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terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A inédita experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (3)


Os acontecimentos políticos que afetaram a vida do país e da população, inclusive a minha pessoal e profissional

O ano de 1973 reservou grandes transformações e surpresas que modificaram de forma dramática o modelo político da Argentina, o que afetou diretamente a vida da população inclusive a minha, profissional e pessoal. Naquele ano o país teve três Presidentes da República, inicialmente saiu de uma ditadura militar, em seguida elegeu um novo Presidente da ala moderada da esquerda peronista e finalmente teve de volta o velho caudilho, Juan Domingo Perón, já completamente decadente física e mentalmente.

Quando cheguei, em janeiro, governava o país o general Alejandro Lanusse que havia se comprometido a entregar a nação de volta à normalidade democrática, e, para tal, foi marcada a data da eleição para a presidência da república, a qual foi vencida pelo dentista Hector Campora, um tradicional e fiel peronista da ala moderada da esquerda, mas que imediatamente se tornou refém dos radicais de esquerda, em especial do grupo denominado os Montoneros. Assim que Campora assumiu o governo, em maio de 1973, os Montoneros desencadearam uma série de invasões em propriedades públicas destituindo diretorias em nome do povo e de uma pretensa revolução de libertação do jugo militar. Isto também ocorreu no Posadas, e toda a direção foi sumariamente demitida em uma assembléia geral convocada de última hora, na qual todos os funcionários do hospital tinham direito isonômico  a voz e voto. Esta convocação incluía desde os trabalhadores de apoio até os profissionais da saúde, inclusive eu, que aparentemente não tinha nada que ver com os acontecimentos, e que ainda, além do mais, era estrangeiro e temporário no país. Foi uma reunião extremamente tensa e interminável, assustadora mesmo, porque em determinado momento parecia que iria descambar para uma pancadaria generalizada, tão intensamente alterados estavam os ânimos entre os participantes que se digladiavam verbalmente, com violência e insultos recíprocos. Finalmente, o Diretor Superintendente foi destituído por meio de uma votação, praticamente simbólica, totalmente manipulada pelos Montoneros, que dirigiam a sessão. Quando a reunião terminou conversei com Dr. Toccalino que externou todo seu desânimo quanto ao destino futuro, pelo menos em breve prazo, do hospital; a sensação por ele transmitida era de que uma catástrofe havia se abatido sobre a instituição, e, tudo aquilo que poderia vir a acontecer de pior, corria-se o risco de ocorrer daí em diante. Isto me afetou profundamente, fiquei tremendamente preocupado com a minha vida e a da minha família, afinal de contas eu tinha uma enorme responsabilidade com o bem estar dos meus entes queridos e também um compromisso moral de realizar a especialização. Estava no meio do caminho, havia aprendido muita coisa, porém havia muito mais conhecimento a ser incorporado, ainda mais em um momento extremamente florescente da minha formação. A angustia que em mim se abateu foi intensa, não tinha a menor idéia de como nem quando essa desordem iria terminar. De fato, durante as duas semanas seguintes pouco se fez em matéria de trabalho, éramos sistematicamente convocados para assembléias gerais para discutirmos os destinos do hospital, reuniões tensas, intermináveis e sem quaisquer soluções práticas. Felizmente, dia após dia as coisas foram se acalmando, os Montoneros se retiraram do hospital, e a vida foi paulatinamente voltando à rotina anterior, como registrei em meu diário:

“Parece mentira, mas já se passaram 5 meses da minha especialização e fazendo um balanço das coisas penso que o saldo tem sido bastante positivo apesar de todas as intercorrências políticas que praticamente paralisaram o serviço durante uns quinze dias, somando-se ainda a greve dos Residentes que, por falta de pagamento dos seus salários, paralisaram suas atividades durante dez dias. Eu, em solidariedade, os acompanhei e deixei de cumprir com as minhas atividades assistenciais rotineiras. Agora, felizmente, tudo já voltou ao normal.


