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quinta-feira, 7 de maio de 2015

Constipação Intestinal Funcional na Infância: Manifestações Clínicas, Diagnóstico, Investigação Laboratorial e Tratamento (Parte 1)

Ulysses Fagundes-Neto

Professor Titular da Disciplina de Gastroenterologia, Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo
Diretor Médico do Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo (I-Gastroped)

Introdução

A constipação funcional é um transtorno comum na infância com uma estimativa global de 3% de prevalência no mundo ocidental (1). Entre 17% e 40% das crianças a constipação tem início no primeiro ano de vida (2). Em nosso meio, em atendimento ambulatorial de gastroenterologia pediátrica, a constipação funcional afeta até 30% dos pacientes que buscam assistência médica. A constipação é uma condição clínica debilitante caracterizada por evacuações dolorosas e pouco frequentes, escape fecal e dor abdominal. A constipação provoca um grande transtorno para a criança e sua família, e pode mesmo resultar em graves distúrbios emocionais com inclusive desarmonia familiar. A fisiopatologia da constipação funcional é indubitavelmente multifatorial e até o presente não está completamente esclarecida. O comportamento de retenção é provavelmente a causa mais importante para o desenvolvimento da constipação. Este comportamento pode ser desencadeado por uma produção prévia de fezes de grosso calibre e endurecidas que causam dor para evacuar e, consequentemente, provocam o surgimento de fissura anal. Este evento pode ser a causa primária desencadeante do mecanismo de retenção fecal ou ainda, em determinadas circunstâncias, a retenção fecal pode ter seu início em uma resistência por parte da criança em utilizar outro vaso sanitário que não seja o próprio. Até a presente data, somente 50% de todas as crianças com constipação são tratadas com êxito e se veem livres de laxantes depois de 12 meses de tratamento intensivo (3). Em nossa experiência verificamos que 25% dos pacientes que apresentaram constipação antes dos 5 anos de idade continuaram a sofrer queixas importantes de constipação, caracterizadas por evacuações dolorosas e escape fecal além da puberdade (4).   
                          
Embora possa haver diversas etiologias para a constipação, na maioria dos casos as crianças que referem esses sintomas não apresentam doença orgânica detectável.

Definição

O termo constipação é derivado de uma palavra latina “constipare” que significa “reunir, estreitar, apertar”. Constipação trata-se de um diagnóstico clínico. Durante muitos anos médicos, pacientes e pais usaram diferentes definições para caracterizar constipação. Por esta razão, a elaboração de um consenso para definir constipação foi necessária para tornar apropriado seu diagnóstico e também permitir que pesquisadores comparassem os resultados dos seus estudos entre eles.

Atualmente, a definição mais largamente aceita para a caracterização da constipação funcional baseia-se no Critério de Roma III (5). Este critério divide a constipação funcional em dois grupos de acordo com as idades dos pacientes. Lactentes e pré-escolares até 4 anos devem preencher dois ou mais dos critérios por pelo menos um mês, enquanto que aqueles maiores de 4 anos necessitam preencher dois ou mais critérios por pelo menos 2 meses (Tabela 1). Dor abdominal é um sintoma frequentemente associado à constipação, mas sua presença não é considerada necessariamente um critério obrigatório para tal diagnóstico. O papel que a constipação desempenha nas crianças com dor abdominal predominante não está bem esclarecido.

Um subgrupo de lactentes que apresentam dificuldades relacionadas a evacuação foram categorizadas de acordo com os Critérios de Roma III como portadoras da “disquezia do lactente”. Esta condição é caracterizada quando ocorre em lactentes maiores de seis meses que apresentam um esforço de pelo menos 10 minutos, acompanhado de choro, antes da eliminação de fezes pastosas, na ausência de quaisquer problemas de saúde. Os pais descrevem que os lactentes apresentam um esforço por muitos minutos associado a gritos, choro e enrubescimento da face. Os sintomas persistem por 10 ou 15 minutos até que fezes pastosas ou líquidas sejam eliminadas e, usualmente, as evacuações são diárias. Os sintomas costumam iniciar nos primeiros meses de vida e desaparecem espontaneamente após algumas semanas (6).

