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segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Sistema imune do intestino delgado: conceitos atuais (Parte 2)


Natália Oliveira e Silva e Ulysses Fagundes Neto

Enterócitos
Os enterócitos desempenham importante papel no processamento final dos nutrientes e na sua absorção. Eles possuem junções celulares especializadas (complexo juncional), que influenciam na permeabilidade da barreira intestinal. Além disso, os enterócitos tem participação nos mecanismos imunológicos, posto que sintetizam citocinas e quimiocinas, as quais atuam na transdução de sinais inflamatórios e, também, podem agir como células apresentadoras de antígenos (Figuras 5- 6).
Figura 5- Ultramicrofotografia em grande aumento de 2 enterócitos adjacentes evidenciando a junção firme (seta) poro extremamente seletivo dando passagem apenas a água e eletrólitos.


Figura 6- Ultramicrofotografia em grande aumento evidenciando 2 enterócitos adjacentes submetidos a diferentes situações experimentais: 1a- mostra a ruptura da barreira de permeabilidade caracterizada pela mancha enegrecida ao longo de todo o espaço intercelular; 1b- evidencia a preservação da junção firme em situação experimental fisiológica.

Células M
Estas são células epiteliais membranosas, especializadas na captura de antígenos para serem oferecidas aos tecidos linfóides da mucosa intestinal.

Células caliciformes
Estas células são especializadas na secreção do muco que recobre a superfície das vilosidades, e tem por função dificultar a penetração de agentes patogênicos. Além disso, protegem as células epiteliais das enzimas digestivas e lubrificam sua superfície (Figura 7).
Figura 7- Ultramicrofotografia em grande aumento mostrando uma célula caliciforme repleta de muco em seu interior.

Células de Paneth
Estas células estão presentes na base das criptas do intestino delgado, e, em maior concentração no íleo terminal. Elas são responsáveis pela maior produção de proteínas antimicrobianas do intestino delgado, tais como, as lisozimas, a-defensinas, fosfolipase A2 e lecitina. Tem sido demonstrado que estas células tem um mecanismo autônomo para detecção de bactérias com potencial invasivo, além de fungos, protozoários e vírus.

Macrófagos
Eles são responsáveis pela rápida eliminação de microrganismos que penetram na barreira mucosa, posto que atuam na fagocitose e destruição destes patógenos que penetram na lâmina própria.

Enzimas digestivas
Incluem enzimas gástricas, pancreáticas e da borda em escova. Estas enzimas apresentam papel de destaque na proteólise, que é um mecanismo eficaz para diminuir a possibilidade de absorção de proteínas capazes de desencadear reações alérgicas.

Imunidade adaptativa
Este sistema envolve os linfócitos, os quais proporcionam proteção duradoura após exposição ao antígeno, e, se dividem 2 grupos, a saber:
-          Humoral: mediada por linfócitos B e anticorpos produzidos por eles;
-          Celular: mediada por linfócitos T e citocinas.

Imunidade humoral
A resposta humoral do intestino é caracterizada pela produção de IgA no epitélio e sua secreção no lúmen intestinal. Trata-se da imunoglobulina mais abundante da mucosa (80-90%), ela é sintetizada na lâmina própria em resposta à ativação dos linfócitos T das placas de Peyer. Estruturalmente, existem 2 isoformas de IgA, a monomérica e a polimérica. A IgA polimérica secretada é resistente à proteólise intraluminal e tem importante papel no desenvolvimento da tolerância, no lúmen intestinal. A IgA pode formar imunecomplexos com os antígenos alimentares ou com patógenos, neutralizando-os e evitando sua penetração. Além disso, inibe a proliferação viral dentro do enterócito e neutraliza as enterotoxinas.

A IgA pode também atuar a nível intraepitelial e subepitelial, captando os antígenos que atravessam a barreira intestinal. A criança apresentará o mesmo número de células produtoras de IgA do adulto quando atingir 1-2 anos, período que a microbiota se torna semelhante à do adulto.

Imunidade cellular
A imunidade celular é mediada pelos linfócitos T e seus subprodutos. Os linfócitos T CD4+ são classificados em 2 subtipos, e são relacionados da seguinte forma com a inflamação da mucosa intestinal, a saber:
-          Tipo Th1, caracteriza-se por inflamação transmural e granulomatosa, como no caso da Doença de Crohn;
-          Tipo Th2 é caracterizada por inflamações superficiais com exsudato celular inflamatório agudo e edema da mucosa, como ocorre na colite ulcerativa.

