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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (3)

Fatores de Risco para a ocorrência de Diarréia Persistente (DP)

A evolução de um episódio de diarréia aguda para persistente depende fundamentalmente de circunstâncias que envolvem a interação entre o hospedeiro, o agente agressor e seu meio ambiente. No que diz respeito ao hospedeiro os principais fatores predisponentes para a perpetuação da diarréia estão ligados à ausência da prática do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, função imunológica deficiente, desnutrição protéico-calórica e idade precoce. Com relação ao agente agressor, alguns microorganismos enteropatogênicos apresentam maior capacidade de provocar danos funcionais e morfológicos à mucosa intestinal e, portanto, são potencialmente mais predisponentes a causar o prolongamento do processo diarréico. Do ponto de vista do meio ambiente os baixos níveis sócio-econômico-educacionais dos pais ou cuidadores, hábitos de higiene alimentar precários, insalubridade da água e deficiência, ou mesmo ausência, da rede de esgotos, são fatores extremamente importantes que contribuem para a ocorrência da DP.

Etiopatogenia

Vários agentes etiológicos causadores de Diarréia Aguda têm sido envolvidos na gênese da DP, tais como: Escherichia coli enteropatogênica (EPEC), Escherichia coli enteroagregativa (EAEC), Salmonella, Shigella, Campylobacter, Cryptosporidium, Giárdia, Norovirus e Rotavirus, dependendo das características geográficas, sasonais, ambientais e das especificidades das populações estudadas. No nosso meio os agentes etiológicos mais frequentemente descritos como causadores de DP são as diversas cepas de EPEC e EAEC. Por este motivo, no presente manuscrito dedicarei particular atenção a estes 2 tipos de microorganismos enteropatogênicos (Figura 1).

Figura 1- A importância no nosso meio das cêpas de EPEC como causa de Diarréia Persistente.

EPEC

No nosso meio os sorogrupos de EPEC O111 e O119 representam aproximadamente 80% de todos os sorogrupos (são cerca de 20) isolados em crianças com diarréia. A Escherichia coli foi descoberta, em 1885, pelo Pediatra alemão Theodore Escherich que a denominou Bacterium coli commune, e a razão de utilizar esta terminologia foi para indicar sua ocorrência universal no intestino grosso dos indivíduos saudáveis. Entretanto, o próprio Escherich já suspeitava que a E. coli pudesse agir como agente enteropatogênico para o ser humano, quando por alguma razão estivesse deslocada do seu habitat natural, ou seja fora do intestino grosso. Para confirmar tal suspeita, este pesquisador demonstrou a patogenicidade da E. coli ao injetar um caldo de cultura da mesma em alças intestinais isoladas de coelho, provocando grande acúmulo de secreção de fluidos e eletrólitos. No entanto, o primeiro cientista a comprovar cabalmente a associação de cepas antigenicamente homogêneas de E. coli como causadoras de diarréia foi o Microbiologista John Bray, em 1945, na Inglaterra. Bray, trabalhando em colaboração com o Pediatra Thomas Beaven e com o Biólogo Stevenson, descreveu um surto de diarréia em lactentes internados no Hillingdon Hospital, Uxbridge, provocado por um novo agente enteropatogênico que apresentava elevada capacidade de virulência e que causou altas taxas de mortalidade (Figura 2).

Figura 2- Placa comemorativa a John Bray pela descrição da Escherichia coli enteropatogênica.

Vale a pena recordar que até aquela data somente eram conhecidos 3 agentes enteropatogênicos, a saber: Vibrio cholera, Salmonella e Shigella. Desta forma, o até então denominado Bacterium coli, passou a ser incorporado na lista dos agentes provocadores de diarréia, porém com uma característica especial, afetava crianças de baixa idade e provocava alta taxa de letalidade. Foi Kauffman, em 1947, o responsável pela mudança do nome de Bacterium coli para Escherichia coli, em homenagem ao seu descobridor o Pediatra alemão Theodore Escherich. Kauffman também foi o responsável pela caracterização dos diferentes grupos sorológicos da E. coli por meio da determinação dos antígenos O (somático), K (capsular) e H (flagelar) (Figura 3).

