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terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Transtornos Gastrointestinais Funcionais: Critérios de Roma IV – lactentes, escolares e adolescentes (Parte 3)


Isabela T. Mazzei e Ulysses Fagundes Neto




    5-  Transtornos Funcionais da Evacuação

5A- Constipação Funcional (CF)

Uma revisão sistemática comprovou que a prevalência média e a mediana da CF em crianças é de 14% e 12%, respectivamente. O pico da incidência da constipação ocorre por ocasião do treinamento esfincteriano, não há diferenças entre os sexos, e está demonstrado que os meninos com constipação apresentam taxas mais elevadas de incontinência fecal do que as meninas.

Em virtude da retenção das fezes, a mucosa colônica absorve a água e as fezes remanescentes tornam-se progressivamente mais difíceis de serem eliminadas. Este processo acarreta um ciclo vicioso de retenção de fezes no qual o reto torna-se elevadamente distendido, resultando em um fluxo fecal incontinente (escape fecal), perda da sensação fecal e por fim, perda da urgência para evacuar. O aumento do acúmulo fecal no reto também provoca uma diminuição da motilidade intestinal a montante, acarretando anorexia, distensão abdominal e dor.

No Quadro 11 abaixo, estão descritos os critérios diagnósticos da CF.

O diagnóstico da CF baseia-se na história clínica e no exame físico, sinais de alarme dos sintomas devem ser utilizados para identificar uma doença de base responsável pela constipação (Tabela 3). Caso apenas um critério de Roma estiver presente e o diagnóstico de CF mostrar-se incerto, um exame de toque retal é recomendado para confirmar o diagnóstico e excluir alguma outra condição médica. Não há uma razão especial para a realização rotineira de raio-x abdominal para o diagnóstico da CF. Teste rotineiro para a alergia à proteína do leite de vaca não é recomendado naquelas crianças com constipação, e que não apresentam sintomas de alarme. Testes laboratoriais para pesquisa de hipotireoidismo, doença celíaca e hipercalcemia não são recomendáveis nas crianças com constipação, na ausência de sintomas de alarme. A principal indicação para a realização da manometria anorretal, na investigação da constipação intratável, refere-se à avaliação da presença do reflexo do inibidor anorretal. A biópsia retal é o padrão ouro para o diagnóstico da Doença de Hirshsprung. Enema de bário não deve ser utilizado como uma ferramenta inicial na avaliação diagnóstica da CF.

Quanto ao tratamento, uma revisão sistemática demonstrou que somente 50% das crianças referidas a um centro terciário de atenção, e acompanhadas de 6 a 12 meses, se curaram e foram desmamadas do uso de laxativos com sucesso. Educação é tão importante quanto a terapia medicamentosa e deve incluir aconselhamento familiar para reconhecer o comportamento de retenção e também para fazer uso de intervenções comportamentais, tais como: o uso rotineiro do vaso sanitário e sistema de recompensa quando as evacuações são exitosas. Uma dieta contendo concentração normal de fibras e ingestão normal de líquidos é recomendada, enquanto que a complementação com pré ou pro-bióticos não parece oferecer vantagens para o paciente.

A abordagem farmacológica compreende duas etapas, a saber: 1- desimpactação retal ou oral para aquelas crianças que apresentam impactação fecal; e 2- terapia de manutenção para prevenir reacúmulo de fezes utilizando uma variedade de agentes laxantes. Polietilenoglicol deve ser considerada a primeira linha terapêutica, muito embora, a lactulose também possua eficácia significativa.
  
5B-Incontinência Fecal Não Retentora (IFNR)

Pacientes que apresentam IFNR apresentam frequência de evacuação e parâmetros de motilidade colônica e anorretal normais, o que diferencia essa condição da CF. Os tempos de trânsito colônico total e segmentar mostram-se significantemente prolongados nas crianças portadoras de CF, em comparação com aquelas portadoras de IFNR.  O diagnóstico da IFNR deve-se basear nos sintomas clínicos, tais como, frequência de defecação normal e ausência de massa palpável no abdome ou reto, em combinação com trânsito intestinal normal, comprovado em estudos realizados com marcadores específicos. A IFNR pode ser uma manifestação de distúrbios emocionais na criança em idade escolar e representa uma ação impulsiva desencadeada por uma mágoa inconsciente. A IFNR também tem sido descrita como resultado de abuso sexual na infância.

No Quadro 12 abaixo, estão descritos os critérios diagnósticos da IFNR.

