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terça-feira, 11 de agosto de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (5)

Critérios Diagnósticos das AFGs
É necessário enfatizar que as AFGs não têm porque oferecer riscos à saúde dos pacientes sempre e quando os sintomas relatados pelos familiares são suficientemente bem explicados de tal forma a possibilitar ao médico a compreensão do problema. Isto possibilitará que o médico, por sua vez, elucide os familiares a respeito da ausência de efeitos adversos das manifestações clínicas. Por outro lado, caso venha a ocorrer equívoco diagnóstico, este ato, automaticamente, será acompanhado de tratamento inapropriado, posto que são sintomas meramente funcionais, o que poderá ser causa de sofrimento físico e emocional perfeitamente evitáveis. Por estas razões, segue adiante a discriminação dos elementos fundamentais que compõe os critérios diagnósticos de cada uma das AFGs.

1- Regurgitação Fisiológica do Lactente
A regurgitação do conteúdo gástrico para o esôfago e a boca é um fenômeno bastante freqüente entre os lactentes. A regurgitação em um lactente com aparência normal deve ser encarada como uma questão do desenvolvimento e não como uma enfermidade. A regurgitação se caracteriza pelo retorno involuntário do alimento previamente ingerido até a boca ou mesmo para o exterior. A regurgitação deve ser diferenciada do vômito, o qual é definido como um reflexo do sistema nervoso central envolvendo tanto os músculos lisos (involuntários) como os estriados (voluntários) onde o conteúdo gástrico é expelido forçadamente através da boca devido a movimentos coordenados que envolvem o intestino delgado, o estômago, o esôfago e o diafragma.

Para a caracterização do Refluxo Gastro-esofágico Fisiológico devem estar incluídos todos os seguintes sintomas que se apresentam em um lactente aparentemente normal entre as 3 semanas e 1 ano de vida:

1. Regurgitação de 2 ou mais vezes por dia por pelo menos 3 semanas.
2. Ausência de náuseas, hematêmese, aspiração, apnéia, déficit de ganho ponderal, dificuldades para se alimentar ou para deglutir o alimento, ou postura anômala.

2- Síndrome da Ruminação
Trata-se de uma afecção rara caracterizada pela regurgitação voluntária do conteúdo gástrico para a boca por estímulo próprio. A ruminação é a regurgitação dos alimentos recentemente deglutidos, os quais são remastigados, e que tanto podem ser deglutidos novamente como expelidos para o exterior. Embora a ruminação se enquadre como uma AFG, ela reflete uma afecção psiquiátrica causada por deprivação social.

Para a caracterização da Síndrome da Ruminação devem estar incluídos todos os seguintes sintomas que se apresentam durante pelo menos 3 meses:

1. Contrações repetitivas dos músculos abdominais, diafragma e da língua.
2. Regurgitação do conteúdo gástrico para a boca, o qual é mastigado novamente e que pode ser deglutido ou expelido para o exterior.
3. Deve estar acompanhada de 3 ou mais características, tais como:
a. início entre 3 e 8 meses
b. mostrar-se resistente ao manejo terapêutico para a doença do refluxo gastro-esofágico, ao emprego de drogas anticolinérgicas, mudanças de fórmulas alimentares e alimentação por sonda naso-gástrica
c. não estar associada a sinais de náusea ou estresse
d. não ocorrer durante o sono ou quando a criança está interagindo com outras pessoas
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3- Síndrome dos Vômitos Cíclicos
A síndrome dos vômitos cíclicos (SVC) consiste na ocorrência de episódios recorrentes e estereotipados de náuseas intensas e vômitos que perduram horas ou dias e que são separados por intervalos isentos de sintomas que podem durar semanas ou meses. A freqüência dos vômitos pode variar de 1 a 70 episódios por ano e em média alcançam 12 episódios por ano. As crises podem ocorrer tanto em intervalos regulares como esporadicamente. Tipicamente, os episódios costumam ter início no mesmo período do dia, mais comumente durante a noite ou pela manhã, e a duração dos mesmos em geral obedece uma constante em um determinado paciente. A SVC atinge sua maior intensidade durante as primeiras horas de cada crise e os vômitos tendem a diminuir em freqüência e intensidade logo após este período de tempo, muito embora as náuseas continuem a estar presentes até o final de um determinado episódio. Os episódios tendem a se findar tão rapidamente quanto ao seu começo e são marcados por uma pronta recuperação do bem estar clínico, desde que o paciente não tenha sofrido perdas hidro-eletrolíticas significativas. Os principais sinais e sintomas que acompanham as crises de vômitos incluem: palidez, fraqueza, salivação excessiva, dor abdominal, intolerância aos ruídos, à luz e a odores, dor de cabeça, fezes amolecidas, febre, taquicardia, hipertensão e leucocitose. Cerca de 80% dos pacientes conseguem identificar as circunstâncias ou eventos que desencadearam os ataques, tais como alterações do estado emocional, infecções, asma ou exaustão física.