Figura 3- Grupos sorológicos de Escherichia coli.

A partir do esquema de classificação proposto por Kauffman constatou-se que a bactéria isolada por Bray e a amostra Aberdeen alfa, isolada por Giles em um surto de diarréia em lactentes naquela localidade, na Escócia, eram na realidade a E. coli O111. Estudos realizados por Kauffman e Du Pont em crianças portadoras de diarréia, no período de 1945 a 1950, em várias partes do mundo, mostraram que as E. coli isoladas pertenciam aos sorogrupos O55 e O111. No Brasil, foi o microbiologista Luis Rachid Trabulsi o pioneiro em descrever as cepas de E. coli causadoras de diarréia em crianças. Professor Trabulsi e cols., em 1961 (Ver. Inst. Med. Trop. São Paulo 3, 267) estudaram 80 crianças com diarréia, internadas no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tendo sido isolados em 17 delas colibacilos enteropagênicos, com predomínio das E. coli O119, O126, O26, O55 e O111.

A descoberta de Bray e seus colaboradores foi um avanço científico de enorme importância e, ainda que tardiamente, valeu o reconhecimento dos seus sucessores no Hillingdon Hospital, pois somente em 1968 foi realizado um evento em homenagem aos autores em referência a aquela descoberta. Naquela ocasião foi confeccionada uma placa comemorativa para celebrar a grande descoberta de Bray, que lá esteve presente juntamente com Beaven e Stevenson (Figura 4).

Figura 4- O Microbiologista John Bray (esquerda), o Pediatra Thomas Beavan (centro) e o Biólogo J. Stevenson (direita) no dia da homenagem em 1968.

