das criptas e infiltrado intra-epitelial de linfócitos.


Figura 25- Aspecto da histologia normal da mucosa do intestino delgado, apresentando vilosidades digitiformes, células epiteliais cilíndricas com núcleo em posição basal e glândulas crípticas preservando a relação vilosidade/cripta 4 ou 5:1.

Presentemente, os critérios diagnósticos de graduação das alterações morfológicas da mucosa intestinal aceitos internacionalmente para o diagnóstico da DC são os propostos por Marsh, em 1992 (Figuras 26 e 27) (Gastroenterology 102: 330-54).
Figura 26- Representação esquemática dos critérios de Marsh para o diagnóstico da DC.


Figura 27- Graduação histológica das lesões do intestino delgado na DC.

Marsh classificou as alterações histológicas para o diagnóstico da DC nos seguintes graus, a saber: Grau 0: estágio pré-infiltrativo (normal); Grau 1: lesão infiltrativa (aumento do número de linfócitos intra-epiteliais); Grau 2: lesão hiperplásica (Grau 1 + hiperplasia das criptas); Grau 3: lesão destrutiva (Grau 2 + atrofia vilositária parcial); Grau 4: lesão hipoplásica (atrofia vilositária total com hipoplasia críptica). A lesão Grau 3 foi modificada para ser subdividida em Grau 3a (atrofia vilositária parcial), Grau 3b (atrofia vilositária subtotal) e Grau 3c (atrofia vilositária total).

A existência de lesão Marsh Grau 3 com atrofia vilositária, ou mais intensa, é aceita como claro aspecto diagnóstico da DC. A ocorrência de lesão Marsh Grau 2 associada à positividade de marcadores sorológicos é altamente sugestiva da DC. A existência da lesão histológica Marsh Grau 1 é considerada inespecífica, porém, se essa lesão vier acompanhada de positividade dos marcadores sorológicos deve-se considerar fortemente o diagnóstico de DC. Nesta situação deve-se realizar a tipagem HLA e se necessário repetir a biópsia do intestino delgado, ou então, indicar o emprego da dieta isenta de glúten e após 6 meses repetir os testes sorológicos e a biópsia do intestino delgado.

Uma proposta de diagnóstico precoce da Doença Celíaca: uma nova revolução desvendando ainda mais a parte não visível desta enfermidade

É consenso internacional que o critério diagnóstico de certeza da DC é a demonstração de atrofia vilositária Marsh 3. Entretanto, há evidencias de que a lesão da mucosa do intestino delgado se instala de forma gradual, e, portanto, admite-se que enteropatias moderadas podem evoluir para atrofia vilositária total e hiperplasia das criptas, caso a ingestão de glúten se mantenha de forma continuada. Dados atuais sugerem que alguns pacientes que apresentam somente enteropatias moderadas podem apresentar sintomas ou mesmo complicações clínicas em decorrência da ingestão de glúten antes de desenvolverem atrofia vilositária total. Este fato desperta a inevitável questão se acaso os atuais critérios diagnósticos para caracterizar a DC ainda sejam válidos (Figura 28).
Figura 28- Aspectos progressivos da lesão do intestino delgado na DC.

Kalle Kurppa e colaboradores (Gastroenterology 2009; 136: 816-23), em Tampere, na Finlândia, levando em consideração a hipótese acima considerada realizaram uma investigação clínica controlada, de forma prospectiva e randomizada, para avaliar o efeito da intervenção do glúten em pacientes suspeitos de sofrerem de DC que apresentavam positividade ao autoanticorpo anti-Endomíseo (EMA) e que à biópsia do intestino delgado evidenciavam linfocitose, mas arquitetura vilositária normal. Foram realizadas biópsias de intestino delgado em 70 pacientes EMA positivos, e destes, 23 apresentavam apenas enteropatia moderada (Marsh 1-2), os quais foram aleatoriamente distribuídos para continuarem recebendo dieta contendo glúten ou dieta isenta de glúten. Após o período de 1 ano foram repetidas as avaliações clínicas, sorológicas e histológicas. Um grupo de 47 pacientes com lesões da mucosa do intestino delgado compatíveis com DC (Marsh 3) e submetidos à dieta isenta de glúten serviram como grupo controle enfermo.

No grupo que recebeu dieta contendo glúten (Marsh 1-2) a arquitetura da mucosa intestinal se agravou em todos os indivíduos, e os sintomas persistiram assim como a positividade do EMA. Em contraste, naquele grupo que recebeu dieta isenta de glúten os sintomas desapareceram, os títulos do EMA diminuíram, e a morfologia da mucosa intestinal se normalizou, da mesma forma que ocorreu no grupo controle enfermo. Quando o ensaio clínico terminou todos os indivíduos decidiram adotar uma dieta isenta de glúten.