Para a caracterização da SVC devem estar incluídos todos os seguintes sintomas, a saber:

1. Dois ou mais episódios de náuseas intensas e vômitos incoercíveis durando horas ou dias.
2. Retorno ao estado clínico usual de saúde que perdura durante semanas a meses.

4- Cólica do Lactente
O termo “cólica” implica em dor abdominal causada por obstrução do fluxo envolvendo os rins, a vesícula biliar ou o intestino. Por outro lado, a denominação “cólica do lactente” é atribuída a uma síndrome comportamental que afeta o lactente de tenra idade cuja manifestação se dá por longas crises de choro aparentemente devidas à dor abdominal. A “cólica do lactente” foi definida no passado como paroxismos de irritabilidade, mal estar e/ou crises de choro que perduram por mais de 3 horas por dia e que costumam ocorrer mais de 3 dias por semana. Embora até o presente momento não tenha sido possível comprovar que a “cólica do lactente” seja causada por uma dor abdominal ou mesmo em qualquer outra parte do corpo, os pais, geralmente, assumem que a causa do choro excessivo se deve a dor abdominal de origem gastrointestinal.

É necessária a familiaridade com a “cólica do lactente” para que se evite diagnóstico e tratamento equivocados. Embora as crises de choro possam se dever à dor causada por um processo inflamatório naqueles lactentes que apresentam hipersensibilidade às proteínas das fórmulas lácteas é importante enfatizar que, por definição, a “cólica do lactente” não é causada por uma enfermidade orgânica. Os episódios de “cólica” começam e terminam subitamente sem que alguma causa lógica esteja agindo e geralmente soem acontecer ao anoitecer. As crises de choro tendem a desaparecer espontaneamente por volta dos 3 a 4 meses de idade, sendo que na média o pico destas crises é alcançado ao redor das 6 semanas e costumam diminuir por volta das 12 semanas de vida. Provavelmente, a “cólica do lactente” representa o limite superior da “curva de choro” de um lactente normal. A cólica significaria, portanto, “alguma coisa que o lactente externa, muito mais do que uma condição patológica que ele possui”.

Para a caracterização da “Cólica do Lactente” devem estar incluídos todos os seguintes sintomas nos lactentes desde o nascimento até os 4 meses de idade, a saber:

1. Paroxismos de irritabilidade, desconforto ou choro que se iniciam e se findam sem que exista alguma causa óbvia.
2. Os episódios geralmente duram 3 ou mais horas por dia e devem ocorrer pelo menos 3 vezes por dia durante pelo menos 1 semana.
3. Não pode ocorrer déficit do ganho pondero-estatural.

5- Diarréia Funcional

A diarréia funcional é definida como a evacuação indolor, diária de 3 ou mais episódios de fezes mal formadas, por 4 ou mais semanas com início durante o período de lactente evoluindo até a idade pré-escolar. Não há evidencias de déficit pondero-estatural caso a dieta seja adequada quanto à oferta protéico-calórica. A criança se mostra ativa e não apresenta qualquer perturbação do seu estado clínico em decorrência da eliminação de fezes amolecidas, e os sintomas desaparecem espontaneamente quando a criança chega à idade escolar.

Para a caracterização da Diarréia Funcional devem estar incluídos todos os seguintes sintomas nos lactentes desde os 6 meses até os 4 anos de idade, a saber:

1. Eliminação indolor, diária de 3 ou mais episódios de fezes mal formadas.
2. Sintomas perduram por mais de 4 semanas.
3. Início dos sintomas ocorrem a partir dos 6 meses e se estendem até os 36 meses de vida.
4. As evacuações ocorrem durante o período do dia que a criança está em estado alerta.
5. Não ocorre déficit pondero-estatural caso a ingestão alimentar seja adequada quanto à composição protéico-calórica.