Bray pode, então, contar com riqueza de detalhes todas as dificuldades, as frustrações e as dramáticas situações com as quais tiveram de conviver durante o período de aproximadamente 5 anos desde sua chegada ao hospital até finalmente poder confirmar cabalmente a existência deste novo agente enteropatogênico. Este relato está publicado na revista Archives of Disease in Childhood 48; 923-26, 1973, e vale a pena ser parcialmente transcrito para que se tenha uma idéia mais precisa do que representa a obstinada luta de um pesquisador para alcançar um determinado objetivo. Com a palavra John Bray: “Quando eu fui contratado pelo Hillingdon Hospital para trabalhar como patologista no Serviço de Emergência, em 1939, no começo da II Guerra Mundial, uma das minhas tarefas era realizar as necrópsias dos pacientes que faleciam no hospital. Eu supus que teria um grande trabalho com os falecimentos em decorrência dos bombardeios que a Inglaterra sofria naquela época. Entretanto, felizmente esta situação não ocorreu, mas logo me dei conta de que havia um grande número de óbitos de lactentes que recebiam aleitamento artificial. Estes lactentes faleciam devido a gastroenterite, os quais apresentavam uma característica que chamava minha atenção. Em um primeiro momento estas crianças aparentemente não apresentavam maior gravidade mas dentro de uma ou horas mais tarde encontravam-se agonizantes. Para minha surpresa os exames bacteriológicos das fezes não revelavam nenhum dos agentes enteropatogênicos conhecidos na época; tudo que era encontrado nas placas de cultura das fezes era Bacterium coli considerado da flora colônica normal, e além disso a necrópsia não revelava qualquer achado de valor diagnóstico que pudesse justificar a morte daquelas crianças. Entretanto, em um determinado dia Dr. Beavan veio ao meu laboratório e fez o seguinte comentário: ”Você sabe, eu consigo identificar estes casos de gastroenterite assim que eles são internados, porque eles exalam um odor característico de esperma”. Não fiz qualquer observação a respeito mas esta era a dica que eu estava esperando, porque desde a primeira placa de cultura, dentre as inúmeras que costumava realizar, que eu havia pego da bancada de um caso de gastroenterite e que evidenciava uma flora aparentemente normal, exalava um forte odor espermático, mas que era rapidamente evanescente. Decidi, então, levar para a enfermaria 2 placas de cultura, uma com Proteus, bactéria pertencente à flora fecal normal, que exala um forte odor caracterísitco, e uma outra de Bacterium coli com odor espermático, como costumávamos designar a E. coli à época. Entreguei as duas placas à enfermeira que cuidava dos pacientes com gastroenterite para que ela as cheirasse; quanto à cultura de Proteus ela disse que tinha um odor parecido a cola, mas quando ela cheirou a outra, imediatamente exclamou: "ela cheira igualzinho ao bebê Wickens”. Então eu retruquei, esta é a cultura de fezes do bebê Wickens, e, naquele exato momento, tive a certeza que havia solucionado o problema e um novo agente enteropatogênico estava sendo descoberto. A partir daí não podia apenas me ater em estabelecer o diagnóstico pelo odor exalado da placa da cultura de fezes, era necessário avançar e para tal era necessário elaborar um anti-soro que aglutinasse com esse tipo de bactéria. Para tal eu injetei a cultura de fezes do bebê Wickens (que infelizmente veio a falecer) na veia da orelha de um coelho, e, assim obtive um anti-soro. A partir daí tive que realizar inúmeros testes de aglutinação com diferentes cepas de Bacterium coli isoladas das fezes de indivíduos normais e com diarréia para poder comprovar minha suspeita. Este trabalho tomou-me muito tempo e estendeu-se por um período de 4 anos, nem sempre com resultados animadores, e, em muitos momentos provocando-me grandes frustrações, porque as aglutinações nem sempre ocorriam como o esperado. Porém, após muita insistência meu anti-soro passou a reagir de forma consistente com os micro-organismos isolados das fezes das crianças com gastroenterite, e eu me permito afirmar que isto foi um verdadeiro triunfo para controlar esta doença potencialmente fatal. O teste passou a ser um meio rapidamente efetivo para diferenciar os casos de diarréia por E. coli daqueles outros de origem irrelevante. Pela primeira vez o médico passou a ser capaz de diferenciar os casos de diarréia infecciosa grave daqueles observados em crianças saudáveis. É possível que nos dias atuais existam melhores métodos diagnósticos, mas naquela época este teste revelou-se algo absolutamente novo. Em conclusão, atualmente o micro-organismo isolado teve sua estrutura antigênica mais detalhadamente examinada e foi denominado Escherichia coli O111:B4. A cepa O111:B4 Wickens original ainda está conosco, e permanece com seu poder de causar gastroenterite em lactentes, mas os dias nos quais milhares de crianças no Reino Unido morriam a cada ano desta enfermidade já não existem mais”.

A descoberta de Bray e Beavan nos deixa inúmeros ensinamentos, além do próprio mérito científico, que por si só se revelou de importância clínica inestimável (Figura 5).

Figura 5- Graças aos achados pioneiros de Bray e Beavan aliados aos novos conhecimentos fisiopatológicos da infecção causada pelas cêpas de EPEC e também aos avanços científicos e tecnológicos da Medicina é que nosso paciente A, diferentemente de Wickens e tantas outras crianças que faleceram e continuam a falecer por esta grave infeccção, já está fora de perigo, e, embora ainda apresente fezes amolecidas está em franco processo de recuperação clínica e nutricional.

Em primeiro lugar, nos ensina o quão importante é levar em consideração a observação acurada dos mínimos detalhes para se alcançar grandes descobertas, no caso além dos conhecimentos de bacteriologia, existentes na época, foi a partir do uso de um órgão do sentido, o olfato, que se abriu todo um novo caminho para o sucesso da pesquisa em questão; em segundo lugar, o trabalho associativo com um colega de outra disciplina, o Pediatra, o profissional da saúde que vive intensamente à beira do leito o drama do seu paciente que sofre de uma enfermidade que aparentemente não pode ser debelada, mas que nem por isso deixa de buscar uma solução para salvar a vida daquele ser gravemente enfermo, mesmo tendo que vivenciar inúmeras frustrações na sua luta entre a doença e a busca incessante da saúde; em terceiro lugar, valorizar a enfermeira acreditando ser ela uma profissional tão envolvida quanto quaisquer outros no cuidado do paciente a ponto de demonstrar sua capacidade de perceber nitidamente as diferenças organolépticas entre os micro-organismos que cresceram na placa de cultura. Infelizmente, o que ainda persiste a ocorrer nos países em desenvolvimento é a realidade que Bray vivenciou nos anos 1940 na Inglaterra, e que continua a ser o desafio enfrentado em muitas frentes de batalha, tanto nos avanços da intimidade do processo infeccioso causado pelas cepas de EPEC quanto na melhor abordagem diagnóstica e terapêutica, como continuaremos a descrever no nosso próximo encontro.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Intolerância à Lactose: Mitos e Realidade (3)