Do ponto de vista das minhas atividades assistenciais tenho aproveitado bastante, visto uma série grande de doenças com as quais ainda não havia tido experiência prévia, tais como hepatite tóxica, hepatite crônica, pólipo juvenil, cavernomatose da veia porta com hipertensão portal (Figura 1),                               
Figura 1- Da esquerda para a direita Dr. Mairon Lima, médico brasileiro, radicado em Brasília, que chegou no segundo semestre para realizar a especialização, Dra. Sonia Malowiski, residente de terceiro ano do Posadas, Dr. Ricardo Licastro, médico senior e Chefe da Hepatologia, e a paciente AC, natural de Tucuman, portadora de cavernomatose da porta. Foi minha paciente durante o tempo em que esteve internada, fui seu padrinho de crisma juntamente com Sonia. Apresentava hematêmese devido a presença de varizes esofágicas, e, na época, foi submetida a uma cirurgia bastante delicada, uma derivação porto-esplênica; sobreviveu, voltou para Tucuman, e em 1998, quando lá estive para dar palestras em um Congresso Médico, ela veio me visitar no hotel, já tinha mais de trinta anos, totalmente assintomática, e trazia consigo sua filhinha, foi um momento de enorme emoção, nunca mais eu tinha tido conhecimento da sua evolução. Mairon voltou a Brasília e lá montou o serviço de Gastropediatria no hospital de Base, nos tornamos amigos íntimos, amizade que perdura até os dias atuais. Sonia se casou com "Chango" Córdoba e foi com êle viver em La Pampa. Licastro depois de alguns anos abandonou a Medicina para se dedicar a outra atividade profissional.


cirrose, alergia ao leite de vaca e à soja, intolerância aos carboidratos, várias formas de apresentação da doença celíaca, inclusive com constipação, glicogenose, divertículo de Meckel, doença inflamatória intestinal, linfangiectasia intestinal, úlcera duodenal, estenose hipertrófica do piloro, afora aquelas comumente vistas no nosso meio, tais como, diarréia aguda e diarréia prolongada. Inclusive no que diz respeito à doença celíaca vale a pena frisar a espetacular recuperação clínica e nutricional que os pacientes apresentam quando são colocados em dieta isenta de glúten, ou seja, com restrição de trigo, aveia e centeio (Figuras 2-3-4-5).



Figura 2- Paciente portadora de doença celíaca por ocasião do diagnóstico com grau intenso de desnutrição.



Figura 3- A mesma paciente vista de perfil.




Figura 4- A mesma paciente depois de algumas semanas em dieta isenta de gluten. Notar a espetacular recuperação clínica e nutricional; a distensão abdominal costuma perdurar por certo tempo em virtude da hipotonia da musculatura abdominal durante o período de desnutrição. 
Figura 5- A mesma paciente em visão frontal.

No tocante à parte de procedimentos tenho realizado um bom número de biópsias de intestino delgado, em média 2 a 3 por semana (por sinal a primeira que realizei foi no final de março), e realmente a coisa não é segredo algum. Tenho também realizado retosigmóidoscopias com biópsia retal uma vez por semana, e já fiz uma biópsia hepática.

Uma vez por semana faço ambulatório com Dr. Toccalino, e isto tem sido de grande utilidade prática, pois além de atender pacientes de consultório também acompanhamos a evolução dos pacientes que estiveram internados. Uma grande experiência, sem dúvida alguma!”

Antes, porém, de prosseguir na descrição das minhas atividades médicas rotineiras é importante assinalar que quando escrevi há alguns parágrafos acima tudo voltou ao normal foi uma exagerada força de expressão. Isto porque com a redemocratização do país, a política nacional tornou-se o centro da imensa maioria das conversas em todos os espaços que se frequentava. Um lugar comum, naqueles dias, era um manifesto desejo de que o caudilho Perón retornasse à Argentina, posto que ele vivesse um longo exílio havia 18 anos, em Madri, Espanha.  E, de fato, o ansiado retorno ocorreu em março de 1973. Cerca de 8 milhões de pessoas foram aguardar no aeroporto de Ezeiza a chegada do carismático líder, denominado pelo seus fanáticos admiradores “o pai dos descamisados”. Seu triunfal retorno constituiu-se em um delírio generalizado, o país entrou em ebulição. Foi uma das maiores manifestações públicas que eu já presenciei em toda a minha vida. Na noite anterior a chegada de Perón caravanas e mais caravanas de grupos populares tocando seus bumbos e entoando as clássicas canções de exaltação ao velho líder “PERÓN, PERÓN, QUE GRANDE SOS, EL PRIMER TRABAJADOR...”, chegavam à estação Retiro vindas das mais distantes cidades do interior do país e marchavam a pé até o aeroporto de Ezeiza uma estafante caminhada de muitos quilômetros (Figura 6).

Figura 6- A rota de cerca de 35 km que as caravanas peronistas seguiram caminhando para celebrar a chegada de volta ao país do lider carismático Juan Domingo Perón.