Nem todas as crianças com problemas de evacuação preenchem os Critérios de Roma III, e por isso, outras definições tem sido propostas. Estas definições são menos exigentes e, na verdade,  incluem somente “dificuldade para evacuar por pelo menos duas semanas e que causam significante estresse para o paciente” (7). Embora essas definições sejam mais inclusivas, muito provavelmente englobam um grupo mais heterogêneo de pacientes.

Diagnóstico da constipação funcional e sinais de alarme que sugerem a presença de uma causa orgânica associada à constipação

O diagnóstico da constipação baseia-se inicialmente na história e no exame físico, e o papel mais importante obtido por meio destas observações é para tentar excluir outros transtornos que podem se apresentar com dificuldades para a evacuação e identificar as possíveis complicações. As informações que devem ser ativamente buscadas incluem a idade de início dos sintomas, o sucesso ou fracasso do treinamento esfincteriano, a frequência e a consistência das fezes, neste último caso preferentemente expresso de acordo com a escala de Bristol (8) ou de Amsterdan (9), dor e/ou sangramento na eliminação das fezes, coexistência de dor abdominal ou escape fecal, comportamento de retenção, história dietética, alterações do apetite, náuseas e/ou vômitos e perda de peso. O conhecimento da idade da criança quando do início dos sintomas é um dado extremamente importante para se avaliar a gravidade do problema. Por exemplo, caso os sintomas tenham se iniciado em um lactente com menos de 1 mês de idade deve-se levantar a suspeita diagnóstica da existência de uma condição orgânica tal como a doença de Hirschsprung (10). O momento da eliminação do primeiro mecônio é especialmente relevante para avaliar o risco da doença de Hirschsprung; o retardo da eliminação do mecônio por mais de 48 horas em um neonato de termo leva à necessidade da realização de investigação para confirmar ou descartar este diagnóstico. Embora 99% dos neonatos de termo sadios eliminem mecônio antes das 48 horas do nascimento, 50% dos neonatos que sofrem da doença de Hirschsprung também eliminam mecônio nas primeiras 48 horas de vida (11,12). Deve-se ter em mente que a ausência da eliminação do mecônio nas primeiras 48 horas de vida embora seja sugestiva da doença de Hirschsprung, ainda assim não estabelece o diagnóstico definitivo.

A informação também deve ser obtida a respeito dos possíveis tratamentos prévios e mesmo o atual. Idealmente deve-se utilizar um diário de 03 dias para que se possa avaliar com maior confiança a ingestão alimentar e de líquidos. A história medicamentosa prévia deve ser obtida incluindo o uso de laxantes, enemas, supositórios, ervas e outras medicações, bem como algum possível tratamento comportamental.

É importante investigar a história do desenvolvimento neuromotor e psicossocial, tais como possíveis desajustes familiares, interação com seus pais e também o temperamento da criança. A história familiar deve ser cuidadosamente obtida, na busca de outras doenças gastrointestinais (alergia alimentar, doença inflamatória intestinal, doença celíaca e doença de Hirschsprung) e também alterações em outros órgãos, tais como, a tireoide, paratireoide, rins, ou doenças sistêmicas, como por exemplo, a fibrose cística.  O exame físico deve estar especificamente voltado para os parâmetros de crescimento, exame do abdome (tonos muscular, distensão e massa fecal palpável), inspeção da região perianal (posição do ânus, presença de fezes ao redor do ânus, eritema, pregas cutâneas e fissuras anais), e exame da região lombo sacral (tufos de pelos, desvio da linha glútea, glúteos planos e agenesia sacral). É necessária a realização do toque retal para avaliar a possível presença de estenose anal e massa fecal. A evacuação explosiva após a retirada do dedo do examinador é sugestivo da doença de Hirschsprung (resultado de um esfíncter hipertônico). O medo excessivo por parte da criança durante a inspeção anal e/ou a presença de fissuras e hematomas deve levantar a suspeita de abuso sexual. Os diagnósticos diferenciais estão listados na Tabela 2. Os sinais de alarme que devem alertar o clínico a respeito de uma condição concomitante responsável pela constipação estão descritos na Tabela 3. 