Em geral, as crianças portadoras de IFNR apresentam uma evacuação completa do conteúdo colônico, não apenas um escape fecal, em contraste com aquela manifestação verificada nas crianças com CF. A investigação deve ser realizada para avaliar a possível história de coexistência de constipação notando-se o padrão das fezes (tamanho, consistência, retenção), idade de início, tipo e quantidade de material evacuado, história dietética, medicações, sintomas urinários coexistentes, comorbidade psicossocial e fatores estressantes, familiares e pessoal. O exame físico deve focalizar os parâmetros de crescimento, exame abdominal, exame retal e um profundo exame neurológico.
Quanto ao tratamento, os pais devem compreender que distúrbios psicológicos, dificuldades de aprendizado, e problemas comportamentais, usualmente representam fatores significativos contribuidores para os sintomas da defecação. As vítimas de abuso sexual devem ser identificadas e referidas a aconselhamento apropriado. A abordagem mais exitosa no manejo da IFNR envolve a terapia comportamental. O uso rotineiro do treinamento para evacuar, associado à premiação e à diminuição da fobia ao vaso sanitário contribui para diminuir o estresse, restaura hábitos intestinais normais e restabelece o auto respeito. Um estudo de seguimento de longo prazo demostrou que após dois anos de tratamento intensivo e comportamental somente 29% das crianças encontravam-se completamente livres da incontinência fecal. Aos 18 anos de idade, 15% dos adolescentes portadores da IFRN ainda apresentavam o transtorno. Nenhum fator prognóstico de sucesso foi identificado.

Conclusões

Os membros do comitê fazem algumas recomendações para a necessidade de serem realizadas pesquisas comuns que se aplicam a todas os TGFs, os quais incluem:
1-   Estudos epidemiológicos com diferentes culturas;
2-   História natural;
3-   Estudos da fisiopatologia, como por exemplo o microbioma e o eixo cérebro-trato digestivo;
4- Inclusão precoce das crianças em ensaios clínicos terapêuticos com medicamentos emergentes. 

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (9)

A2. Dor Abdominal Relacionada às AFGs (continuação)

6- Dor Abdominal Funcional da Infância e
7- Síndrome da Dor Abdominal na Infância

Nestas duas entidades uma limitada, porém, razoável investigação laboratorial de rastreamento para descartar algumas enfermidades de origem orgânica deve incluir hemograma completo, velocidade de hemosedimentação, proteína C reativa, urina tipo I e cultura. Outros perfis bioquímicos, tais como, hepáticos e renais, bem como exames diagnósticos (cultura de fezes, parasitológico de fezes e teste do Hidrogênio no ar expirado para detectar má absorção aos caboidratos) também são recomendáveis dependendo dos sintomas predominantes referidos pelo paciente, do grau de limitação funcional ou mesmo da intensidade da ansiedade familiar.

Para a caracterização diagnóstica da Dor Abdominal Funcional da Infância devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1. As manifestações clínicas devem ocorrer pelo menos uma vez por semana durante pelo menos 2 meses.
2. A dor abdominal pode ser episódica ou contínua.
3. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.

Para a caracterização diagnóstica da Síndrome da Dor Abdominal Funcional da Infância a dor abdominal deve estar presente em pelo menos 25% do tempo e 1 ou mais dos seguintes sintomas devem estar incluídos:
1. Alguma perda da capacidade funcional diariamente.
2. Algum sintoma somático adicional, tal como dor de cabeça, dores nos membros e/ou dificuldade para dormir, deve estar presente.

Em minha opinião levando-se em consideração os muitos anos de experiência profissional intensamente por mim vividos nesta especialidade, entendo que estas duas entidades rotuladas pelo Comitê de experts de forma individualizada, representam nada mais do que uma discreta variante da Síndrome do Intestino Irritável. Ao meu ver esta dicotomia da classificação traz mais confusão do que esclarecimento diagnóstico.
B. Constipação e Incontinência Fecal
1- Constipação Funcional
O termo Constipação Funcional é utilizado para designar todas as crianças nas quais a constipação não apresenta uma etiologia orgânica. Estima-se que a incidência da constipação esteja presente entre 0,3% a 8% da população pediátrica e representa de 3% a 5% das visitas ao consultório do Pediatra generalista. Entretanto, representa uma taxa de até 25% das consultas ao Gastropediatra. Pesquisas clínicas têm demonstrado que uma história familiar positiva para constipação está presente entre 28% a 50% das crianças portadoras de constipação, e mais ainda, tem sido descrita uma incidência mais elevada em gêmeos monozigóticos do que em dizigóticos. O pico da incidência costuma ocorrer durante o treinamento do controle esfincteriano, entre os 2 e os 4 anos de idade, com maior prevalência entre os meninos. É importante ressaltar que a ocorrência de escape fecal (a passagem involuntária de material fecal na forma semi-líquida sujando a roupa íntima) é uma das manifestações clínicas mais comuns na criança com constipação funcional de longa duração e está presente em cerca de 85% dos casos. Esta situação profundamente desagradável é uma causa de grande desconforto social para criança e mesmo para seus familiares. A existência do escape fecal é um importante marcador para estabelecer a gravidade da constipação e também funciona como um bom monitoramento para avaliar a eficácia do tratamento.
A queixa de evacuação dolorosa tem sido considerada um valoroso dado da história clínica como um fator causal do comportamento de retenção das fezes. A presença de um grande bolo fecal palpável na fossa ilíaca esquerda antes da criança ter evacuado, ou até mesmo após uma evacuação que freqüentemente obstrui o vaso sanitário, é um sinal marcante da constipação. A evacuação dolorosa dessa massa fecal provoca grande temor na criança e acarreta um desejo de evitar a exoneração fecal posteriormente.