Logo após a volta de Perón a seus saudosos pagos, iniciou-se uma monumental campanha para que Campora renunciasse e novas eleições presidenciais fossem convocadas, o que de fato rapidamente ocorreu. Assim sendo, Campora se viu obrigado a renunciar ao cargo de presidente da república que há pouco havia assumido, foi nomeado embaixador no México, e desta forma abriu caminho para que em nova eleição Perón, mesmo física e mentalmente debilitado, fosse eleito pela terceira vez presidente da República Argentina tendo como vice-presidente sua terceira mulher Isabel de Perón. Perón veio a falecer em julho de 1974, ato seguinte Isabelita tomou posse e permaneceu no poder até março de 1976, quando mais um golpe militar a destituiu da presidência da República dando início a mais uma tenebrosa ditadura que se estendeu até 1983, ceifando a vida de pelo menos 30.000 argentinos.

Após este breve relato a respeito dos eventos políticos que transcorreram naquele ano de 1973, e que também fizeram parte da experiência de vida por mim aprendidas, voltemos ao tema principal deste texto, ou seja, as atividades médicas. Como se pode depreender do relato do meu diário feito há alguns parágrafos anteriores, nesta altura dos acontecimentos os conhecimentos básicos já haviam sido incorporados, mas tudo o que viria depois suplantou totalmente às mais exigentes expectativas, e, pelo menos para mim posto que não fazia parte dos planos iniciais, mesmo porque sequer havia sido imaginado. Refiro-me especificamente à investigação clínica. Entrava eu, então, naqueles dias, orientado por Dr. Toccalino, na área mais apaixonante da Medicina, a Pesquisa! Este era um novo mundo que se descortinava, quase um sonho, e me absorvia integralmente, mas não conflitava com as atividades clínicas, bem ao contrário, era uma complementação. Em virtude da grande empatia, amizade e, acima de tudo, da confiança que foi sendo construída entre nós, Dr. Toccalino me propôs a realização de 2 projetos de investigação clínica envolvendo nossos pacientes portadores de diarreia aguda e crônica. Na realidade, tratava-se de investigar a microflora bacteriana do intestino delgado em ambos os grupos de crianças. Estudaríamos a microflora bacteriana do intestino delgado destas crianças com a hipótese de que iríamos encontrar um sobrecrescimento bacteriano da flora fecal anormalmente elevado na secreção jejunal e com isto demonstrar que este achado seria pelo menos mais um fator responsável pela perpetuação da diarréia. Para se conseguir obter amostras da secreção jejunal era necessário fazer com que os pacientes se submetessem a introdução de uma sonda de polietileno radiopaca por via nasal, até que sua extremidade distal alcançasse as primeiras porções do jejuno. A evolução da sonda era acompanhada por radioscopia e quando a mesma atingisse o local desejado era feita aspiração da secreção com uma seringa, todo o procedimento realizado em condições assépticas. Após a obtenção da secreção jejunal, esta era semeada em placas de Agar para cultura e identificação das colônias bacterianas (Figuras 7-8-9-10).
Figura 7- Foto das sondas de polietileno de tripla via usadas para obter secreção jejunal. Ao fundo Guimaray e mais atrás o bosque na parte posterior do hospital.

Figura 8- Fotografia de uma chapa de Raio X mostrando a localização do trajeto da sonda ao longo do tubo digestivo.

Figura 9- Realização do procedimento de coleta da secreção jejunal em um paciente portador de diarreia persistente, no Instituto Malbran.

Figura 10- Dra. Norma Microbiologista do Instituto Malbran semeando na placa de agar o líquido jejunal.

A partir desta proposta, que imediatamente aceitei, passei a fazer um vastíssimo levantamento da literatura a respeito do tema, o que possibilitou que eu publicasse o primeiro trabalho na literatura médica: Fagundes Neto, U. Bacteriologia del tracto digestivo en el niño. Acta Gastroenterológica Latino Americana, 1973; 5: 195-212.
   Vale ressaltar que naquela ocasião havia surgido uma verdadeira avalanche de artigos publicados na literatura médica a respeito da microflora bacteriana do intestino delgado em condições normais e patológicas. Esses estudos haviam sido majoritariamente realizados em indivíduos adultos, as publicações em pacientes pediátricos eram escassas.  Havia, entre outras inúmeras razões duas principais para justificar esta febre de investigação clínica nesta área da gastroenterologia, a saber:
  1- A primeira conquista foi o domínio da metodologia da realização da cultura de bactérias anaeróbias que havia sido recentemente obtido, o que até então era algo praticamente não disponível aos laboratórios de microbiologia, pois as culturas microbiológicas somente eram realizadas para pesquisar bactérias aeróbias, o que tornou factível este tipo de pesquisa. Como já era sabido pelas escassas investigações disponíveis até aquela época, a população bacteriana do trato digestivo é majoritariamente anaeróbia, na proporção de 1/100.000, e, assim, este novo avanço tecnológico trouxe a possibilidade de se investigar a bacteriologia completa do trato digestivo, ou seja, ambas as microfloras: anaeróbia e aeróbia. Este extraordinário avanço metodológico passou a ser um tema altamente atraente para os investigadores e, além disso, também porque o domínio completo da técnica de cultura em anaerobiose era ainda restrita a pouquíssimos laboratórios de microbiologia. No nosso caso tínhamos um grande trunfo nas mãos porque Dr. Toccalino mantinha de longa data estreitas relações profissionais com uma iminente microbiologista argentina, Dra. Tereza Eiguer, que trabalhava em uma prestigiosa instituição de microbiologia denominada Instituto Malbran, localizado no bairro de Parque Patrícios, na capital federal.