Investigação diagnóstica laboratorial e de imagem

Em geral investigações laboratoriais devem ser somente solicitadas em caso de dúvida ou para excluir uma enfermidade de base tal como Doença Celíaca ou Hipotireoidismo. Frequentemente a indicação de exames adicionais para o diagnóstico da constipação na infância inclui radiografia do abdome, com ou sem o uso de marcadores rádio-opacos para avaliar o tempo de trânsito colônico e ultrassonografia abdominal. É importante ressaltar que um ou mais destes exames devem ser solicitados de acordo com as possíveis necessidades clínicas individuais, a critério do médico assistente. Entretanto há controvérsias quanto a contribuição destes exames de imagem para à acurácia do diagnóstico da constipação na infância, os quais não são recomendados pelas normas de conduta inglesa (13) e holandesa (14).       

- Radiografia simples do abdome

Uma revisão de 5 estudos que avaliaram a importância do grau de presença de fezes na topografia dos cólons por meio da radiografia simples do abdome, demonstrou que o retardo do trânsito colônico pode estar presente em quaisquer dos segmentos analisados. Os sistemas de escore propostos variaram consideravelmente entre os autores e da mesma forma diversificaram a sensibilidade e a especificidade para a caracterização de excessiva retenção fecal; portanto, na prática clínica torna-se pouco confiável a utilização dos referidos sistemas de escore. A realização da radiografia simples de abdome fornece, na verdade, informações genéricas a respeito dos segmentos colônicos que potencialmente possam apresentar retenção fecal.  Além disso, a radiografia simples do abdome permite avaliar a existência de alguma anormalidade da coluna vertebral lombo-sacral (15). 

- Manometria anorretal

A manometria anorretal é um teste de rastreamento extremamente útil e está indicado em crianças que apresentam constipação e alguns sintomas que possam sugerir a presença da doença de Hirschsprung, tais como a instalação precoce da constipação, a falta de resposta ao tratamento rotineiro e a detecção da ampola retal vazia ao toque digital. A presença do reflexo inibidor reto-anal exclui a doença de Hirschsprung. Na ausência do reflexo inibidor reto-anal é imperiosa a realização da biópsia retal para confirmar o diagnóstico da doença de Hirschsprung (16).

- Radiografia por Enema de Bário

A radiografia por enema de Bário não está indicada como uma ferramenta diagnóstica porque não representa uma alternativa válida à manometria ano-retal ou à biópsia retal para excluir o diagnóstico da doença de Hirschsprung a despeito da idade do paciente. Entretanto, pode ser considerada sua utilização nos casos confirmados da doença de Hirschsprung para avaliar a extensão do segmento agangliônico previamente à cirurgia (17). 

Tratamento

Os objetivos do tratamento das crianças com constipação estão voltados para restaurar o padrão rotineiro das evacuações (fezes pastosas e evacuações indolores), desaparecimento do escape fecal e prevenção de recidivas. Há quatro passos importantes para serem dados durante o processo terapêutico, a saber: 1- Educação; 2- Desimpactação; 3- Prevenção da formação do bolo fecal e 4- Acompanhamento clínico.

-Educação



O tratamento da constipação na infância deve-se iniciar pela abordagem não acusatória dos pais e dos profissionais da saúde. É necessário fornecer informação detalhada a respeito da prevalência e dos sintomas, inclusive antevendo a ocorrência de períodos intermitentes de agravos e de alívios da constipação. É também importante explicar aos pais e, quando possível, à criança, a respeito da etiologia do escape fecal. O escape fecal ocorre em virtude da produção de fezes amolecidas e/ou semilíquidas decorrente da existência do bolo fecal impactado no reto, o qual provoca a produção de uma secreção serosa pela mucosa retal que arrasta pequenas quantidades de material sólido dos bordos do bolo fecal. Desta forma a criança não consegue reter este material semilíquido e, portanto, este evento não deve ser encarado como um distúrbio comportamental da criança. Uma explanação clara deste processo auxiliará os pais e a criança na melhor compreensão deste sinal tão frustrante, o que deverá ser mais facilmente aceito. Uma revisão sistemática da literatura mostrou que somente 50% de todas as crianças acompanhadas de 6 a 12 meses apresentaram recuperação total do escape fecal e foram “desmamadas” com sucesso do uso de laxantes (18). Os familiares e a criança necessitam ser informados deste percentual antes do início do tratamento para se tentar conseguir um aumento da adesão ao mesmo. 


