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quinta-feira, 24 de março de 2011

Alergia Alimentar e Constipação Intestinal: uma coexistência que se apresenta como mais um desafio para se estabelecer o diagnóstico diferencial

Introdução

A coexistência de Alergia Alimentar e Constipação, por meio de um mecanismo imunologicamente mediado, foi inicialmente aventada por Chin e cols. (Br Med J 1983; 287, 1593), e posteriormente reforçada por Iacono e cols. (J Pediatr 1995; 126: 34-9) e Iacono e cols. (N Engl Med J 1998; 339: 1100-4). No Brasil, até onde meu conhecimento alcança, a primeira publicação atribuindo a Constipação como manifestação clínica de Alergia Alimentar se deve ao nosso grupo da Gastropediatria da Escola Paulista de Medicina, Fagundes-Neto e cols. (Pediatr Allergy and Immunology 2001; 12: 339-42). Mais recentemente, Carroccio e cols. (Scand J Gastroenterol 2005; 40: 33-42) descreveram um modelo de proctite causando constipação devido a Intolerância Alimentar, e, em seguida, Iacono e cols. (Eur J Gastroenterol Hepatol 2006; 18: 143-50) estabeleceram uma relação entre Constipação e Intolerância Alimentar com a descrição de lesões histológicas e alterações na manometria ano-retal, as quais foram revertidas com a eliminação do leite de vaca e derivados da dieta. Como se pode depreender são escassos os trabalhos disponíveis na literatura médica a respeito deste tema pelas dificuldades em se conseguir caracterizar com segurança esta inter-relação, posto que os meios diagnósticos existentes ainda não sejam plenamente confiáveis para sua confirmação. Além disso, a prevalência de Constipação Crônica Idiopática na população pediátrica varia de 3 a 16%, sem que se saiba qual ou quais os precisos mecanismos fisiopatológicos envolvidos nesta manifestação clínica e mesmo qual a abordagem terapêutica mais eficaz para resolver o problema.

No número de agosto de 2010 do Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, o grupo de Bilbao, Espanha, foi publicado mais um artigo envolvendo a associação de Intolerância ao leite de vaca e Constipação Crônica na infância, o qual a seguir passo a sumarizar: “Cow’s-Milk-Free Diet as a Therapeutic Option in Childhood Chronic Constipation”, Juan Carlos Vitoria e cols. (J Pediatr Gastoentrol and Nutr 2010; 51: 171-76).
O objetivo do presente estudo foi descrever a história clínica das crianças com constipação crônica e avaliar a utilidade da introdução de uma dieta isenta de leite de vaca e derivados como uma opção terapêutica.

Pacientes e Métodos
Um grupo de crianças com idades que variaram de 6 meses a 14 anos encaminhadas a um serviço terciário de gastroenterologia pediátrica e que preenchiam os critérios de Roma III para o diagnóstico de constipação crônica foram avaliadas para ingressar no estudo. Sessenta e nove crianças que preencheram totalmente os critérios de inclusão foram consideradas elegíveis para participar do estudo.

A consistência das fezes foi avaliada por meio da escala semi-quantitativa de Bristol, a saber: 1- fezes muito endurecidas; 2-fezes endurecidas e muito grandes; 3- fezes normais; 4- fezes amolecidas; 5- fezes líquidas.

Desenho do Estudo
No momento da primeira consulta todos os pacientes estavam consumindo leite de vaca e/ou produtos lácteos. O estudo foi organizado em 4 fases cujo esquema está representado na Figura 1. A primeira fase teve a duração de 1 semana, enquanto que as outras 3 fases tiveram a duração de 3 semanas.
Figura 1- Desenho do estudo: CM = leite de vaca; CM-free diet: dieta isenta de leite de vaca.

A constipação foi considerada como resolvida no caso da criança preencher os seguintes requisitos: a freqüência de 3 ou mais evacuações por semana sem utilização de laxantes ou enemas evacuatórios, e, também, as evacuações deveriam ser isentas de desconforto, dor e irritabilidade.