Observação: o que o grupo de experts denomina Diarréia Funcional, na minha experiência representa uma das diversas formas de manifestação clínica da Síndrome do Intestino Irritável. Para informações mais detalhadas sugiro a leitura dos capítulos a respeito da Síndrome do Intestino Irritável, os quais estão disponíveis neste blog em datas anteriores.

No nosso próximo encontro continuarei a discutir as mais variadas nuances e os novos conhecimentos deste excitante problema que afeta um sem número de crianças em todo o globo terrestre.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência (4)

Os Critérios de Roma III para o Diagnóstico das Afecções Funcionais Gastrointestinais (AFGs): um grande avanço na melhor compreensão de uma séria preocupação familiar

A Fundação Roma tem como missão estabelecer metas que visem “melhorar a qualidade de vida das pessoas que sofrem de alguma das diversas AFGs”. Essas metas estão dirigidas para “promover o reconhecimento e legitimação das AFGs, bem como desenvolver uma compreensão científica dos seus mecanismos fisiopatológicos e, além disso, proporcionar um tratamento adequado”.

Em 1997 sete gastroenterologistas pediátricos se reuniram em Roma para elaborar o primeiro grupo de critérios baseados em sintomas para o diagnóstico das AFGs em Pediatria e que recebeu a designação dos critérios de Roma II (Gut 1999;45 (Suppl II):I160-68). Vale à pena ressaltar que os critérios de Roma I apenas se restringiram aos aspectos das AFGs em adultos. Sete anos mais tarde, portanto em 2004, foram criados dois grupos de trabalho para revisar os critérios diagnósticos das AFGs em Pediatria. Estes dois grupos de trabalho tiveram por missão, baseados nas pesquisas publicadas nos anos precedentes, melhorar e ampliar os critérios inicialmente propostos. Este encontro resultou na elaboração de dois tipos de critérios diagnósticos para as AFGs, de acordo com o grupo etário pediátrico, assim distribuídos: 1- Lactentes e Pré-escolares (Gastroenterology 2006;130:1519-26) e 2- Escolares e Adolescentes (Gastroenterology 2006;130:1527-37), os quais passarei a descrever e discutir.
As AFGs nos lactentes incluem uma combinação variada de sintomas que geralmente são dependentes da idade, tem a característica de serem crônicas ou recorrentes, e que não são explicáveis por anormalidades estruturais nem tampouco bioquímicas. Estes sintomas durante toda a infância, na imensa maioria das vezes (salvo não ocorra ação iatrogênica), não afetam o crescimento e o desenvolvimento (por exemplo, regurgitação fisiológica do lactente devido à imaturidade do esfíncter esofágico inferior), ou podem surgir como resposta conseqüente a uma má adaptação comportamental de um estímulo interno ou externo (por exemplo, constipação funcional, retenção de fezes desencadeada por defecação dolorosa).

A expressão clínica das AFGs depende do estágio de desenvolvimento autonômico, afetivo e intelectual do indivíduo e concomitantemente com algum distúrbio orgânico ou psicológico. Para exemplificar de uma maneira mais objetiva, tomemos o caso da regurgitação fisiológica do lactente como uma expressão de um sintoma funcional, a qual é um problema transitório que perdura alguns meses durante o primeiro ano de vida, mas que causa grandes preocupações nos pais. Trata-se, aqui, simplesmente da imaturidade do esfíncter esofágico inferior, não havendo quaisquer anormalidades detectáveis, sejam estruturais e/ou bioquímicas. Outro exemplo característico diz respeito à diarréia da Síndrome do Intestino Irritável, a qual costuma instalar-se a partir do sexto mês de vida e que avança de forma recorrente até a idade pré-escolar, sem causar qualquer agravo nutricional, caso não ocorra ação iatrogênica.

A decisão dos familiares de buscar atenção médica em decorrência dos sintomas apresentados é condicionada pelo grau de preocupação dos mesmos para com seu filho. O limiar de preocupação dos familiares varia dependendo das experiências prévias e expectativas, do grau da capacidade de superação do problema e também da idéia de percepção de doença. Por esta razão, a consulta ao médico, neste caso não se trata somente de um sintoma que a criança apresenta, mas tão importante quanto, trata-se do receio dos familiares em relação ao risco de gravidade que os sintomas podem causar. Portanto, o médico deve além de estabelecer o diagnóstico correto também reconhecer a potencial extensão do impacto emocional que os sintomas acarretam na esfera familiar. Desta forma, toda conduta planejada tem necessariamente que atender aos anseios de ambos, criança e familiares.

