quinta-feira, 30 de julho de 2015

Colite Alérgica: a evolução clínica de uma enfermidade de caráter transitório com forte evidência de herança genética (parte 1)

Introdução
 
Colite é uma designação genérica para caracterizar processos inflamatórios, de distintas etiologias, que afeta o intestino grosso acarretando lesões microscópicas características, não necessariamente associadas a alterações macroscópicas (1). As principais causas de colite na infância abrangem um grupo heterogêneo de etiologias, a saber: infecciosa, parasitária, alérgica, enfermidade inflamatória e enfermidade auto-imune (2).
 
Alergia alimentar é uma reação adversa aos alimentos mediada por mecanismos imunológicos, IgE mediados ou não. Colite Alérgica, também denominada proctocolite eosinofílica induzida por alimentos (3), é um tipo de alergia que pertence ao grupo de hipersensibilidade alimentar não mediada por IgE. O mecanismo fisiopatológico ainda não foi totalmente identificado, porém, sabe-se que envolve a presença de linfócitos CD8, bem como linfócitos do tipo TH-2 e infiltrado eosinofílico em todas as camadas da mucosa colônica (4). Além disso, a presença de células de memória circulantes reveladas por testes positivos de transformação linfocítica sugere o envolvimento de células T na patogênese desta entidade, associada à secreção de fator de necrose tumoral α pelos linfócitos ativados (5).
 
O começo da enfermidade se dá nos primeiros meses da vida, mais freqüentemente no primeiro semestre, sem provocar agravos de monta sobre o estado nutricional (6), mas em alguns casos devido à sensibilização intra-útero pode ocorrer manifestação clínica dentro das primeiras semanas (7) (Figura 1).

Figura 1- Paciente de 3 meses de idade com quadro de diarreia sanguinolenta e muco nas fezes. 
 
A manifestação clínica mais florida e frequente é a ocorrência de cólicas, de intensidade variável, acompanhada de sangramento retal misturado às fezes, na maioria das vezes sob a forma de diarréia sanguinolenta e eliminação de quantidade significativa de muco (8) (Figura 2). 

Figura 2- Amostra das fezes do paciente evidenciando sangue vivo e muco misturados às fezes.

Por outro lado, em algumas ocasiões o sangramento retal pode não ser macroscopicamente visível. Usualmente, as lesões são circunscritas ao colon distal e a colonoscopia revela mucosa hiperemiada, com a presença de múltiplas pequenas ulcerações com grande fragilidade vascular e sangramento espontâneo à passagem do colonoscópio (9) (Figuras 3 - 4). 
Figura 3- Visão macroscópica da mucosa colônica apresentando inflamação e friabilidade com sangramento espontâneo.

Figura 4- Visão macroscópica da mucosa colônica em maior aumento.

A análise histológica evidencia, na imensa maioria dos casos, infiltração eosinofílica, com mais de 20 esosinófilos por campo de grande aumento, a qual pode atingir todas as camadas da mucosa colônica, inclusive o epitélio superficial, podendo também haver a presença de abscessos crípticos e hiperplasia nodular linfóide (10,11) (Figuras 5 – 6).
 

Figura 5- Amostra de biópsia retal de paciente portador de colite alérgica em microscopia óptica comum, aumento médio, evidenciando aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria. Eosinófilos em número aumentado na lâmina própria e inclusive permeando a glândula críptica.


Figura 6- Amostra de biópsia retal de paciente portador de colite alérgica, microscopia óptica comum, grande aumento, enfatizando a presença de eosinófilos na lâmina própria e invadindo o epitélio retal. 

Estima-se que fatores genéticos exerçam papel fundamental na expressão desta doença alérgica, posto que uma elevada ocorrência de história de atopia nas famílias de crianças que sofrem de colite eosinofílica têm sido descritas.
 
O presente objetivo é descrever a ocorrência de 5 casos de colite alérgica em lactentes, primos entre si, pertencentes a 2 grupos familiares distintos.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Síndrome do Intestino Irritável e Sensibilidade ao Glúten não Celíaca: uma complexa relação e possível sobreposição de duas entidades clínicas (Parte 4)

SII e SGNC: Intolerância alimentar e Sensibilidade alimentar, a possível sobreposição dos sintomas