Para evitar responder aos antígenos da dieta e à microbiota, o sistema imune do intestino exerce uma ação de supressão, que envolve tanto a tolerância oral, quanto o equilíbrio entre a resposta Th1/Th2, que são importantes fatores para evitar uma resposta imune inapropriada. Um dos mecanismos existentes para promover o equilíbrio entre tolerância e imunidade envolve a presença das células T reguladoras (Treg), que podem suprimir ativamente respostas antígeno-específicas. As células Treg são importantes no controle da resposta imune a antígenos do próprio indivíduo, evitando a autoimunidade e para manter a tolerância.

Linfócitos intraepiteliais
A resposta celular envolve os linfócitos intraepiteliais (LIE) que atuam na manutenção da integridade do epitélio intestinal. Estes localizam-se nos espaços intraepiteliais do intestino, onde são expostos a uma variedade de antígenos microbianos e alimentares. Um subtipo dos LIE, os linfócitos gama-delta, parecem desempenhar importante papel na tolerância oral. Os LIE gama-delta também contribuem com a imunidade adaptativa, restaurando a homeostase da mucosa após um dano ao epitélio, pois promovem o reparo do epitélio através da secreção de fatores de crescimento epitelial. Expressam fatores próinflamatórios e antimicrobianos em resposta a sinais da microbiota, e, consequentemente, atuam na limitação da penetração bacteriana na mucosa lesionada (Figura 8).
Figura 8- Esquema representativo do sistema imune intestinal.

Barreira de Permeabilidade Intestinal e suas possíveis alterações
O intestino constitui a maior interface entre o ser humano e o meio ambiente, e a existência de uma barreira intestinal intacta é, portanto, essencial na manutenção da saúde e na prevenção de doenças. A barreira intestinal possui vários componentes imunológicos e não imunológicos, sendo que a barreira epitelial é um dos componentes não-imunológicos mais importantes. A hiperpermeabilidade desta barreira pode contribuir para a patogênese de várias doenças gastrointestinais incluindo a alergia alimentar, doença inflamatória intestinal e doença celíaca.

Alergia alimentar
Algumas situações podem alterar os mecanismos protetores da barreira de permeabilidade intestinal e colocar em risco a tolerância oral e aumentar a suscetibilidade para o desenvolvimento de alergias alimentares. Dentre estas possíveis situações deve-se considerar o aumento da permeabilidade da barreira intestinal e a baixa atividade enzimática, que são observadas em recém-nascidos, lactentes e desnutridos. Outro fator deve-se à diminuição da secreção ácida gástrica por uso de medicamentos, posto que estes podem alterar a microbiota e reduzir a proteólise. Também deve-se considerar as inflamações intestinais que acarretam lesões vilositárias com consequente aumento da permeabilidade intestinal.
Figura 9- Ultramicrofotografia em grande aumento de 2 espécimes de enterócitos que sofreram diferentes tipo de tratamento experimental: 1- o da esquerda recebeu tratamento fisiológico e pode-se observar 2 enterócitos adjacentes com o espaço intercelular preservado (seta); 2- o da direita foi submetido a uma experimentação para romper a barreira de permeabilidade e permite observar a mancha enegrecida que corresponde a um produto de reação de uma proteína intacta ao longo do espaço intercelular. 

Doenças inflamatórias intestinais
No passado, muitos modelos experimentais responsabilizavam diversos agentes infecciosos como causa e fatores de exacerbação das doenças inflamatórias intestinais (DII). Estes estudos limitavam-se a serem observacionais e não eram investigados laboratorialmente. Por outro lado, atualmente, vem sendo investigada a perda da tolerância imune aos comensais bacterianos entéricos. Foi aventada a existência de uma hipótese que é fortemente justificada pela observação da peculiar flora entérica dos pacientes portadores de DII, a qual caracteriza-se por um aumento do número de bactérias agressivas, tais como Bacteroides, E. coli invasora e Enterococcus, e, também, por uma diminuição das bactérias protetoras, tais como, Lactobacillus e bifidobactérias.

Evidencias crescentes indicam que uma desregulação do sistema imune, geneticamente determinada, contra a flora bacteriana residente possa estar envolvida na patogênese das DII, porque biópsias realizadas neste grupo de pacientes, observaram-se que células T CD4+ representam a vasta maioria de células mononucleares infiltrando o intestino. Estes achados indicam que estas células CD4+ têm papel fundamental na patogênese do dano tissular na DII, especialmente na doença celíaca. Trata-se de um mecanismo que acarreta a ativação descontrolada de células T, mas que ainda não está completamente elucidado. Acredita-se que moléculas contra-reguladoras (TGF beta1, IL-10), envolvidas em manter a tolerância contra a flora residente apresentam uma atividade defeituosa (Figura 10).
Figura 10- Sub-grupos de células CD4+ no lumen do intestino delgado.