Ao término do estudo as crianças classificadas como Não Respondedoras (NR) à dieta isenta de leite de vaca e derivados foram recomendas a reutilizar o leite de vaca e derivados na dieta; as crianças classificadas como Respondedoras Indeterminadas (RI) continuaram a receber leite de vaca e derivados na dieta; as crianças classificadas como Respondedoras (R) foram inicialmente mantidas em dieta isenta de leite de vaca e derivados e passaram a receber fórmula de soja. Para estas crianças foi recomendada a introdução gradualmente progressiva de pequenas quantidades de produtos lácteos para que se pudesse determinar qual a quantidade de leite e derivados elas seriam capazes de tolerar.

Os pais dos pacientes receberam um notebook e foram solicitados a anotar os seguintes dados ao final da semana de cada uma das fases do estudo: fase I, número e consistência de cada evacuação, uso de laxantes ou enemas evacuatórios, ingestão de leite de vaca e produtos lácteos, vegetais, frutas e cereais; fase II, número e consistência de cada evacuação, uso de laxantes ou enemas evacuatórios, ingestão de leite de vaca e produtos lácteos, vegetais, frutas e cereais; fase III, número e consistência de cada evacuação; fase IV, número e consistência de cada evacuação.
Uma amostra de sangue foi obtida de cada criança durante a fase I para determinação do número de eosinófilos e os níveis séricos das Imunoglobulinas (IGA, IgM, IgG e IgE). Valores de IgE específica contra as proteínas do leite de vaca e anticorpo antitransglutaminase tecidual também foram determinados.

Investigação imunológica que envolveu análise citométrica de fluxo dos linfócitos periféricos para determinar o número total de leucócitos (CD45), linfócitos T (CD3), linfócitos T helper (CD4), linfócitos T citotóxicos (CD8), células B (CD19) e células natural killers (CD16).

Resultados
As principais características clínicas dos pacientes ao ingressar no estudo estão descritas na Tabela 1.
Tabela 1- Características clínicas dos 69 pacientes.

Em 35 (51%) crianças a constipação foi curada durante a utilização de dieta isenta de leite de vaca e derivados na fase II. Trinta e quatro (49%) crianças não responderam satisfatoriamente à dieta isenta de leite de vaca e derivados (grupo NR), e em 27 das 35 crianças que responderam satisfatoriamente à eliminação do leite de vaca e derivados durante a fase II, ocorreu recidiva da constipação quando foi reintroduzido leite de vaca e derivados na dieta durante a fase III, mas a qual foi novamente curada em todas as 27 crianças quando novamente o leite de vaca e derivados foram eliminados da dieta, durante a fase IV (grupo R) (Figura 2).
Figura 2- Resposta clínica dos pacientes à dieta isenta de leite de vaca e derivados.

Neste grupo (R) a constipação desapareceu entre 1 e 5 dias após o início da dieta isenta de leite de vaca e reapareceu entre 2 e 5 dias após a reintrodução do leite de vaca na dieta. Oito crianças foram catalogadas como RI devido ao seu comportamento errático durante todo o estudo.
Não foram encontradas diferenças estatisticamente significantes entre os grupos R e NR no que diz respeito às investigações imunológicas realizadas.

Conclusão

Nesta presente pesquisa pode-se demonstrar que 39% das crianças com constipação crônica inequivocamente se beneficiaram com a eliminação do leite de vaca e derivados da dieta, o que dá sustentação à hipótese de que o leite de vaca e derivados desempenham um importante papel em muitas crianças que sofrem de constipação crônica. Alguns autores entendem que a associação de constipação e ingestão de leite de vaca se dá por um excesso de consumo de produtos lácteos, os quais têm baixos resíduos dietéticos, em detrimento da ingestão de vegetais e frutas, alimentos que apresentam altas taxas de resíduos. Entretanto, no presente estudo, o consumo de produtos lácteos e de fibras foi similar em todas as crianças investigadas, independentemente do resultante final, R ou NR, o que sugere que a ingestão de produtos lácteos e de fibras não é capaz de prever o sucesso ou insucesso da resposta à eliminação do leite de vaca e derivados da dieta.