Recentemente, Biesiekierski e cols. (21), em 2013, investigando pacientes portadores de SII com diarreia demonstraram que as alterações do hábito intestinal se deviam principalmente à presença de carboidratos fermentáveis não absorvíveis na dieta. Ao eliminar essas substâncias da dieta, porém, ainda que mantivessem alimentos contendo glúten ocorria um alívio dos sintomas digestivos. Esses autores passaram a utilizar a sigla FODMAPs, que significa carboidratos fermentáveis não absorvíveis, em especial os frutanos. Frutanos são polímeros da frutose sintetizados a partir da sacarose e que ocorrem na natureza no mundo vegetal em inúmeros alimentos comumente utilizados na dieta ocidental. Essas substâncias não são digeridas e consequentemente não são absorvidas pelo trato digestivo do ser humano. Alcançam o intestino grosso e aí são fermentadas pelas bactérias da flora colônica, sendo transformadas em ácidos graxos de cadeia média com alto poder osmótico. A presença destas substâncias no lúmen intestinal provoca flatulência, dor abdominal e diarreia, em especial nos pacientes portadores de SII. O trigo é a maior fonte dietética de frutano, e este, além do glúten, é um aspecto que deve ser levado em consideração como mais um fator potencial causador de sintomas, posto que o trigo está presente em praticamente todas as refeições tradicionais do mundo ocidental, tais como: pães, cereais, macarrão, bolos, biscoitos e etc (Figura 11).

Figura 11- Concentração de frutanos em alguns alimentos da dieta comum. 

 Vale salientar que, além do trigo os frutanos estão presentes em inúmeros outros alimentos de uso comum em nossas dietas, tais como: feijão, feijão branco, grão de bico, ervilha, lentilha, banana, cebola, alho, repolho, alho poró e etc.  Por esta razão, Biesiekierski e cols. (22) propõem que nos pacientes portadores de SII com diarreia e intolerantes ao glúten e aos frutanos seja utilizada uma dieta restritiva destes alimentos.


Diante desta polêmica entre os possíveis causadores dos sintomas, seja o glúten (sensibilidade) ou os FODMAPs (intolerância alimentar), ou mesmo ambos, torna-se importante definir claramente as diferenças entre estas duas as condições. Portanto, para evitar maiores confusões vale a pena levar em consideração o consenso do Instituto Nacional da Alergia e Infectologia dos Estados Unidos (23), a saber: intolerância alimentar ocorre quando o organismo deixa de produzir um determinado enzima responsável pela digestão de um certo nutriente ou quando há excesso de nutriente oferecido para a enzima específica (lactose x lactase). Nestas circunstâncias, portanto, os sintomas são exclusivamente digestivos, majoritariamente secundários à fermentação do carboidrato pela ação da microbiota colônica, que leva à produção de gás, com distensão e dor abdominal, e diarreia. Exemplos frequentes destas condições incluem a intolerância à lactose e/ou o excesso dos FODMAPs. Por outro lado, as sensibilidades alimentares são reações mediadas imunologicamente induzidas por alguns nutrientes; estas reações (digestivas e extra-digestivas) nem sempre ocorrem da mesma forma quando o indivíduo ingere um determinado alimento. A SGNC é um exemplo de sensibilidade alimentar. Entretanto, tem surgido publicações atribuindo mais aos FODMAPs do que ao glúten os sintomas descritos, o que poderia levar a crer que a SGNC não seria uma entidade clínica diversa da SII, mas sim um subgrupo da mesma. Entretanto, se levarmos em consideração de forma estrita as diferenças entre as definições de intolerância alimentar e sensibilidade alimentar pode-se afirmar que a SII e a SGNC são entidades clínicas distintas, mas com algumas manifestações que se sobrepõem.

Tratamento

Como a SII trata-se de um transtorno funcional de etiologia multifatorial torna-se extremamente difícil propor uma terapêutica única que venha solucionar todo o complexo causal dos sintomas apresentados pelos pacientes. Deve-se sempre preferentemente eliminar, ou ao menos minimizar, os fatores desencadeantes da sintomatologia apresentada, em especial o estresse emocional e a restrição de algum fator dietético que comprovadamente esteja contribuindo de forma decisiva para a perpetuação do quadro clínico do paciente. Os tratamentos incluem intervenção psicológica, manipulações dietéticas, alteração da microbiota colônica (pró-bióticos e pré-bioticos). Cada paciente deve receber uma atenção individualizada com ações terapêuticas combinadas, baseada na intensidade dos sintomas, na dependência da sua personalidade e de sua preferência, na natureza dos transtornos fisiológicos e também na presença e condição das comorbidades psicológicas. A utilização rotineira de drogas anti-depressivas não parece ser a melhor escolha para solucionar os problemas, posto que irão atuar na consequência e não na causa desencadeante da sintomatologia.

O tratamento da SGNC baseia-se na introdução de uma dieta isenta de glúten que deve resultar no desaparecimento dos sintomas. Por outro lado, a reintrodução do glúten na dieta deve provocar o recrudescimento dos sintomas, o que confirma o diagnóstico.