Definições: Intolerância à Lactose – Má Absorção de Lactose – Deficiência de Lactase


Há na literatura médica vários conceitos para caracterizar cada um dos termos acima referidos e que muitas vezes podem trazer confusões diagnósticas e interpretações equivocadas de cada uma dessas denominações. A seguir trataremos de explicitar detalhadamente as diferentes situações observadas na prática diária.

A- Intolerância à Lactose: é uma síndrome clínica caracterizada por um ou mais dos seguintes sintomas: dor abdominal, diarréia, náusea, flatulência e/ou distensão abdominal após a ingestão de leite ou de substâncias contendo Lactose. A quantidade de Lactose que poderá causar sintomatologia varia de indivíduo para indivíduo, dependendo da quantidade ingerida, do grau de deficiência de Lactase, e também da forma da substância na qual a Lactose está presente.

B- Má Absorção de Lactose: é um problema fisiológico que pode se manifestar ou não como intolerância à Lactose (ocorrência de manifestações clínicas como anteriormente descritas) e é devida a um desequilíbrio entre a quantidade de Lactose ingerida e a capacidade disponível de Lactase para hidrolisar o substrato (reação enzima x substrato).

C- Deficiência Primária de Lactase: é caracterizada pela ausência relativa ou absoluta da Lactase a qual inicia seu desenvolvimento durante a infância, em idades variáveis, em distintos grupos étnicos, e é a causa mais comum de má absorção de Lactose e de intolerância à Lactose. A deficiência primária de Lactase é também denominada Hipolactasia Tipo Adulto ou Deficiência Hereditária de Lactase.
D- Deficiência Secundária de Lactase: é a deficiência de Lactase que resulta de uma lesão da mucosa do intestino delgado, tal como na diarréia aguda, diarréia persistente, sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado, ou outras causas de agressões à mucosa do intestino delgado, podendo estar presente em qualquer idade, porém sendo mais comumente observada nos lactentes e pré-escolares.

E- Deficiência Congênita de Lactase: enfermidade extremamente rara, potencialmente letal em épocas que não existiam substitutos para o leite.

F- Deficiência de Lactase do Desenvolvimento: é caracterizada como a deficiência relativa de Lactase observada entre prematuros com menos de 34 semanas de gestação.

Classificação das Intolerâncias à Lactose
1- Deficiência Primária de Lactase
Como já foi anteriormente mencionado cerca de 75% da população global não consegue tolerar a Lactose na vida adulta, posto que a produção de Lactase é determinada por um gene autossômico recessivo LAC*R, o qual acarreta a restrição da produção de Lactase a partir do 5º ano de vida, a qual ocorre de forma progressiva, porém, gradualmente. Embora a deficiência primária de Lactase possa se apresentar de uma maneira relativamente aguda sob a forma de intolerância ao leite, sua instalação é tipicamente sutil ao longo dos anos, surgindo no final da adolescência ou, mais tarde, na vida adulta. A maioria dos indivíduos adultos permanece com apenas 10% da capacidade de produção da Lactase em relação aos níveis observados durante o período de lactentes. É interessante assinalar que mesmo aqueles indivíduos com intolerância à Lactose na vida adulta são capazes de tolerar um copo de leite; entretanto, quando eles ingerem uma quantidade adicional de leite sintomas de intolerância podem surgir.