É importante enfatizar que o fato de a constipação ter sido curada entre 1 e 5 dias após a eliminação do leite de vaca da dieta, e que apresentou recidiva neste mesmo período de tempo após sua reintrodução na dieta das crianças, sugere a participação de um mecanismo alérgico de efeito retardado. E, em verdade, se for provado que a constipação é uma forma de apresentação clínica de alergia alimentar, ela deve ser classificada como um sintoma de hipersensibilidade retardada. Desta forma, como se sabe que a maioria das reações alérgicas do tipo retardado não são mediadas pela IgE, depreende-se, portanto, que os parâmetros imunológicos que caracterizam a reação de hipersensibilidade imediata não devem estar presentes nesta situação clínica. Nossos resultados parecem descartar um mecanismo mediado por IgE, porém, não foi possível alcançar qualquer informação conclusiva a respeito de outros possíveis mecanismos imunológicos para a ocorrência da constipação nestas crianças que apresentaram sensibilidade ao leite de vaca.

Comentários

Em minha opinião trata-se de um estudo bem conduzido e que inegavelmente acrescenta mais informações a algo que, de forma escassa na literatura, já foi por nós e outros autores verificado. O maior problema na elaboração de um projeto de pesquisa desta natureza é, por um lado, a inexistência de testes sorológicos definitivamente confiáveis para se imputar outros mecanismos imunológicos existentes, afora aqueles mediados por IgE, estejam disponíveis ao nosso alcance, o que nos obriga a lançar mão dos testes de eliminação e provocação. Estes testes são de interpretação até certo ponto bastante subjetiva, e que, portanto, seus resultados encontrados variam consideravelmente de investigador para investigador. Por outro lado, como a prevalência de constipação funcional crônica é queixa extremamente freqüente nos consultórios do gastropediatra, nas mais variadas faixas etárias, nem sempre é exeqüível, na prática clínica diária, propor as medidas aplicadas neste estudo, por serem extremamente laboriosas e de longo tempo de execução para se chegar a um resultado final (no presente estudo foram despendidas pelo menos 10 semanas). De qualquer forma este estudo nos brinda inúmeras informações bastante úteis, e, ao mesmo tempo, nos lança mais um enorme desafio para discernirmos quais das crianças com constipação crônica irão se beneficiar da eliminação do leite de vaca e derivados da dieta. A decisão de se seguir pelo caminho aqui proposto, deve, a meu ver, ser considerado caso a caso, não há como se adotar uma conduta geral rotineiramente.

No nosso próximo encontro continuarei a apresentar algum tema de grande interesse para a nossa especialidade.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Alergia Alimentar na infância e suas manifestações digestivas: uma enfermidade cada vez mais prevalente no mundo moderno (1)

Introdução
Alergia Alimentar (AA) aos mais diversos alimentos da dieta, constitui-se em um problema cada vez mais comum na infância, em especial durante os 2-3 primeiros anos de vida, e pode se apresentar com um amplo espectro de sinais e sintomas que afeta principalmente os tratos digestivo e respiratório, e a pele. O leite de vaca, durante o primeiro ano de vida, representa o principal alergeno da dieta e envolve inúmeras de suas múltiplas proteínas presentes em sua composição. É importante assinalar que alergia à proteína do leite de vaca (APLV) trata-se de uma enfermidade temporária que, na imensa maioria dos casos, apresenta remissão espontânea até o terceiro ano de vida, em alguns casos desaparece mesmo ao final do primeiro ano. Vale ressaltar que é secundada pela alergia à proteína da soja, e que, em muitas circunstâncias ocorre uma reação cruzada com APLV.
Atualmente está bem estabelecido que há um importante componente genético, que atua como fator predisponente, o qual se associa a um fator desencadeante (Proteína heteróloga) para o surgimento de AA. Por outro lado, o fator genético isoladamente não pode ser responsabilizado pelo significativo aumento da prevalência das doenças alérgicas, as quais tem sido caracterizadas cada vez mais frequentemente nestas últimas 2 décadas. Este incrementodeve ser definitivamente atribuido a uma série de interações do complexo "genética-meio ambiente", a qual ocorre durante a gravidez ou mesmo logo após o nascimento do ser humano, ainda durante os primeiros meses de vida extra-uterina.
Definições
Para facilitar o entendimentodos conceitos e uniformizar a nomenclatura utilizada no presente trabalho são apresentadas a seguir as definições das principais reações adversas aos alimentos.
Hipersensibilidades Alimentares são reações adversas aos alimentos que incluem quaisquer manifestações anormais resultantes da ingestão de um determinado alimento e podem ser o resultado de Intolerâncias Alimentares ou Alergia Alimentar.