Além da educação, aconselhamento dietético também deve ser oferecido, o qual consiste na ingestão rotineira de líquidos e fibras. Não há uma evidência de que a ingestão aumentada de líquidos ou fibras no tratamento da constipação esteja suficientemente confirmada para que se faça a recomendação destes elementos no manejo da constipação funcional. Entretanto, um aumento do consumo de líquidos para alcançar os níveis diários recomendados é essencial. Usualmente, o lactente necessita receber 150 ml/kg/dia de líquidos. Crianças sadias pesando 10 ou mais quilogramas necessitam de 1000 a 1500 ml/dia. A quantidade recomendada da ingestão de fibras para crianças acima de 2 anos deve ser calculada levando-se em consideração a idade em anos, acrescida de 5 g/dia (por exemplo: uma criança de 7 anos de idade deve ingerir 12 g/dia de fibra) (19). 

A despeito do fato de que não haja uma evidência definitiva do aumento da atividade física para o alivio da constipação, exercícios físicos devem ser estimulados. Há consenso sobre a observação clínica de que a falta de atividade física pode ser um fator contribuinte para a constipação. A atividade física rotineiramente recomendada consiste em uma hora por dia de exercício de intensidade moderada. Além disso, todas as crianças com idade de desenvolvimento neuropsicomotor correspondente a 4 anos, devem ser instruídas a tentar evacuar no vaso sanitário durante 5 a 10 minutos depois de cada refeição (2x ao dia). 

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Constipação funcional: diagnóstico e tratamento (2)

TRATAMENTO

Os objetivos do tratamento das crianças com constipação devem estar voltados para restaurar o padrão rotineiro das evacuações (fezes pastosas e evacuações indolores), desaparecimento do escape fecal e prevenção de recidivas. Há quatro passos importantes para serem dados durante o processo terapêutico e que devem ser enfatizados, a saber: 1- Educação; 2- Desimpactação; 3-Prevenção da formação do bolo fecal e 4- Acompanhamento clínico.

1- Educação
O tratamento da constipação deve começar pela desmistificação, educação e ao mesmo tempo por uma abordagem não punitiva por parte dos pais e médicos. Deve ser fornecida informação detalhada a respeito da prevalência e dos sintomas, inclusive antevendo a ocorrência de períodos intermitentes de agravos e de alívios da constipação. Esta informação deve também conter uma explicação aos pais e, quando possível, à criança, a respeito da etiologia do escape fecal. O escape fecal ocorre em virtude da produção de fezes amolecidas decorrente e/ou semilíquidas da existência do bolo fecal impactado no reto, o qual provoca a produção de uma secreção serosa pela mucosa retal que arrasta pequenas quantidades de material sólido dos bordos do bolo fecal. Desta forma a criança não consegue reter este material semilíquido e, portanto, este evento não deve ser encarado como um distúrbio comportamental da criança. Uma explanação clara deste processo auxiliará os pais e a criança na melhor compreensão deste sinal tão frustrante, o que deverá ser mais facilmente aceito. Uma revisão sistemática da literatura mostrou que somente 50% de todas as crianças acompanhadas de 6 a 12 meses apresentaram recuperação total do escape fecal e foram “desmamadas” com sucesso do uso de laxantes. Os familiares e a criança devem ser informados deste percentual antes do início do tratamento para se tentar conseguir um aumento da adesão ao mesmo.