Conclusões

Considerando que a SGNC se trata de uma entidade clínica recentemente redescoberta e com limitado número de publicações, até o presente momento disponíveis na literatura científica, inúmeras questões a respeito deste transtorno digestivo ainda necessitam ser respondidas com maior precisão. Seria a SGNC um transtorno permanente ou transitório? Seria o limiar de sensibilidade o mesmo para todos os pacientes, ou haveria um limiar variável de indivíduo para indivíduo, e no mesmo indivíduo haveria variação com o decorrer do tempo? Seria apenas o glúten o causador dos sintomas ou haveria também uma associação com os carboidratos fermentáveis e não digeridos? Qual é a verdadeira prevalência da SGNC? Atualmente a prevalência relatada na literatura varia de 0,5 a 6%, números estes baseados em estudos realizados em diversos centros médicos, mas desprovidos de uma uniformidade científica no desenho dos projetos de pesquisa. Portanto, tornam-se cada vez mais urgentes investigações clínicas e laboratoriais de reconhecido valor científico que possam vir a elucidar um sem inúmero de dúvidas ainda existentes a respeito de tão importante, intrigante e atual problema, que afeta um número cada vez mais crescente de indivíduos em todo o mundo ocidental.

Riscos das Manipulações Dietéticas

Os profissionais da saúde ao recomendar o manejo dietético para seus pacientes devem estar cientes dos potenciais riscos que estas intervenções possam causar. Uma estratégia de intervenção nutricional inadequada pode acarretar uma super-restrição alimentar com graves consequências a médio e longo prazos. Um estudo na Noruega (24) revelou que 12% dos pacientes portadores da SII receberam orientação dietética inadequada o que resultou em exclusões alimentares excessivas e prejudiciais. Além disso, muitos pacientes que se julgam intolerantes à lactose não são mal absorvedores de lactose, o que exige, portanto, a necessidade de comprovar de forma fidedigna se tal intolerância realmente existe. A restrição indevida de lactose da dieta pode acarretar reduções na ingestão de vitamina B2, fósforo e cálcio, além de outros micronutrientes. Deve-se também considerar que dietas restritivas são economicamente mais custosas tanto do ponto de vista financeiro como social.   
  
Referências Bibliográficas

1-         Lovell RM & Ford AC – Clin Gastroenterol Hepatol 2012;10:712-21
2-         Rasquim A, Di Lorenzo C, Forbes D et al – Gastroenterology 2006;130:1527-37
3-         Kennedy PJ, Cryan JF, Dinan TG et al – World J Gastroenterol 2014;20:14105-25
4-         Gibson PR, Muir JG et al. – Gastroenterology 2015; 148:1158-74
5-         Simrén M – Gastroenterology 2009;136:1487-1505
6-         Camilleri M & Di Lorenzo C – J Pediatr Gastroenterol Nutr 2012;54:446-53
7-         Halmos EP, Power VA et al – Gastroenterology 2014;146:67-75
8-         Biesiekierski JR,Peters S et al – Gastroenterology 2013;145:320-28
9-         Ellis A & Linaker BD – Lancet 1978;1:1358-59
10-     Cooper BT, Holmes GK et al – Gastroenterology 1980;79:801-06
11-     Sapone A, Lamers KM et al – Int Arch Allergy Immunol 2010;152;75-80
12-     Fasano A, Sapone A et al – Gastroenterology 2015;148:1195-1204
13-     Digiacomo DV, Tennyson CA et al – Scand J Gastroenterol 2013;48:921-25
14-     Francavilla R, Cristofori F et al – J Pediatrics 2014;164:463-7
15-     Carroccio A, Mansueto P et al – Am J Gastroenterol 2013;108:1845-52
16-     Mauri L, Ciacci C et al – Lancet 2003;362:30-7
17-     Fritscher-Ravens, Schuppan D et al – Gastroenteology 2014;147:1012-1020
18-     Sapone A, Bai J et al – BMC Med 2012;10:13
19-     Carroccio A, Mansueto P et al – Am J Gastroenterol 2012;107:1898-1906
20-     Vasquez-Roque MI, Camilleri M et – Gastorenterology 2013;144;903-11
21-     Biesiekierski JR, Newnham Ed et al – Am J Gastroenterol 2011;106:508-14
22-     Biesiekierski JR, Peters Sl – Aliment Pharmacol Ther 2014;39:1104-1112
23-     Boyce JA, Assaad A et al – J Allergy Clin Immunol 2010;126:S1-S58
24-     Monsbakken KW, Vandik PO et al – Eur J Clin N Utr 2006;60:667-72

terça-feira, 14 de julho de 2015

Síndrome do Intestino Irritável e Sensibilidade ao Glúten não Celíaca: uma complexa relação e possível sobreposição de duas entidades clínicas (Parte 3)