 2- A segunda grande conquista diz respeito à produção das sondas de polietileno flexíveis e radiopacas que havia sido recentemente introduzida no mercado, o que passou a permitir que o paciente ao ser entubado tornasse possível identificar com precisão toda sua trajetória ao logo do trato digestivo e, também, a exata localização da extremidade distal da sonda. Desta forma, viabilizava-se a obtenção de secreção jejunal para a realização da cultura bacteriana em meio anaeróbio e aeróbio. Para ser evitada uma eventual contaminação do material na luz da sonda pelas secreções das porções superiores do trato digestivo, a sonda era selada na sua extremidade distal com vaselina solida e na proximal ao fogo.   

  Dr. Toccalino e eu, tínhamos, portanto, naquele momento alcançado todos os requisitos técnicos para desenvolver os tão ambiciosos projetos de pesquisa, posto que pacientes havia em abundância, as sondas Dr. Toccalino havia conseguido de um fabricante local e, por fim, a Dra. Eiguer mostrou-se altamente interessada em realizar a investigação microbiológica em nossos pacientes.


  Apesar de dispormos de todos os requisitos humanos e técnicos fundamentais para colocar em marcha nosso projeto de pesquisa, no entanto, faltava solucionar um quesito crucial que era o logístico, posto que o Policlínico Alejandro Posadas não pudesse disponibilizar nenhum meio de transporte para este fim, e o Instituto Malbran distava cerca de 20km do referido Policlínico (Figura 11).
Figura 11- A rota de 20 km que eu seguia com meus pacientes para coletar as amostras de secreção jejunal.

Além disso, para a realização do estudo era absolutamente necessário que a coleta da amostra da secreção jejunal fosse realizada no Instituto Malbran e o fluido obtido imediatamente semeado em condição de anaerobiose. Quando tudo caminhava para um impasse fundamental foi ai que entrou a enorme capacidade criativa daqueles que necessitam improvisar para sobreviver, atributo bastante característico dos latino-americanos. Posso afirmar sem nenhum medo de cometer exagero que foi uma grande aventura na qual Dr. Toccalino e eu nos metemos. Como eu possuía um carro decidimos que eu levaria os pacientes ao Instituto Malbran sendo que estes iriam com a sonda previamente colocada até o destino final e ali realizaríamos a coleta da secreção jejunal. Ao findar a coleta do fluido jejunal eu retiraria a sonda naso-jejunal do paciente e retornaria ao Policlínico Alejandro Posadas com o paciente e sua mãe em meu carro. Naqueles tempos esta quase insanidade, posto que o carro fosse brasileiro, o motorista era médico e brasileiro com visto temporário no país, o paciente com a sonda posta e sua mãe eram argentinos, poderia ser permitida, porém, caso estivéssemos nos dias atuais, este projeto de pesquisa não teria viabilidade ao menos que fosse encontrada alguma outra forma logística de transporte que viesse a cumprir todos os trâmites burocráticos para tal. Foi sem dúvida alguma uma grande aventura, diria eu quase heroica, pois durante meses, semanalmente realizei este percurso e com muita sorte nenhuma intercorrência ocorreu. Realizamos os trabalhos que nos renderam muitos méritos científicos e que particularmente a mim, abriu as portas para uma futura próxima aventura, agora nos Estados Unidos. Infelizmente, meu querido e amado mestre, Dr. Toccalino, muito pouco pode desfrutar destes méritos, porque ele logo a seguir adoeceu de moléstia incurável e veio a falecer pouco tempo depois, sem que tivéssemos tido a oportunidade de celebrar, como seriam merecidas, as publicações dos trabalhos em revistas indexadas internacionalmente. Esta é uma frustação que carrego comigo desde sempre, e lamento constantemente a perda de um médico extraordinário, um pesquisador inquieto e um amigo incondicional. Estes trabalhos são pioneiros no que concerne a bacteriologia do intestino delgado na Pediatria. Foram incialmente apresentados por mim na sessão de temas livres do Congresso Mundial de Pediatria, em 1974, em Buenos Aires, e posteriormente publicados como segue: Fagundes Neto, U; Toccalino, H; Dujovney, F. Stool bacterial aerobic overgrowth in the small intestine of children with acute diarrhea. Acta Paediatrica Scandinavica 1976; 65: 609-17 e Fagundes Neto, U; Eiguer, T; Toccalino, H. Fermentative diarrhea and small intestinal bacterial overgrowth in infancy. Correlation with the nutritional status. Arquivos de Gastroenterologia 1976; 13: 19-28.