É necessária a obtenção de uma história clínica detalhada do hábito intestinal desde o nascimento, identificar o momento que surgiu o problema, investigar as características das fezes (freqüência, consistência, calibre e volume), saber da presença de sintomas associados (dor à evacuação, dor abdominal, presença de sangue nas fezes ou no papel higiênico e escape fecal), comportamento de retenção, problemas urinários e deficiências neurológicas. Em algumas circunstâncias o escape fecal é confundido com diarréia pelos familiares em virtude do seu aspecto ser líquido ou semi-líquido. É importante realizar a inspeção clínica da região perineal e peri-anal para excluir defeitos da medula espinhal. O toque retal deve sempre ser realizado após ter sido obtida a confiança da criança.

Para a caracterização diagnóstica da Constipação Funcional devem ser incluídas 2 ou mais das seguintes manifestações clínicas em uma criança de pelo menos 4 anos de idade:
1. Duas ou menos evacuações por semana.
2. Pelo menos 1 episódio de escape fecal por semana.
3. História de postura de retenção ou retenção consciente excessiva das fezes.
4. História de evacuação dolorosa ou fezes endurecidas.
5. Presença de bolo fecal no reto.
6. História de fezes de grande calibre que obstrui o vaso sanitário.
7. Estas manifestações devem ocorrer pelo menos uma vez por semana durante pelo menos 2 meses antes do diagnóstico.

2- Incontinência Fecal Não Retentora
A incontinência fecal não retentora se caracteriza pela evacuação completa do conteúdo do reto em local inapropriado, fora do vaso sanitário, por uma criança acima dos 4 anos de idade e que não apresenta evidências de retenção fecal.

A incontinência fecal tem sido relatada ocorrer em cerca de 3% das consultas da especialidade, sendo a prevalência mais alta nas crianças entre 5 a 6 anos de idade (4,1%) do que nos adolescentes entre 11 e 12 anos (1,6%); além disso tem sido mais freqüentemente descrita entre meninos do que em meninas pertencentes a famílias de nível sócio-econômico mais vulnerável.

Para a caracterização diagnóstica da Incontinência Fecal Não Retentora devem ser incluídas todas as seguintes manifestações nas crianças acima dos 4 anos de idade e que perdurem por pelo menos 2 meses:
1. Evacuação completa em locais inapropriados ao contexto social pelo menos uma vez por mês.
2. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.
3. Não há evidência de retenção fecal.

As AFGs continuam a ser um grande dasafio para o clínico, quer seja na compreensão dos mecanismos fisiopatológicos deflagradores dos sinais e sintomas, bem como na própria abordagem terapêutica dos mesmos. Muitas questões referentes aos mecanismos íntimos da fisiopatologia, tais como as interações entre o sistema nervoso central, o sistema nervoso entérico e o sistema imunológico, um melhor conhecimento do comportamento biopsicosocial dos pacientes e eventuais propostas terapêuticas ainda permanecem obscuras. Faz-se necessário, portanto, que esforços sejam concentrados em trabalhos de pesquisa para a aquisição de maiores esclarecimentos a respeito de um problema que afeta um grande número de crianças e adolescentes em todo o universo.

Os Comitês de experts de ambos os grupos etários considerados, - lactentes e pré-escolares - escolares e adolescentes -, conscientes das limitações existentes quanto às deficiências dos conhecimentos acima referidos, fazem recomendações para que os pesquisadores da área realizem pesquisas, cujos desenhos de estudo possam contemplar as lacunas científicas ainda pendentes. Entretanto, a iniciativa de propor uma classificação das AFGs em Pediatria, o que ocorreu pela primeira vez com a elaboração dos critérios de Roma II, e que avançou sobremaneira com os critérios de Roma III, constituiu-se em um passo extremamente importante para estabelecer parâmetros diagnósticos e possivelmente melhores compreensões sobre os seus transtornos fisiopatológicos, até o presente desconhecidos. Esperamos, portanto, com entusiasmo a chegada para dentro em breve dos critérios de Roma IV. Da minha parte, assim que novos conhecimentos cientificamente comprovados e de significativa importância clínica estejam disponíveis na literatura médica, retornarei a discutir este fascinante capítulo da Gastropediatria.