Doença de Crohn: um modelo de suscetibilidade genética
A suscetibilidade genética do hospedeiro, ganhou destaque após a descoberta da associação da doença de Crohn com mutações do gene NOD2. Pacientes com defeitos no NOD2 tem redução na expressão de alfa-defensinas antimicrobianas nas células de Paneth, com consequente alteração no reconhecimento bacteriano e controle da inflamação. Estas observações sugerem que o produto do gene NOD2 confere suscetibilidade à doença de Crohn, documentando assim um modelo molecular para o mecanismo patogénico da doença de Crohn, que pode agora ser adicionalmente investigado.

Tradicionalmente, a doença de Crohn tem sido associada a um perfil de citocinas Th1, enquanto que as citocinas Th2 são moduladores da colite ulcerativa. Este conceito tem sido desafiado pela descrição de células T reguladoras (Treg) e por células Th17 pró-inflamatórias, uma nova população de células T, caracterizada pela produção de citocinas pró-inflamatórias e quimiocinas. Vários estudos demonstraram um papel importante das células Th17 na inflamação intestinal, particularmente na doença de Crohn. Investigações de associação do genoma indicam que existem genes envolvidos na diferenciação Th17 que estão associados com a susceptibilidade à doença de Crohn e em parte também com colite ulcerativa. Tomadas em conjunto, as células Th1 e Th17 são mediadoras importantes da inflamação na doença de Crohn. Estas investigações iniciais poderão levar ao conhecimento mais preciso do mecanismo de produção das DII.

Conclusões

Atualmente está plenamente demonstrado o papel fundamental do sistema imune intestinal na regulação do equilíbrio entre o organismo do hospedeiro e a microbiota que habita seu trato digestivo, evitando que ocorram situações patológicas em detrimento do bem estar de saúde do hospedeiro. Trata-se de um sistema altamente sofisticado que necessita a interação de inúmeros fatores para a preservação  da sua total integridade.

Até o presente momento há pouco consenso sobre o possível papel de proteção da barreira intestinal para a prevenção ou tratamento das DII. No entanto, várias medidas de proteção têm sido utilizados para melhorar a função da barreira intestinal, como o uso de antioxidantes, o fator de crescimento e a nutrição enteral.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (3)

Conceito da Barreira de Permeabilidade Intestinal
O trato gastrointestinal representa uma extensa barreira física ao ambiente exterior com o objetivo de proteger nosso organismo das potenciais agressões físicas e químicas, representadas por eventuais produtos nocivos dos alimentos, dos agentes patogênicos existentes na natureza e mesmo dos simbióticos microorganismos que naturalmente nos colonizam desde a boca até o reto e com os quais obrigatoriamente de forma cotidiana convivemos. Concomitantemente, associado a esta barreira física, o sistema imunológico, por meio do tecido linfóide intestinal, funciona também como mais um fator de proteção, possuindo a capacidade de discriminar proteínas estranhas, ou microorganismos comensais, ou perigosos agentes enteropatogênicos.

Além disso, o trato gastrointestinal nos fornece também uma formidável superfície absortiva equivalente em área ao tamanho de uma quadra de tênis (aproximadamente 200 m²), para que normalmente possam ocorrer os processos digestivo-absortivos, os quais são essenciais para a preservação do estado nutricional e, conseqüentemente, a manutenção da vida (Figuras 1 & 2).
Figura 1- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum apresentando morfologia normal. As vilosidades são digitiformes e representam uma relação vilosidade:cripta 5/1. As células epiteliais são cilíndricas com núcleo em posição basal e o infiltrado linfo-plasmocitário encontra-se dentro dos limites da normalidade.

Figura 2- Vilosidade individualizada em aumento maior com aspecto digitiforme. As células epiteliais (enterócitos) são cilíndricas com núcleo em posição basal e se assentam na membrana basal. Células califormes produtoras de muco podem ser observadas ao longo das vilosidades (células esbranquiçadas arredondadas).
A barreira de permeabilidade intestinal (Figura 3) constitui uma importante adaptação do trato digestivo ao meio ambiente extra-uterino (no interior do útero o feto se desenvolve em um meio totalmente estéril protegido pelo líquido aminiótico, o qual é envolvido pela bolsa aminiótica) contra a penetração de antígenos e fragmentos antigênicos usualmente presentes no lúmen intestinal. Ao nascer, o recém-nascido necessita estar preparado para conviver com a colonização bacteriana do intestino, com a formação de subprodutos tóxicos pelas bactérias e vírus (enterotoxinas e endotoxinas) e com a ingestão de potenciais antígenos alimentares (proteínas do leite de vaca e da soja, por exemplo). Estas substâncias que são imunologicamente ativas se conseguirem romper a barreira da mucosa intestinal e, por conseguinte, penetrar na circulação sanguínea, podem causar reações inflamatórias ou alérgicas, as quais poderão resultar, por sua vez, em enfermidades gastrointestinais ou sistêmicas.