 Estes trabalhos nos colocavam no estado da arte da produção científica a respeito da bacteriologia do intestino, estávamos naquele dado momento alargando os limites da fronteira do conhecimento. Esta experiência teve uma valia incalculável, porque quando voltei ao Brasil me associei ao grupo do Prof. Luis Rachid Trabulsi, na Escola Paulista de Medicina, um dos maiores pesquisadores de enterobactérias em nível internacional, e inúmeros trabalhos de pesquisa passamos a realizar em conjunto nos anos vindouros. Desde então a pesquisa passou a ser uma das minhas mais importantes prioridades no plano profissional como docente, pois produzir novos conhecimentos é um dos pilares básicos da vida acadêmica.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A inédita experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (2)


A chegada a Buenos Aires e a busca por uma nova moradia




Ao chegarmos a Buenos Aires, em meados de janeiro de 1973, nos instalamos no Hotel Diplomat, localizado na “Calle San Martin”, uma rua paralela à “Calle Florida” (Figura 1).
Figura 1 - Localização do Hotel Diplomat tomando-se como referência a Calle Florida.


O hotel havia sido indicado por um amigo brasileiro porque seu dono, Sr. Alejandro, era casado com uma brasileira cunhada deste meu amigo. Trata-se de um hotel bastante modesto, ainda está em atividade, porém decente e que atendia perfeitamente nossas necessidades momentâneas, já que pretendíamos rapidamente alugar um apartamento para nos instalarmos definitivamente. Não contávamos, entretanto, com as enormes dificuldades para conseguir alugar um imóvel naquela época em Buenos Aires. Uma cidade tão grande, uma verdadeira metrópole, porém com oferta mínima de moradias para alugar. Ficamos sabendo que há muito tempo não havia novas construções na cidade e que o sistema habitacional funcionava muito bem, portanto, não havia demanda para locação de imóveis, posto que o crescimento demográfico na Argentina fosse muito pequeno. O sonho de possuir a casa própria havia se tornado realidade desde o governo de Perón na década de 1950. Buscávamos insistentemente todos os dias nos classificados de “El Clarin” apartamentos para alugar e praticamente não encontrávamos nada que nos pudesse interessar. Além disso, estávamos sós, não conhecíamos ninguém, não havia a quem recorrer para nos auxiliar, oferecer alguma orientação como proceder, mas seguíamos buscando algo que atendesse nossos desejos. Finalmente, após dez dias de busca incessante encontramos um apartamento no bairro La Paternal, muito próximo ao bairro Once (região de comércio de atacado de confecções e varejo mais em conta), um local que em São Paulo equivaleria, à época, ao bairro do Bom Retiro (Figura 2).

Figura 2- Trajeto a ser percorrido desde a nossa casa até o centro comercial de Buenos-Aires representado pela Calle Florida.

Vencida esta etapa era preciso agora mobiliar minimamente o apartamento e isto foi feito com bastante agilidade, pois havia oferta de móveis e eletrodomésticos em grande quantidade e a preços razoáveis. Assim sendo, estávamos definitivamente instalados na nossa moradia portenha no seio da comunidade judaica, bem no centro geográfico de Buenos Aires, distante da “calle Florida”, em direção ao leste cerca de 6 km e do hospital onde iria trabalhar outros 12 km, em direção a oeste (Figura 3).

Figura 3-
Trajeto a ser percorrido desde a nossa casa até o Policlínico Alejandro Posadas, em Haedo, Província de Buenos-Aires.

Estava, a partir deste momento, pronto para iniciar meu trabalho no hospital Policlínico Alejandro Posadas (o nome do hospital é uma homenagem a um famoso médico argentino) (Figuras 4-5-6).
Figura 4- A família na sala de estar do nosso apartamento. O violão servia para matar as saudades de casa.


Figura 5- Desfrutando o fim do verão em Palermo com o filho de 1 ano de idade.


Figura 6- A visita da minha mãe depois de longa ausência.