Intolerâncias Alimentares (Hipersensibilidades Não Alérgicas) são respostas adversas causadas por uma característica fisiológica específica do hospedeiro, tais como as afecções metabólicas (por exemplo, deficiência de Lactase).

Alergias Alimentares são reações imunológicas adversas que podem ser devidas a mecanismos mediados por IgE ou não IgE.

Reações Tóxicas podem simular Hipersensibilidades Alimentares e são tipicamente causadas por fatores inerentes aos alimentos tais como contaminantes tóxicos (por exemplo, liberação de histamina em envenenamento por determinadas espécies de peixes), ou substâncias farmacológicas contidas nos alimentos (por exemplo, tiramina em queijos envelhecidos), as quais podem afetar a maioria dos indivíduos sadios quando oferecidas em doses suficientemente elevadas.

Aversões Alimentares podem mimetizar reações de Intolerância Alimentar, porém, elas costumam não ser reproduzíveis quando se realiza um teste "cego" do alimento a ser ingerido e ao qual se suspeitava haver Intolerância.

O quadro abaixo sumariza as reações adversas (Hipersensibilidades): Intolerâncias Alimentares ou Alergia Almentar:

1- Intolerância/Hipersensibilidade Não Alérgica

2- Alergia/Hipersensibilidade Alimentar
Mediada por IgE
Não Mediada por IgE

3- Reações Tóxicas

4- Aversão Alimentar

Hipersensibilidades aos alimentos -Alergia Alimentar- necessariamente envolvem mecanismos imunológicos em reação a uma ou mais determinada(s) proteína(s) e podem ser divididas em 3 tipos fundamentais, a saber:

1- Mediadas por IgE (hipersensibilidade imediata) (Figura 1); admite-se que as reações de alergia mediadas por IgE sejam responsáveis por 60% dos casos.

Figura 1- Lesões de urticária gigante provocadas por alergia alimentar (ingestão de camarão). Notar as lesões eritemato-papulosas disseminadas no tronco do paciente.
2- Não mediadas por IgE:
a) hipersensibilidade tardia ou celular (Figura 2);
b) formação de imunecomplexos e vasculite

Figura 2- Paciente portador de alergia às proteínas do leite de vaca e da soja apresentando quadro de diarréia crônica com síndrome de má absorção, levando a perda de peso e parada do rítmo de crescimento. Notar a nítida diminuição do tecido celular sub-cutâneo, a atrofia da musculatura da região glútea e raiz das coxas, além da distensão abdominal provocada pela flacides da musculatura do abdome.
3- Mistas, quando ambos os mecanismos estão presentes (Figura 3).