Além da educação, aconselhamento dietético também deve ser oferecido, o qual consiste na ingestão rotineira de líquidos e fibras. Não há uma evidência de que a ingestão aumentada de líquidos ou fibras no tratamento da constipação esteja suficientemente confirmada para que se faça a recomendação destes elementos no manejo da constipação funcional. Entretanto, um aumento do consumo de líquidos para alcançar os níveis diários recomendados é essencial. Usualmente, o lactente necessita receber 150 ml/kg/dia de líquidos. Crianças sadias pesando 10 ou mais quilogramas necessitam de 1000 a 1500 ml/dia. A quantidade recomendada da ingestão de fibras para crianças acima de 2 anos deve ser calculada levando-se em consideração a idade em anos, acrescida de 5 g/dia (por exemplo: uma criança de 7 anos de idade deve ingerir 12 g/dia de fibra).

A despeito do fato de que não haja uma evidência definitiva do aumento da atividade física para o alivio da constipação, exercícios físicos devem ser estimulados. Há um consenso sobre a observação clínica de que a falta de atividade física pode ser um fator contribuinte para a constipação. Uma atividade física rotineiramente recomendada consiste em uma hora por dia de exercício de intensidade moderada. Além disso, todas as crianças com idade de desenvolvimento neuropsicomotora correspondente a 4 anos de idade, devem ser instruídas a tentar evacuar no vaso sanitário durante 5 a 10 minutos depois de cada refeição (3x ao dia).

2- Desimpactação
É do conhecimento geral que o tratamento da constipação torna-se menos eficiente caso a impactação fecal não seja inicialmente tratada. Deve-se utilizar uma associação da história clínica pregressa e o exame físico para estabelecer o diagnóstico da impactação fecal – deve-se obter informação sobre possível escape fecal e o achado de bolo fecal à palpação da fossa ilíaca esquerda e/ou mesmo por meio do toque retal. A realização da desimpactação fecal previamente ao início do tratamento de manutenção por meio do uso de laxantes orais ou retais é recomendada para aumentar a taxa de sucesso e reduzir o número de episódios de escapes fecais. Há muitos anos já tem sido comprovado que a omissão da realização da desimpactação inicial passando-se diretamente para o uso de laxantes orais resulta em um aumento do número dos episódios de escape fecal. Por outro lado, um ensaio clínico controlado e randomizado recentemente realizado comparando a utilização de enemas diários e Polietilenoglicol (PEG) (1,5g/kg/dia) durante 6 dias consecutivos mostraram-se igualmente eficientes no tratamento da impactação fecal em crianças com constipação funcional. Na verdade, quando se comparou o uso do PEG com o do enema, o primeiro mostrou-se associado a um maior número de escapes fecais. Considerando-se os dados deste estudo, deve-se dar preferência à utilização de enemas para obter-se melhor resultado para debelar a impactação fecal.

3- Terapia de Manutenção
Após o curto período da desimpactação deve-se iniciar a terapia de manutenção para prevenir a formação de um novo bolo fecal. Há diversos laxantes para uso por via oral, e, em algumas ocasiões enemas, que podem ser prescritos, a saber: laxantes osmóticos, tais como a Lactulose e PEG; laxantes estimulantes, tais como bisacodil ou sena, ou umidificadores das fezes, tais como o óleo mineral. Nós discutiremos as evidências existentes no que dizem respeito aos laxantes mais frequentemente utilizados, Lactulose e PEG. Duas revisões sistemáticas avaliaram a eficácia do PEG com ou sem eletrólitos versus placebo no tratamento da constipação crônica em crianças. Embora o PEG com eletrólitos tenha resultado em um alívio significativo da constipação em comparação com o placebo no que diz respeito à diminuição da dor para evacuar e no número de evacuações por semana, ele não apresentou diferenças no número médio de episódios de escape fecal entre os grupos estudados. Recentemente foi realizada uma revisão sistemática da literatura envolvendo 5 ensaios clínicos comparando PEG com Lactulose. Dois destes estudos mostraram que a eficácia do PEG foi superior à Lactulose no que diz respeito ao aumento no numero de evacuações, enquanto que os outros três estudos não demonstraram diferenças significativas no aumento da frequência das evacuações. Em geral, a Lactulose parece ter provocado mais efeitos colaterais diversos, como por exemplo, dor abdominal, comparado ao PEG. Porém, efeitos colaterais intensos são infrequentes quando a Lactulose é usada em doses apropriadas e sob supervisão adequada.