O hospital Policlínico Alejandro Posadas e o começo das minhas atividades de especialização

O Policlínico Alejandro Posadas, ainda nos dias atuais, é um hospital público federal, localiza-se em Haedo, fora da capital federal, mas que faz parte da área da Grande Buenos Aires, a alguns poucos quilômetros depois de se cruzar a avenida General Paz em direção a oeste (esta avenida circunda a cidade de Buenos Aires e separa a capital federal da Província de Buenos Aires, cuja capital é La Plata). Está situado em uma ampla área de terreno cercado por um enorme gramado e um lindo bosque. Foi construído na década de 1950 para ser um sanatório para tratamento de tuberculose, mas nunca funcionou como tal, e somente foi aberto em 1970, para funcionar como um hospital geral, tendo aproximadamente 1000 leitos sendo 100 deles para Pediatria (Figuras 7-8-9-10-11).
Figura 7- Vista da entrada principal do Policlínico Alejandro Posadas.


Figura 8- Vista lateral do hospital mostrando o bloco da Pediatria.


Figura 9- Vista desde o andar da gastropediatria para a entrada principal do hospital e visão parcial da cidade de Haedo ao fundo.
Figura 10- Vista do jardim de entrada do hospital e visão parcial do centro da cidade de Haedo ao fundo.


Figura 11- Vista da varanda de um dos apartamentos de internação do hospital, o jardim e o bosque na parte posterior. Da esquerda para a direita Jorge Donatone, especializando de La Plata, Mirta Ciocca, residente de terceiro ano, e "Negro" Rodriguez, especializando de La Plata. Donatone especializou-se em Endoscopia, trabalha no hospital Soror Ludovica em La Plata, escreveu um lindo livro sobre endoscopia e atualmente está lançando o segundo livro sobre o tema e me convidou para escrever o Prefácio do mesmo. Mirta especializou-se em Hepatologia, atualmente é Chefe do Serviço de Transplante Hepático do Hospital Garrahan, Buenos Aires, somos grandes amigos desde aqueles dias. "Negro" tornou-se ativista político contra a ditadura que se instalou em 1976 e é um dos desaparecidos.

O serviço de Pediatria, cujo chefe era Dr. Toccalino, já era todo dividido por especialidades pediátricas e os leitos de internação estavam localizados em amplos apartamentos, com banheiro acoplado, na maioria das vezes ocupados por apenas duas camas, nunca mais do que quatro. Os pais tinham permissão para permanecer todo o tempo que desejassem junto com seus filhos, fato totalmente inédito para mim naquela época, porque aqui no Hospital São Paulo, e possivelmente na quase totalidade dos hospitais públicos brasileiros, as crianças permaneciam internadas desacompanhadas e somente era permitida a visita dos pais duas vezes por semana durante o período de meia hora. Apenas no início da década de 1990 é que foi promulgada uma lei criando obrigatoriamente a figura dos pais participantes em todos os hospitais brasileiros. Portanto, foi para mim o primeiro choque, muito positivo por sinal, ter que travar contato direto com os pais das crianças internadas nos leitos que eu cuidava e dar a eles todas as satisfações e explicações do que estava ocorrendo com seus filhos. Diga-se de passagem, isto foi um impacto tão importante para mim que, quando voltei ao Brasil, passei a defender fervorosamente esta idéia, tendo encontrado inúmeras resistências contrárias a essa proposta, e somente consegui implementar este modelo quando me tornei chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Umberto Primo, em São Paulo, a partir de 1986.

O programa de Residência Médica em Pediatria estava bem consolidado e nos primeiros dois anos era semelhante ao nosso, ou seja, Pediatria Geral com rodízios nas enfermarias, ambulatórios e pronto-socorro. No terceiro ano, porém, o Residente escolhia uma especialidade pediátrica, dentre as muitas oferecidas, para se especializar. Eu entrei como médico residente de terceiro ano tendo que cuidar dos meus leitos, realizar os procedimentos de investigação diagnóstica da especialidade e atender o ambulatório de pacientes externos e ex-internados, sob a supervisão de um médico sênior. O ambulatório de pacientes externos eu fazia diretamente com Dr. Toccalino, como seu assistente. Como parte do programa de treinamento tinha também que participar das inúmeras reuniões científicas de apresentação de trabalhos, discussão de casos clínicos, revisão das lâminas das biópsias no serviço de Patologia, e da realização dos exames radiológicos, tudo isto no que se referia à especialização na Gastropediatria (Figuras 12-13). Além disso, uma vez por semana tinha que estar presente na reunião clínico-científica do Serviço de Pediatria, quando todos os médicos contratados, residentes e especializandos participavam com apresentações de casos clínicos das diversas especialidades, e, periodicamente, também havia alguma palestra com um médico convidado externo. Tratava-se, pois, de um programa bastante intenso de atividades assistenciais e científicas em tempo integral, afora as horas extras que eu tinha que conseguir encaixar no meu dia a dia para me dedicar aos estudos mais atualizados da literatura médica.