Figura 3- Material de biópsia do intestino delgado de um paciente portador de gastroenteropatia eosinofílica. Observar a atrofia vilositária associada a intenso infiltrado inflamatório linfo-plasmocitário e eosinofílico na lâmina própria da mucosa jejunal.
As reações mediadas por IgE tendem a surgir dentro de segundos ou minutos após a ingestão do alimento alergênico, ao passo que Alergia Alimentar que tarda dias ou semanas para se manifestar é mais provável que não seja mediada por IgE. Alergia Alimentar pode afetar vários sistemas do organismo e os mais freqüentemente envolvidos são o trato digestivo, o trato respiratório e a pele. Manifestações de alergia à proteína do leite de vaca (APLV) podem ocorrer ao longo de todo o trajeto do trato digestivo, a saber: esôfago, estômago, intestino delgado, colo e reto.
Alergias Alimentares apresentam sua maior prevalência durante os primeiros anos de vida e afetam cerca de 6% das crianças menores de 3 anos de idade. Está bem estabelecido que a causa mais freqüente de Alergia Alimentar é à proteína do leite de vaca. Aproximadamente 2,5% dos recém-nascidos demonstram reações de hipersensibilidade (Alergia) à proteína do leite de vaca durante o primeiro ano de vida. Muito embora a APLV seja uma enfermidade transitória, ainda assim, em torno de 80% dos afetados podem manter-se alérgicos além do primeiro ano de vida. Por outro lado, a maioria das crianças perde sua hipersensibilidade (adquire tolerância) aos vários alimentos alergênicos entre os 3 e os 5 anos de vida. Lactentes que sofrem de APLV e Soja, cuja reação imunológica não é mediada por IgE, geralmente passam a ser tolerantes a estes alimentos durante o segundo ano de vida. Aqueles lactentes que sofrem de Alergia Alimentar (leite de vaca, soja, ovos, etc.), cuja reação imunológica é mediada por IgE tornam-se tolerantes a estes alimentos um pouco mais tarde (85% destas crianças por volta dos 5 anos de idade).

Antes da década de 1950 a incidência descrita de APLV durante o primeiro ano de vida era muito baixa, aproximadamente 0,1 a 0,3%. Desde então, as estimativas da incidência da APLV aumentaram significativamente e tem variado entre 1,8 a 7,5%, dependendo dos critérios diagnósticos utilizados e da elaboração dos desenhos metodológicos das pesquisas. Indiscutivelmente, APLV é a causa de Alergia Alimentar mais comumente confirmada entre lactentes e sua incidência no primeiro ano de vida, diagnosticada em ensaios clínicos prospectivos bem conduzidos, varia de 2 a 3%, e, em seguida vem a alergia à proteína da soja em 0,8% dos casos. É importante salientar que manifestações clínicas reproduzíveis de APLV têm sido relatadas em aproximadamente 0,5% dos lactentes em aleitamento natural exclusivo.
Crianças portadoras de afecções atópicas tendem a apresentar maior prevalência de Alergia Alimentar; aproximadamente 35% das crianças portadoras de dermatite atópica moderada ou grave sofrem de Alergia Alimentar mediada por IgE (Figura 4), e, cerca de 6% das crianças que sofrem de asma apresentam sibilância respiratória induzida por alimentos.

Figura 4- Lesão de dermatite eczematosa retroauricular em paciente com alergia às proteínas do leite de vaca e soja.
Com o objetivo de avaliar a percepção dos pais a respeito de possíveis reações adversas causadas pelo leite de vaca, Eggesbo e cols. (Allergy 56:393-402,2001), na Noruega, realizaram uma investigação clínica acompanhando um grupo de 3.623 crianças desde o nascimento até que completassem 2 anos de idade, através da aplicação de questionários semestrais. Os autores detectaram uma prevalência de APLV de 7,5% aos 12 meses, 5% aos 24 meses e uma incidência cumulativa de 11,6%, demonstrando, assim, a importância da percepção dos pais quanto a suspeita da existência de reações adversas ao leite de vaca e a necessidade de se estabelecer procedimentos diagnósticos apropriados.

No nosso próximo encontro continuaremos a discutir outros aspectos importantes deste fascinante e desafiador capítulo que é a Alergia Alimentar.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Colite Alérgica: Manifestações Clínicas, Diagnóstico e Tratamento (2)

Composição do Leite Humano e do Leite produzido por outros Mamíferos

O leite é uma emulsão constituída por 20% de material sólido e 80% de água. Trata-se de uma solução coloidal de glóbulos de gordura (micela) que se encontram no interior de um fluido aquoso (Figuras 1 & 2). Cada glóbulo de gordura é circundado por uma membrana constituída por fosfolípides e proteínas; estas substâncias, denominadas emulsificantes, mantêm os glóbulos separados individualmente evitando que estes se juntem para formar grânulos sólidos de gordura e também agem como protetores dos próprios glóbulos de gordura da ação das enzimas digestivas de gorduras presentes na fração líquida do leite. As vitaminas lipossolúveis A, D, E e K encontram-se presentes no interior da porção gordurosa do leite. É importante assinalar que o leite humano contem uma enzima denominada lipase, a qual quebra a gordura transformando-a em pequenos glóbulos, os quais são mais facilmente digeridos.