O manual de conduta holandês recomenda o emprego de Lactulose como medicamento de primeira escolha para o tratamento da constipação funcional em crianças menores de um ano de idade. Para crianças maiores de um ano de idade ambos, Lactulose e PEG (com ou sem eletrólitos), podem ser indicados como medicamentos de primeira escolha para o tratamento da constipação funcional. Uma das principais razões para se recomendar o uso de Lactulose ao invés de PEG em crianças menores de um ano de idade na Holanda, é o aspecto da segurança, posto que a Lactulose tem sido usada durante muito mais anos do que o PEG, sem provocar efeitos colaterais graves. A Tabela 4, abaixo, descreve os laxantes orais e retais mais frequentemente utilizados e suas respectivas doses.

O manual de conduta holandês recomenda que a medicação deva ser somente gradualmente diminuída depois de pelo menos dois meses consecutivos de tratamento e o paciente deve estar livre dos sinais de constipação. As crianças que estiverem no processo de treinamento do controle esfincteriano devem permanecer recebendo laxantes até que este processo esteja bem estabelecido. Os laxantes não devem ser suspensos abruptamente, mas as doses devem ser gradualmente reduzidas durante um período de alguns meses desde que haja uma resposta positiva quanto à frequência das evacuações e a consistência das fezes. As figuras 1 e 2 mostram dois algoritmos para o diagnóstico e o tratamento da constipação funcional da criança de acordo com o manual de conduta holandês: um para crianças menores de um ano de idade e outro para crianças acima de um ano de idade.

Algorítmo 1

Algorítmo 2

No nosso próximo encontro continuarei a abordar o tratamento da Constipação Funcional na infância.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (6)

Distúrbios da Evacuação

A freqüência das evacuações nos lactentes e pré-escolares sadios tende a diminuir à medida que as crianças avançam na idade. Lactentes que recebem aleitamento natural chegam a evacuar até 12 vezes ao dia ou podem mesmo evacuar apenas 1 vez por semana. Por outro lado, lactentes que recebem aleitamento artificial à base de fórmulas tendem a eliminar fezes mais firmes desde as primeiras semanas de vida. Em particular, esses lactentes podem sofrer dor para evacuar e, em conseqüência, passam a apresentar predisposição para desenvolver constipação funcional.

Usualmente, ocorre um declínio na freqüência das evacuações, a qual em média é de 4 vezes por dia na primeira semana para 1 a 2 vezes por dia até o quarto ano de vida. Aproximadamente 97% das crianças entre 1 e 4 anos de vida evacuam de 3 vezes diariamente a 1 vez em dias intercalados. É importante enfatizar que não é possível acelerar a aquisição dos controles esfincterianos vesical e intestinal por meio da realização de um treinamento intensivo. A iniciativa demonstrada pela própria criança do desejo de se livrar das fraldas é um indicativo importante de que ela já se encontra em condições de receber o treinamento apropriado. A maioria das crianças alcança o controle voluntário parcial da evacuação ao redor dos 18 meses de vida, porém a idade em que este controle torna-se completo varia consideravelmente. É bem conhecido que aos 4 anos de idade 98% das crianças detém o controle esfincteriano voluntariamente.

As preocupações relacionadas aos problemas da evacuação são responsáveis por aproximadamente 25% das consultas ambulatoriais ao gastroenterologista pediátrico, e disto passaremos a nos ocupar a seguir.

1- Disquezia do Lactente
A disquezia se caracteriza pelo relato dos familiares dos lactentes quando estes últimos apresentam dificuldades para evacuar. Nestas circunstâncias o lactente faz um grande esforço para evacuar durante longos minutos, com choro intenso, irritabilidade e rubor facial devido ao esforço. Os sintomas costumam persistir durante cerca de 10 a 20 minutos até que venha a ocorrer a eliminação de fezes pastosas e às vezes mesmo fezes líquidas. Estes sintomas são o prenúncio de que mais adiante surgirão os sintomas clássicos da Síndrome do Intestino Irritável. Os sintomas se iniciam nas primeiras semanas de vida e desaparecem espontaneamente depois de algumas semanas.