Figura 3- Exemplo gráfico de transporte de macromoléculas em situação normal e patológica, quando há fracasso de um ou mais mecanismos de constituição da barreira de permeabilidade intestinal.
A Tabela abaixo elenca os componentes da Barreira de Permeabilidade Intestinal contra a penetração de Antígenos

A- Não ImunológicosIntraluminaisAcides gástrica
Proteólise
Peristaltismo Intestinal

Superfície Mucosa
Cobertura de Muco
Membrana das Microvilosidades
Poros intercelulares

B- Imunológico
Sistema da IgA secretora

C- Combinação de fatores imunológicos e não ImunológicosFormação de imune-complexo mediado pelo muco
Proteólise na superfície mucosa facilitada pela formação de imune-complexo
Fagocitose pelas células de Kupffer dos imune-complexos formados

O ácido clorídrico produzido pelas células parietais da mucosa gástrica tem, entre outras finalidades, funcionar como a primeira potente barreira química contra as agressões de microorganismos patogênicos que por ventura venham a ser ingeridos pelo hospedeiro. Ao mesmo tempo também atua na primeira fase da digestão dos nutrientes, em especial as proteínas, formando complexos menores que irão ser mais facilmente digeridos pelas enzimas proteolíticas pancreáticas. O peristaltismo intestinal age como fator mecânico de depuração dos potenciais agentes tóxicos e/ou microorganismos patogênicos ingeridos com a alimentação.

A cobertura de muco (por meio da sua espessura e composição química) que se deposita sobre a superfície das microvilosidades intestinais contribui de forma especial contra a adesão e penetração de antígenos. O muco é produzido pelas células caliciformes, as quais se encontram intercaladas aos enterócitos ao longo de todas as vilosidades intestinais (Figura 4- 5 - 6 & 7). A espessura física da cobertura de muco sobre a superfície da mucosa intestinal pode se expandir na dependência do estímulo antigênico recebido, contribuindo, assim, como um fator de expulsão de parasitas e antígenos microbianos intestinais.
Figura 4- Ação protetora física e química da cobertura de muco sobre o epitélio intestinal.


Figura 5- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia eletrônica com estrutura preservada evidenciando a formação das microvilosidades no topo da imagem formando uma verdadeira paliçada. No interior do citoplasma podem ser observados alguns retículos endoplásmicos rugosos, mitocondrias e corpos multivesiculares.

Figura 6- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica destacando as microvilosidades em maior aumento e as micromiofibrilas que delas emergem e que dão suporte ao muco produzido pelas células califormes.

Figura 7- Material de biópsia do intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando uma célula caliciforme produtora de muco.
Os poros intercelulares apresentam dimensões bem determinadas, e, de tal forma a permitirem a passagem apenas de água e pequenos íons, como por exemplo, sódio e cloro. Eles se constituem em um importante mecanismo fisiológico para absorção de água e eletrólitos, e, em condições normais, exceto nos primeiros meses de vida, não permitem a penetração de macromoléculas intactas (Figuras 7 & 8).

Figura 8- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando duas células adjacentes com poro intercelular intacto e a presença de um desmosoma em botão que confere a limitação do tamanho do poro.

Figura 9- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia eletrônica mostrando ruptura discreta do poro intercelular. Notar a presença, em negro, de um marcador macromolecular (Horseradish peroxidase) ao longo do espaço interceluilar.
Em situações patológicas, como por exemplo, nas infecções entéricas por determinados agentes enteropatogênicos, a função seletiva destes poros intercelulares pode estar seriamente comprometida, e, portanto, passar a dar lugar para a penetração maciça de antígenos e levar ao surgimento de alergias alimentares (Figuras 9 & 10).
Figura 10- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum em grande aumento, corte semi-fino, mostrando colônias de Escherichia coli enteropatogênica firmemente aderidas à superfície mucosa provocando intensas alterações morfológicas no epitélio intestinal.


Figura 11- Esquema gráfico da sequência fisiopatológica da provocação de alergia alimentar devido à infecção por Escherichia coli enteropatogênica.
No nosso próximo encontro seguiremos na descrição dos outros componentes da barreira de permeabilidade intestinal, em especial, o sistema da IgA secretora.