Figura 12- Reunião de revista com Dr. Toccalino (ao fundo à esquerda); à direita ao fundo Jorge Donatone e mais próximo Eduardo Cueto Rua (outro especializando de La Plata).
Figura 13- Os temíveis "pases de sala" (visitas aos leitos) sob o comando do Dr. Toccalino, quando ele cobrava de todos eficiência no atendimento aos pacientes internados. No primeiro plano à direita está Luis Guimarey especializando de La Plata, tornou-se Nutrólogo, foi preso político durante a ditadura, exilou-se no Brasil por meu intermédio juntamente com sua família, foi professor da UNICAMP e retornou à La Plata assim que terminou a ditadura e atualmente é Chefe do Serviço de Nutrologia do hospital Soror Ludovica. Ainda em primeiro plano à esquerda está "Chango" Córdoba, residente do Posadas, natural de Tucuman, nos tornamos grandes amigos jogando futebol nos fins de semana. Quando terminou a residência foi para La Pampa, interior da Argentina, exercer pediatria como intensivista do hospital local. Depois de 25 anos sem vê-lo, em 1998, recebi um chamado telefônico de sua mulher contando que ele havia sofrido um infarto e estava em Buenos Aires para ser operado e que ele havia dito a ela que queria me ver de qualquer maneira. Por coincidência na semana seguinte eu iria a Tucuman, pois havia sido convidado para dar palestras em um evento científico, então, fiz uma escala em Buenos Aires para vê-lo; ele já havia sido operado, foram colocadas umas quantas pontes de safena, estava convalescendo da cirurgia, recuperando-se muito bem, foi uma emoção enorme nosso reencontro. Voltei a vê-lo pela última vez em Córdoba durante o Congresso Latinoamericano de Gastroenterologia Pediátrica em 2001, ele viajou desde sua cidade, mais de 400 km de distância, especialmente para vir me ver, nos divertimos muito naqueles dias, ele estava especialmente alegre e parecia muito feliz. Na semana seguinte, já de volta a São Paulo, recebi um telefonema da sua mulher contando-me que ele havia falecido, sofreu uma parada cardíaca fulminante enquanto estava atendendo um paciente no hospital local.

Era, enfim, uma experiência maravilhosa e eu me sentia fascinado por tudo aquilo que estava vendo e vivenciando, não somente pelo conhecimento médico adquirido, mas principalmente pelo enriquecimento global como ser humano, sob todos os aspectos que se queira considerar. Além de tudo isso, a oportunidade de poder exercer ativamente a minha profissão, naquele momento específico da carreira, em circunstâncias absolutamente ímpares até então, representava algo de extraordinária importância pelo próprio desafio que encerrava. Participar como protagonista e não como mero espectador dessa nova situação significava vencer uma série de barreiras, e, dentre elas, a primeira e a mais crucial, a adaptação. Tratava-se de um hospital estranho, em uma nação que não era a minha, aonde se falava um idioma diferente do nosso, (ainda que quase todo brasileiro acredite que saiba falar espanhol, eu incluído, o que isto vale, em parte, para os lugares turísticos porque os nativos estão treinados no nosso idioma e tem necessidade profissional de entender e serem entendidos), e que precisava ser totalmente dominado porque era requisito fundamental para tornar possível o relacionamento com colegas e pacientes. Enfim, tudo era novidade na minha existência, a primeira experiência de vida no exterior como cidadão radicado em um país estrangeiro (como turista já havia viajado anteriormente pela América do Sul, Estados Unidos e Europa), e como médico, o que em determinados momentos me deixava profundamente inseguro, para não dizer desesperado, tudo podia ser um grande fracasso pessoal e profissional, mas ao mesmo tempo este desafio extremo era altamente excitante. Com efeito, na prática todas estas dificuldades foram sentidas logo no início das minhas atividades como está registrado no meu diário, três semanas após haver começado a especialização: “devo dizer que fui muito bem recebido, sou muito bem tratado, sinto-me quase que à vontade, mas é claro que o problema da língua atrapalha um bocado, não tanto para compreender, muito embora de algumas pessoas, especialmente de outro especializando que vem de La Plata, consigo entender muito pouco do que falam. Mas, sem dúvida a dificuldade maior é para me fazer comunicar, posto que eles não conseguem entender qualquer palavra que não seja em espanhol, e isto me deixa muito angustiado, sinto-me como um verdadeiro débil mental, enquanto eu falo as pessoas me olham como se eu fosse de outro planeta. Espero que logo mais isto deixe de ser um problema... pelo menos assim espero”. E, de fato, com muito esforço diário para suplantar estas dificuldades, algum tempo depois deixou de ser um problema, o que indiscutivelmente contribuiu de forma decisiva para um ótimo relacionamento pessoal com colegas e pacientes, bem como para aquilo que eu havia me proposto realizar.