Os autores concluíram que os indivíduos que apresentaram EMA positivo se beneficiaram com a adoção de uma dieta isenta de glúten, a despeito de não apresentarem atrofia vilositária total. Baseados nos resultados dessa pesquisa os autores propõem que os critérios diagnósticos para DC necessitam ser revistos, valorizando os resultados positivos dos marcadores sorológicos EMA e ATTG, até então considerados “falso positivos”. Enfatizam que a positividade dos marcadores sorológicos mesmo na ausência de atrofia vilositária é uma indicação para a adoção de uma dieta isenta de glúten.

Levando-se em consideração os resultados dessa importante pesquisa, e, nos colocando na expectativa de que essas observações sejam confirmadas em outros centros, passaremos a admitir que a parte não visível do “iceberg” é ainda maior do que aquela até o presente momento conhecida.

Tratamento

Atualmente, o único tratamento disponível para a DC é o dietético, consistindo na eliminação do trigo, centeio e cevada, de forma permanente, da dieta do paciente.

É fortemente recomendável que o tratamento com a dieta isenta de glúten apenas se inicie após a confirmação diagnóstica por meio da realização da biópsia do intestino delgado.

É de fundamental importância o cumprimento efetivo da dieta isenta de glúten a fim de assegurar desenvolvimento pôndero-estatural e puberal adequados, manter adequada a densidade mineral óssea, preservar a fertilidade, reduzir o risco de anemia ferropriva e de deficiências de outros micro-nutrientes, bem como prevenir o surgimento de doenças malignas do trato digestivo, tal como o linfoma do intestino delgado. Entretanto, é do conhecimento geral que, na prática, manter a obediência restrita à dieta isenta de glúten de forma permanente é um grande desafio para o médico e para o paciente. A transgressão alimentar pode ser voluntária ou inadvertida. A transgressão voluntária costuma ocorrer em todas as faixas etárias e a inadvertida ocorre devido a incorreta inscrição dos ingredientes nos rótulos dos alimentos, ou então, à contaminação com glúten em um determinado produto industrializado.
Vale a pena frisar que há poucos estudos disponíveis na literatura médica a respeito das taxas de adesão à dieta isenta de glúten. Sdepanian, Fagundes-Neto e cols. (Arquivos de Gastroenterologia 2001; 38: 232-38) realizaram uma investigação com o objetivo de avaliar a obediência à dieta isenta de glúten, o conhecimento teórico acerca da DC e seu tratamento pelos pacientes cadastrados na Associação dos Celíacos do Brasil (ACELBRA). Foi enviado pelo correio um questionário para se determinar a obediência da adesão à dieta isenta de glúten, do conhecimento teórico e do tratamento da DC a 584 membros cadastrados na ACELBRA. Foram retornados 529 (90,6%) questionários devidamente preenchidos, os quais revelaram que 69,4% dos pacientes nunca ingerem glúten e 29,5% reconhecem que não cumprem a dieta de forma restrita. A proporção dos pacientes que ingere glúten frequentemente ou que não faz restrição alguma é maior entre aqueles com idade igual ou maior a 21 anos (17,7%) do que os com idade menor (9,9%). A frequência de obediência à dieta isenta de glúten foi maior quando o intervalo de tempo em que foi estabelecido o diagnóstico da DC foi inferior a cinco anos. Para 96,2% dos pacientes que responderam ao questionário a dieta deve ser totalmente isenta de glúten, enquanto que para os 3,8% restantes o glúten pode ser ingerido semanal ou mensalmente. Segundo 67,1% dos pacientes o glúten é uma proteína, enquanto que para 10,2% é uma enzima, 5,5% um carboidrato, 0,6% uma gordura e 16,6% responderam que não sabiam. Quanto aos cereais onde o glúten está presente 98,7% responderam no trigo, 94,7% na cevada, 95,1% na aveia, 93,4% no centeio e 1,0% no arroz. Com relação aos possíveis substitutos dos alimentos que contém glúten, a farinha de milho foi referida em 97,9% dos inquéritos, o polvilho em 98,3%, a fécula de mandioca em 98,9%, e a farinha de arroz em 97,5%. Este estudo demonstra que o esclarecimento da causa da DC e seu respectivo tratamento exercem papel fundamental no cumprimento da dieta isenta de glúten de forma restrita.