Pesquisadores da História tem demonstrado que os romanos geralmente utilizavam o leite como purgativos, dando preferência ao leite de égua sobre o leite de cabra, porque o primeiro apresenta maior concentração de Lactose. Da mesma forma na Ásia há comprovação histórica de que os chineses não consumiam leite. Estudos mais recentes demonstram cabalmente que também os habitantes nativos das Américas pré-Colombiana tampouco utilizavam o leite de animais na vida adulta.
Naquelas populações que não possuem tradição do uso do leite na vida adulta, a incidência de má absorção à Lactose alcança taxas que variam de 50 a 100% em todos os grupos étnicos estudados tanto na Ásia oriental, como nos povos nativos do Oceano Pacífico: chineses, japoneses, coreanos, tailandeses, indonésios, filipinos, aborígenes australianos, neo guineanos e nativos das ilhas Fiji. Altas incidências também foram encontradas em inúmeros povos africanos e seus descendentes que vieram para as Américas, tais como os Ibos, Iorubas, Hausas e Fulani da Nigéria; Bantus de Camarões; Congo; Uganda e Zâmbia.

Altas incidências também foram caracterizadas entre os italianos do sul, especialmente em Nápoles, cipriotas gregos, árabes da Jordânia, Síria, Israel e Egito.

A deficiência primária de Lactase afeta de 60 a 80% dos negros norte-americanos e dos judeus Ashkenazi, e aproximadamente 100% das populações nativas da Ásia e das Américas (Tabela 1).
Tabela 1- Prevalência de Deficiência Primária de Lactase e Persistência de Tolerância à Lactose em diversos grupos étnicos.
Portanto, pode-se depreender que a deficiência primária de Lactase é uma condição natural na vida adulta, e, conseqüentemente, muitos indivíduos apresentarão sintomas de intolerância à Lactose se consumirem leite, especialmente em grandes quantidades.

2- Deficiência Congênita de Lactase
Trata-se de uma doença extremamente rara, potencialmente letal, de origem autossômica recessiva, com incidência é de 1:60.000 nascidos vivos, cujos sintomas surgem nos recém-nascidos logo após receberem as primeiras mamadas. Os sintomas típicos são diarréia líquida de característica intratável se o diagnóstico não é suspeitado. Diarréia osmótica com perda dos nutrientes leva à desnutrição, associada à desidratação e acidose metabólica. Substâncias redutoras nas fezes são facilmente detectadas e o pH fecal torna-se ácido. Deve-se retirar a Lactose
da dieta, seguida da conseqüente introdução de fórmula isenta de Lactose. A resposta clínica ocorre poucas horas após a retirada da Lactose da dieta e o desenvolvimento da criança passa a ser normal. Vale enfatizar que esta deficiência enzimática é permanente, e que, portanto, a Lactose deve ser evitada durante toda a vida.

No nosso próximo encontro continuaremos a discutir os aspectos mais interessantes desse tema intrigante e desafiador que tantas discussões suscita.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Refluxo Gastroesofágico e Doença do Refluxo Gastroesofágico: como estabelecer o diagnóstico diferencial (4)

Complicações da Doença do Refluxo gastro-Esofágico

Neste capítulo abordaremos as principais complicações da Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRG) (vide figura 1 para visualizar o aspecto normal da mucosa do esôfago).
Figura 1- Visualização endoscópica da mucosa do esôfago de aspecto normal.