Em pouco tempo mais já estava familiarizado com todos aqueles procedimentos da especialidade, teoricamente a razão primordial da minha viagem, mas que na prática resultou em parcela significativa, mas longe de ser a única, pois a experiência de vida que se incorpora nestas circunstâncias tão especiais é incalculavelmente maior. Para demonstrar meu domínio com os procedimentos da especialidade assim ficou registrado em meu diário, em 14 de maio, após três meses e quinze dias de trabalho: “agora já estou totalmente adaptado, tanto na parte médica quanto na comunicação, felizmente superei este obstáculo que muito me preocupava; tenho a responsabilidade direta sobre quatro leitos, os quais me ocupam uma parcela significativa do tempo pela gravidade dos casos e em relação às minhas atividades com os usos das sondas de intubação intestinal e as biópsias de intestino delgado sinto-me completamente à vontade e não tenho tido quaisquer problemas mais. Tenho realizado também algumas retosigmoidoscopias (vale salientar que naquela época não existiam ainda os endoscópios flexíveis específicos para uso em crianças) e participado ativamente, também, em muitos exames radiológicos, bem como, tomado muita radiação. Na parte clínica tenho visto muitas novidades, tanto doenças até então totalmente desconhecidas, quanto outras já conhecidas, mas cuja conduta aqui é bastante diferente daquilo que estava acostumado a ver aí em São Paulo, e a mortalidade destes pacientes é praticamente nula. Fazer o ambulatório com Dr. Toccalino tem sido uma fantástica experiência, ele atende os pacientes, eu me sento ao seu lado e fico observando tudo àquilo que ele faz; no fim da jornada repassamos todos os pacientes atendidos e discutimos cada caso individualmente, o diagnóstico e a conduta a serem tomadas. Estamos construindo um relacionamento extremamente amistoso, ele tem sido muito paciente com minhas dificuldades com o idioma e a rotina do serviço, o que me deixa cada dia mais à vontade e mais seguro de que estou no caminho certo com a escolha que fiz. Vi também o primeiro caso de Doença Celíaca, esta enfermidade tão misteriosa para mim até então (Figuras 14-15).

Figura 14- A primeira paciente com Doença Celíaca que eu vi, cuidada pela Dra. Mirta Ciocca.
Figura 15- A mesma paciente vista de perfil para melhor evidenciar o importante agravo nutricional, desnutrição intensa devido à síndrome de má absorção provocada pela Doença Celíaca.


Tenho a mais absoluta certeza de que muitos desnutridos que vemos em São Paulo, e que são considerados casos de desnutrição por problemas sócio-econômicos, na verdade são portadores de Doença Celíaca. Quando voltar a São Paulo irei investigar estes pacientes obsessivamente, e estou seguro que irei encontrar esta enfermidade no Brasil (o que na verdade ocorreu assim que retornei a São Paulo, e a partir deste primeiro caso, inúmeros outros passaram a ser diagnosticados). O que está me angustiando agora é a quantidade de coisas que a especialidade apresenta e o desejo de estudar tudo ao mesmo tempo, o que é claro, não é possível. Não sei o que fazer! Ultimamente (3 semanas para cá) não tenho estudado muito, ou pelo menos com a mesma continuidade que o vinha fazendo anteriormente, devido as minhas obrigações de cuidar dos meus leitos (pacientes internados) e dos meus dois trabalhos de investigação clínica.”


Como se depreende do relato acima, nesta altura dos acontecimentos os conhecimentos básicos já haviam sido incorporados na minha rotina; tudo o que viria depois suplantou totalmente as melhores expectativas e os planos iniciais. Refiro-me especificamente à investigação clínica. Entrava, então, naqueles dias, orientado por Dr. Toccalino, na área mais apaixonante da Medicina, a investigação. Este era um novo mundo que se descortinava, quase um sonho, me absorvia quase que integralmente, mas que não conflitava com as atividades clínicas, muito ao contrário, as complementava.

No nosso próximo encontro além de continuar relatando minhas atividades hospitalares também descreverei um pouco da vida familiar, social e política vivenciada naquela época de muitas transformações na Argentina, as quais vieram a afetar de forma dramática a vida de toda a população por muitos anos, posto que em um breve futuro chegaria uma feroz e sangrenta ditadura que ceivou a vida de mais de 30.000 pessoas.