Monitoramento dos Pacientes

Recomenda-se que os pacientes portadores de DC sejam monitorados por meio de visitas periódicas ao médico, para que este possa avaliar a existência ou não de sintomas compatíveis com transgressões dietéticas, analisar a curva de crescimento e a adesão à dieta isenta de glúten.

Recomenda-se também a determinação dos auto-anticorpos (ATTG ou EMA) após os primeiros 6 meses da confirmação diagnóstica pela biópsia do intestino delgado e do início do tratamento com dieta isenta de glúten, e sucessivamente a cada ano sob tratamento com dieta isenta de glúten. Caso a dieta esteja sendo rigorosamente cumprida o título do auto-anticorpo deve cair abruptamente ou mesmo desaparecer. Por outro lado, caso o título permaneça elevado associado ou não a alguma manifestação clínica é muito provável que o paciente esteja transgredindo a dieta isenta de glúten voluntária ou inadvertidamente. Entretanto, recentemente, Leonard e cols. (JPGN 64:286-91, 2017) investigaram de forma retrospectiva um grupo de pacientes portadores de DC nos quais por alguma razão foi realizada nova biópsia de intestino delgado pelo menos após 12 meses de tratamento com dieta isenta de glúten. Estes autores verificaram que 1 em cada 5 crianças podem apresentar persistência da enteropatia a despeito da normalização do anticorpo antitransglutaminase. Por esta razão sugerem que a determinação do anticorpo antitransglutaminase não é um marcador sorológico acurado para atestar a recuperação histológica da mucosa do intestino delgado. De qualquer forma Leonard e cols. não propõem outra alternativa laboratorial para o monitoramento da evolução da DC. Por esta razão, o monitoramento deve seguir sendo realizado por meio da determinação do anticorpo antitransglutaminase, apesar das limitações apontadas pelo trabalho de Leonard e cols., até que algum outro marcador mais confiável esteja disponível à comunidade médica.

CASO CLÍNICO
ABRM, 2 anos, feminino, branca
Primeira Consulta

Identificação: Natural e procedente de Camanducaia – MG
Queixa Principal: Diarreia desde 1 ano e 6 meses de idade
História: Mãe refere que a menor evacua fezes líquidas, sem sangue ou muco, 6 vezes por dia há 6 meses, acompanhada de dor e distensão abdominal, inapetência, hipoatividade e com perda de 1,5 kg neste período.

Há três meses consultou pediatra que suspeitou de DC e orientou para iniciar uso de dieta isenta de trigo. Entretanto, apesar de ter diminuído a ingestão de glúten não fez restrição total do cereal na dieta; sintomas desapareceram desde então, e houve recuperação do peso. Não realizou qualquer investigação laboratorial nesta época.

Interrogatório Complementar: há dois meses fezes pastosas 2 vezes por dia sem dor ou dificuldade para evacuar. O hábito intestinal atual é igual ao que apresentava antes do início do quadro de diarreia.

Alimentação:

Aleitamento misto desde o nascimento com introdução de cereais contendo glúten aos 4 meses.

Antecedentes pessoais: segundo gemelar nascida a termo parto cesárea sem intercorrência.

Peso de nascimento 2.670 g comprimento 46,5 cm.

Antecedentes familiares: nega doença celíaca na família e nega doenças autoimunes na família.

Exame físico:
Peso: 9,6 kg e Estatura 79 cm
Emagrecida, descorada ++, hidratada, eupneica, acianótica, anictérica e afebril.
Abdome distendido sem visceromegalia, glúteo hipotrofiado.
Músculos da coxa hipotônicos e hipotrofiados.


Exames solicitados:
Anticorpo antitransglutaminase (ATG),
 Imunoglobulinas séricas,
Prova de absorção da D-Xilose,
Hemograma,
Biópsia de intestino delgado.

Resultados:
ATG= 34U/ml reagente >10 U/ml
 D-Xilose 8 mg/dL (normal >25mg/dL)
Hemoglobina: 10,8 g/dL.
 IgA 292 mg/dL

Evolução
Aos 2 anos e 7 meses, 6 meses após o início da dieta isenta de glúten encontrava-se assintomática.
Peso 12,2 kg, Estatura 86 cm.
ATG 3 unidades (referência < 4U/mL).
Mantida dieta isenta de glúten.

Aos 6 anos, assintomática, ainda conservando a dieta isenta de glúten.
ATG 2 U/mL
Biópsia do intestino delgado: vilosidades digitiformes, raros linfócitos intra-epiteliais; relação vilosidade/cripta 4:1

Mantida dieta isenta de glúten