A mais frequente complicação da DRG é sem dúvida a Esofagite de Refluxo (ER), ou seja, a inflamação da mucosa do esôfago causada pela presença constante de material ácido proveniente do estômago e que leva à sensação de queimação retro-esternal. Esta inflamação pode apresentar diferentes nuances de intensidade, as quais dependem de uma série de circunstâncias, tais como, frequência e tempo de duração dos episódios de refluxo, tempo de existência dos sintomas e mesmo da sensibilidade da mucosa do esôfago à exposição ácida (o que é uma variação individual). A evidência mais direta da existência da ER se dá por meio da realização da endoscopia digestiva alta, posto que durante a execução deste procedimento o examinador, já pode de imediato, identificar através do equipamento óptico as mais diversas graduações de intensidade do processo inflamatório, o qual se caracteriza pela presença de erosões na mucosa esofágica (vide figuras 2 e 3). Há, porém, um debate entre os diferentes especialistas da área quanto à necessidade ou não da realização do exame histológico obtido por biópsia para se estabelecer o diagnóstico de certeza da ER.
Figura 2- Visualização endoscópica da mucosa do esôfago evidenciando esofagite de moderada intensidade.
Nos adultos, a frequência e a intensidade dos sintomas da DRG apresentam, de uma maneira geral, boa correlação com a gravidade da lesão esofágica. Na Pediatria, em um estudo realizado no Canadá, em 2006, no qual foram avaliadas 127 crianças e adolescentes de 1 a 17 anos de idade que sofriam da DRG, e que foram submetidos à avaliação endoscópica, a prevalência e a intensidade de anorexia e/ou recusa alimentar foi significantemente maior naqueles que apresentavam ER em relação a aqueles que não apresentavam lesão da mucosa esofágica. Por outro lado, estudo realizado nos EUA, em 2005, em lactentes (portanto, em crianças menores de 1 ano de idade) as manifestações sintomáticas não foram suficientemente válidas para se prognosticar a existência de ER. Desta forma, o que se pode afirmar, no presente estágio dos conhecimentos, é que não é possivel prognosticar com maior grau de acurácia a intensidade da lesão da mucosa esofágica em pacientes pediátricos quando apenas nos baseamos nos sintomas.


Figura 3- Visualização endoscópica da mucosa do esôfago evidenciando esofagite de intensa gravidade.
Em uma minoria dos casos a DRG pode acarretar uma diminuição do lúmen do esôfago (estreitamento do conduto esofágico), a qual se denomina Estenose Esofágica (vide figura 4). Este estreitamento, que se dá por edema e pela substituição de tecido esofágico por tecido fibroso (portanto inelástico) impede, em um estágio inicial, a passagem de alimentos sólidos causando disfagia persistente. Disfagia progressiva pode levar inclusive à dificuldade de deglutir líquidos o que sem dúvida é um sinal de alarme e que deve ser cuidado com urgência. De qualquer forma, o estreitamento esofágico provocado pela DRG deve ser distinguido de outras possíveis causas, tais como por exemplo, ingestão de soluções cáusticas, ou mesmo, uma outra doença recentemente descrita denominada Esofagite Eosinofílica. Portanto, nestes casos impõe-se a realização de endoscopia com estudo histológico da mucosa do esôfago, obtida por biópsia, para se determinar a causa do estreitamento.

Figura 4- Visualização endoscópica da mucosa do esôfago que revela um evidente estreitamento da sua luz (estenose esofágica).

Outra possível complicação da ER é o que se denomina esôfago de Barret (vide figura 5). Embora esta complicação seja muito menos frequente em pacientes pediátricos em relação ao que se observa em pacientes adultos, ela soe ocorrer em crianças e adolescentes. Por exemplo, em um estudo realizado no Canadá, em 2007, metaplasia esofágica (presença de células de outro órgão na mucosa esofágica; neste caso presença de células características do estômago ou intestino delgado) foi observada em 10% das crianças que sofriam da DRG grave, e, em metade delas ocorreu a presença de células caliciformes (estas células, que são produtoras de muco, o qual recobre a superfície da mucosa intestinal para lhe conferir proteção contra as agressões do meio ambiente, são típicas da mucosa do intestino), portanto, tipicamente do intestino delgado, o que caracteriza de forma inconteste a existência de esôfago de Barret. É de fundamental importância frisar que esôfago de Barret é uma lesão pré-cancerosa, e, portanto, deve ser tratada com total atenção.


Figura 5- Visualização endoscópica da mucosa do esôfago evidencaindo a existência de esôfago de Barret (lesão pré-cancerosa).
No nosso próximo encontro iremos abordar os mais recentes e avançados métodos diagnósticos do Refluxo Gastroesofágico.