O manejo terapêutico eficaz do problema depende da garantia do estabelecimento de uma aliança confiável entre o médico e os familiares. Como é do conhecimento geral, durante os primeiros anos de vida a criança não consegue, de forma acurada, relatar seus sintomas, sejam eles náuseas ou dor. O lactente e o pré-escolar não são capazes de discriminar entre um desconforto físico ou emocional. Assim sendo, o médico depende dos relatos e das interpretações dos familiares, posto que estes supostamente são aqueles que melhor conhecem as reações dos seus filhos, aliados das suas vivências como profissional da saúde, para diferenciar entre o estado de saúde e o da doença.

O grupo de trabalho constituído por experts, internacionalmente reconhecidos na área, propôs a seguinte classificação para as AFGs no lactente e no pré-escolar:
1- regurgitação fisiológica; 2- síndrome da ruminação do lactente; 3- síndrome dos vômitos cíclicos; 4- cólica do lactente; 5- diarréia funcional ou síndrome do intestino irritável; 6- disquezia do lactente (dificuldade para evacuar, fazendo grande esforço); 7- constipação funcional.
Para cada uma destas afecções acima listadas são propostos critérios diagnósticos e sobre os quais nos ocuparemos no nosso próximo encontro.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Refluxo Gastroesofágico e Doença do Refluxo Gastroesofágico: como estabelecer o diagnóstico diferencial (1)

Conceito

No caso do Refluxo Gastroesofágico (RGE) é necessário fazer uma diferenciação conceitual, ou seja, o que é denominado RGE "fisiológico" daquilo que se considera Doença do RGE. Regurgitação pode ocorrer em até cerca de 80% dos lactentes dentro do primeiro semestre de vida, e deve desaparecer progressivamente em 95% deles, sem qualquer intervenção, até o final do primeiro ano. Pesquisas clínicas realizadas nos EUA e Japão, em 2002, com base em um questionário elaborado para ser respondido pelos pais de lactentes considerados normais, em visitas de rotina ao consultório do Pediatra, revelaram que 67% dos seus filhos regurgitavam diariamente até os 4 mêses de idade, estes sintomas diminuiram para 21% aos 7 mêses e que apenas 5% deles ainda regurgitavam ao final do primeiro ano de vida. Este fenômeno ocorre porque quanto mais jovem for o lactente, ainda mais frequentemente em prematuros, há uma imaturidade na válvula que se encontra entre o final do esôfago e a entrada do estômago. Esta válvula, em condições normais, se abre apenas para dar passagem do conteúdo do esôfago para o estômago, em seguida se fecha e, assim, não permite que haja um retorno do conteúdo gástrico para o esôfago. Esta válvula chama-se Esfincter Esofágico Inferior (vide figura da motilidade esofágica extraída do livro Digestive System de Frank H. Netter) (Figura 1).


Figura 1- Desenho ilustrativo das diferentes pressões ao longo do esôfago até alcançar o Esfincter Essofágico Inferior e sua abertura para o Estômago

Quando esta válvula não se fecha adequadamente pode ocorrer o retorno do conteúdo gástrico para o esôfago o que caracteriza o RGE (Figura 2). O material refluido pode alcançar diferentes niveis apenas ao longo do esôfago, neste caso, denomina-se refluxo oculto. Porém, quando o material refluido alcança a boca, sem que haja qualquer esforço de contração muscular do abdome, e aí é eliminado para o exterior, denomina-se Regurgitação.
Caso esta manifestação não esteja acompanhada de outros sintomas que possam afetar a qualidade de vida do lactente, isto é, o lactente continua ganhando peso e crescendo normalmente dentro do seu canal de crescimento, a regurgitação mesmo que frequente, até prova em contrário, deve ser considerada como RGE "fisiológico".


Figura 2- Exame radiológico contrastado mostrando o estômago repleto de contraste na primeira foto à esquerda e a ocorrência do refluxo gástro-esofágico nas outras 2 fotos.

Esta situação é que os gastropediatras norte-americanos denominam de "happy spitter", em tradução literal "regurgitadores felizes". Vale a pena assinalar que 80% dos lactentes que apresentam RGE "fisiológico" regurgitam mais de uma vez ao dia, até mesmo mais do que 4 vezes ao dia, e, que não há diferenças significativas na incidência da regurgitação quanto ao tipo de aleitamento, natural (seio materno) ou artificial (mamadeira).

No nosso próximo encontro iremos discutir a Doença do RGE, seus sintomas digestivos e extra-digestivos.