Figura 1- Duas amostras de leite humano obtidas em diferentes momentos da lactação: à esquerda leite inicial "aguado" com baixo teor de gordura e à direita leite tardio cremoso com alto teor de gordura.

Figura 2- Representação esquemática de uma micela.

As maiores estruturas químicas presentes na porção líquida do leite são formadas por micelas de caseína; estas se constituem em milhares de moléculas de proteínas ligadas entre si com o auxílio de partículas em escala nanométrica de fosfato de cálcio. Estas micelas desempenham importantes papeis, mas a mais notória é impedir que as mesmas formem agregados sólidos. A camada mais externa das micelas é constituída por um tipo de proteína denominada kappa-caseina, a qual se encontra na porção exterior do corpo da micela no interior do fluido que a circunda. Estas moléculas de kappa-caseina possuem carga elétrica negativa e, portanto, se auto-repelem, fenômeno que mantém as micelas individualmente separadas, evitando assim que em condições normais, sejam formados grumos sólidos, preservando-as em uma suspensão coloidal estável no fluido em que estão imersas.

O leite contem ainda uma grande série de outras proteínas além da caseína, as quais são mais solúveis em água e não formam grandes estruturas químicas. Como estas proteínas permanecem suspensas no soro do leite quando a caseína forma coágulos, elas passaram a ser denominadas em conjunto de proteínas do soro.

Tanto os glóbulos de gordura quanto as pequenas micelas de caseína, as quais têm tamanho suficiente para defletir a luz, contribuem para a coloração branca do leite.

O carboidrato do leite, a lactose, confere um sabor levemente adocicado. A lactose é um dissacarídeo constituído pelos seguintes monossacarídeos: glicose e galactose (Figura 3). Na natureza, a lactose é praticamente encontrada apenas no leite, porém é também encontrada em baixíssimas concentrações em algumas plantas.


Figura 3- Representação simplificada da molécula da Lactose e consequente hidrólise dando resultado aos monossacarídeos Glicose e Galactose.

O leite humano contem 1,1g% de proteínas, 4,2g% de gorduras, 7,0g% de carboidratos e 0,2g% de minerais oferecendo 72 kcal/100ml (Tabela 1).


O principal carboidrato do leite humano é a lactose, porém vários outros oligossacarídeos semelhantes à lactose foram identificados em pequenas concentrações. A fração de gordura contem triglicerídeos específicos, tais como ácidos oléico e palmítico, assim como significativas quantidades de lipídeos com ligações trans, os quais são benéficos à saúde. Dentre eles destacam-se os ácidos vacênico e linoléico, os quais correspondem a cerca de 6% da gordura total. As principais proteínas são a beta-caseina, alfa-lactoalbumina, lactoferrina, IgA secretora, lisosimas e a soro-albumina. Compostos nitrogenados não protéicos que incluem uréia, ácido úrico, creatina, creatinina, amino-ácidos e nucleotídeos correspondem a aproximadamente 25% do conteúdo de nitrogênio. Foi demonstrado também que o leite humano fornece uma substância que é um neuro-transmissor (endocannabinoide) com ação tranqüilizante.

O Leite de Vaca contém cerca de 4 gramas de proteína por 100 mL (Tabela 2) enquanto que o Leite Humano contém cerca de 1,1 gramas de proteína por 100 mL.