O médico deve obter uma história clínica detalhada, analisar o gráfico de crescimento pondero-estatural e realizar um exame clínico que inclui toque retal (na presença dos familiares) para descartar anormalidades ano-retais.


Os critérios diagnósticos para a “Disquezia do Lactente” devem incluir todos os seguintes sintomas nos lactentes desde o nascimento até os 6 meses de idade:
1. Pelo menos 10 minutos de grande esforço para evacuar associado a choro intenso antes da evacuação.
2. O lactente não deve apresentar nenhum outro problema de saúde.

2- Constipação Funcional
Constipação é uma queixa principal em cerca de 3% das consultas em Pediatria, e aproximadamente 40% das crianças desenvolvem o problema durante o primeiro ano de vida. Admite-se que a dor para evacuar seja uma razão primordial para o surgimento do comportamento de retenção das fezes. A identificação de uma massa fecal palpável nos flancos antes da evacuação representa um aspecto característico da constipação funcional. A defecação dolorosa de um bolo fecal geralmente acarreta uma resistência para a criança evacuar e isto leva a um círculo vicioso de difícil solução.

O diagnóstico da constipação funcional deve ser estabelecido pela história clínica e pelo exame físico. A rigor, pouca ou nenhuma investigação laboratorial é necessária ou desejável para se estabelecer o diagnóstico. A instalação dos sintomas freqüentemente surge durante 1 de 3 períodos da vida, a saber: (1) na fase de lactente, com o surgimento de fezes endurecidas, geralmente no momento que corresponde à transição do aleitamento natural para a introdução de fórmulas comerciais e/ou a introdução de dieta sólida; (2) na idade pré-escolar durante a fase do treinamento esfincteriano, quando o lactente está tentando controlar suas evacuações e eventualmente pode apresentar dor ao evacuar; (3) quando a criança tem que ir para a escola e por questões variadas evita evacuar durante todo o dia. As crianças que apresentam comportamento de retenção usualmente assumem posições e atitudes que dificultam a ação fisiológica da evacuação, tais como permanecer na posição ereta, agarrar-se a alguma mobília, cruzar as pernas, ou mesmo esconder-se em algum canto do ambiente doméstico.

Em algum momento durante a vigência da constipação pode vir a ocorrer escape fecal e como as fezes que são eliminadas pelo escape geralmente são líquidas podem ser confundidas com um episódio de diarréia. O escape fecal ocorre quando o bolo fecal endurecido mantém contato com a mucosa e, por atrito, provoca uma secreção líquida que é eliminada quando o paciente inadvertidamente relaxa o esfíncter anal externo (durante o sono, devido ao cansaço ou na tentativa de eliminação de gases).

Ao exame físico geralmente é possível palpar o bolo fecal no flanco esquerdo na região que topograficamente corresponde ao colo descendente e ao sigmóide. O toque retal deve ser realizado (na presença dos familiares) para confirmar o diagnóstico, porém, sempre após o estabelecimento de uma relação de boa intimidade e confiança com o paciente, para evitar uma reação negativa de medo ou constrangimento.

Os sintomas se devem ao esforço voluntário da criança para evitar a evacuação. A dor abdominal ocorre em virtude das contrações colônicas normais, que impulsionam o conteúdo luminar em sentido distal e o qual se choca com o esfíncter anal externo contraído (músculo voluntário).

Os critérios diagnósticos para a “Constipação Funcional” devem incluir todos os seguintes sintomas nos lactentes até os 4 anos de idade:
1. Duas ou menos evacuações por semana
2. Pelo menos um episódio de escape fecal por semana
3. História de retenção excessiva de fezes
4. História de dor para evacuar e fezes endurecidas
5. Presença de bolo fecal palpável no reto
6. História de fezes de grande calibre que chegam a obstruir o vaso sanitário.

No nosso próximo encontro continuarei a discutir as mais variadas nuances e os novos conhecimentos deste excitante problema que afeta um sem número de crianças em todo o globo terrestre.