Entretanto, as diferenças entre estes 2 tipos de leite não residem apenas nas concentrações das frações protéicas, posto que, no Leite de Vaca a proporção Caseína:Soroalbumina é de 80:20, enquanto que no Leite Humano esta proporção é de 40:60, uma vantagem inequívoca para o Leite Humano pela maior facilidade de sua digestão, visto que a Caseína (Peso Molecular entre 11.000 e 24.000 daltons) é a porção protéica não solúvel presente no leite. Além disso, dentre as proteínas da fração solúvel do Leite de Vaca estão presentes aquelas que potencialmente são as mais alergênicas, a saber: beta-lactoglobulina (maior fração do soro lácteo bovino e maior capacidade antigênica, Peso Molecular de 20.000 daltons), alfa-lactoalbumina (Peso Molecular 14.000 daltons), soroalbumina bovina (Peso Molecular 69.000 daltons) além da própria caseína. O Leite Humano, por sua vez, não contém beta-lactoglobulina.

Fórmulas de Soja

As Fórmulas de Soja também possuem fortes propriedades alergênicas tanto in vitro quanto in vivo. Ademais, cêrca de 10 a 30% das crianças com comprovada sensibilidade ao Leite de Vaca também apresentam alergia cruzada às proteínas da Soja. Alguns autores atestam que alergia às proteínas da Soja pode ocorrer em até 66% dos pacientes com manifestações de Colite Alérgica às proteínas do Leite de Vaca.

Frequência da Colite Alérgica
Admite-se de uma maneira geral que Alergia Alimentar afeta entre 7 a 8% da população pediátrica, e que Alergia ao Leite de Vaca é a manifestação mais frequente presente em cêrca de 2 a 3% das crianças. Colite Alérgica representa cêrca de 20% dos casos de Alergia Alimentar, mas tudo indica que estes percentuais vem aumentando de forma considerável.
Na nossa experiência pessoal (Fagundes Neto e cols. - J. Pediatria 64:306-10,1988) ao analisar 55 lactentes com idade média de 3,9 mêses, durante um período de 5 anos, os quais apresentavam Alergia às proteínas do Leite de Vaca e da Soja, 20% deles revelaram ser portadores de Colite Alérgica.
Mecanismos de Reação Alérgica
As reações de hipersensibilidade podem ser tanto mediadas pela imunoglobulina E (IgE), como, por exemplo, aquelas que apresentam manifestação imediata a alimentos com surgimento de urticária (Figura 4) e/ou choque anafilático;

Figura 4- Urticária gigante com formação de pápulas características de reação mediada por IgE (Hipersensibilidade Imediata).
quanto as não mediadas pela IgE, as quais se caracterizam por apresentar manifestações tardias mediadas por linfócitos T (Hipersensibilidade retardada tipo IV), ou ainda com a formação de imunecomplexos causando vasculite (reação de Arthus, Hipersensibilidadae tipo III, reação de antígeno-anticorpo com excesso de antígeno, formação de imunecomplexos que se depositam nos vasos sanguíneos causando vasculite), como é o caso da Colite Alérgica (Figuras 5 & 6)


Figura 5- Lesão eczematosa retro-auricular em paciente portador de Colite Alérgica (reação imunológica do tipo III - reação de Arthus).


Figura 6- Lesão perianal (proctite) com formação de plicoma e fístula reto-perineal em paciente com Colite Alérgica (reação imunológica do tipo III - reação de Arthus).

É importante ressaltar que o mecanismo imunológico envolvido na gênese da Colite Alérgica não é mediado pela IgE. Por este motivo, os testes de rastreamento diagnóstico para Alergia, tanto cutâneos quanto sorológicos, que são disponíveis para investigar potencial alergia provocada pelo mecanismo de hipersensibilidade imediata, não se aplicam ao diagnóstico de Colite Alérgica. Isto porque, como anteriormente mencionado, o mecanismo imunológico envolvido neste tipo de alergia é o da Reação de Arthus, e, até o presente momento não existe nenhum teste cutâneo ou sorológico disponível para este fim.

No nosso próximo encontro seguiremos a discussão dos aspectos clínicos mais relevantes da Colite Alérgica.