SII e SGNC: uma relação complexa

A SII ao que tudo indica representa uma cesta na qual estão misturadas várias entidades clínicas cujas manifestações clínicas são muito similares entre si. Desta forma, é possível considerar que alguns indivíduos portadores da SGNC sejam tipicamente casos de SII e vice-versa, ou seja, um subgrupo de pacientes com SII possam, na verdade, serem portadores da SGNC. Este cenário tem sido ressaltado nos indivíduos portadores da SII subtipo Diarreia, particularmente naqueles em cujo genótipo esteja presente o complexo genético DQ2 e/ou DQ8. Neste grupo de pacientes foi demonstrado que a ingestão de grãos contendo glúten aumentou a permeabilidade intestinal através da ruptura das junções firmes do epitélio intestinal, embora sem afetar sua estrutura histológica nem tampouco o trânsito intestinal. Fritscher-Ravens e cols. (17) demonstraram em um grupo de 36 pacientes portadores da SII a ocorrência de uma nítida relação com a ingestão de glúten, muito embora tenham sido excluídas DC e AT. Estes autores demonstraram a existência de rupturas nas junções firmes e infiltração de células imunológicas nos enterócitos em 22 dos 36 pacientes estudados. A maioria destes pacientes (13/22) reagiu ao trigo, enquanto que os outros reagiram ao leite, soja e fungos. É importante assinalar que a exclusão destes alimentos agressores reduziu os sintomas clínicos em média de 74% durante um período de 1 ano de acompanhamento.

A análise da epidemiologia da SII indiretamente estima a frequência da SGNC. No nordeste da Europa, a prevalência da SII na população adulta em geral é de 16-25%. Em uma série de pacientes com SII, a frequência de SGNC, em estudo duplo-cego, placebo-controlado foi de 28% (18).

Um amplo estudo realizado por Carroccio e cols. (19), em 2012, revelou que 30% dos indivíduos com sintomas compatíveis da SII de acordo com os critérios de Roma II sofriam de sensibilidade ao trigo e/ou a múltiplos alimentos. Assim, se for levado em consideração este estudo, uma proporção consistente de pacientes com SII é afetada pela SGNC, o que faz crer que a prevalência desta síndrome na população geral parece ser maior que a da DC, que é cerca de 1%, na maioria dos países do mundo ocidental, inclusive no Brasil. Entretanto, a prevalência da SGNC na faixa etária pediátrica ainda é desconhecida.

Vasquez-Roque e cols. (20), em 2013, demonstraram que pacientes não celíacos portadores da SII com predominância da variante diarreia, podem desenvolver sintomas gastrointestinais após a ingestão de glúten. Estes pacientes ao receberem uma dieta contendo glúten apresentavam maior número de evacuações por dia, particularmente aqueles cujo genótipo era HLA-DQ2 e/ou DQ8. A dieta contendo glúten mostrou-se associada com aumento da permeabilidade do intestino delgado e significativa diminuição na expressão da zonula ocludens 1 da mucosa colônica. Estes efeitos foram significativamente maiores nos pacientes HLA-DQ2 e DQ8 positivos. Por outro lado, pacientes que receberam dieta contendo glúten versus aqueles que receberam dieta isenta de glúten, não apresentaram alterações significativas sobre o trânsito gastrointestinal ou na morfologia do intestino delgado. Os autores concluíram que o glúten provoca ruptura da barreira de permeabilidade intestinal nos pacientes com SII com diarreia, particularmente naqueles HLA-DQ2 e DQ8 positivos. As alterações na barreira de permeabilidade intestinal permitiram oferecer explanações mecânicas a respeito das observações de que a retirada do glúten da dieta pode provocar alívio dos sintomas nos pacientes portadores de SII com diarreia (Figura 10).




Figura 10- Representação esquemática da evolução dos pacientes antes e após a retirada do glúten da dieta evidenciando alívio dos sintomas em especial a diarreia.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Síndrome do Intestino Irritável e Sensibilidade ao Glúten não Celíaca: uma complexa relação e possível sobreposição de duas entidades clínicas (Parte 2)

Sensibilidade ao Glúten não Celíaca (SGNC)

Os transtornos relacionados ao glúten são ativados pela ingestão de grãos contendo glúten pelos indivíduos que apresentam predisposição genética e/ou imunológica a este alimento. O trigo, assim como o centeio e a cevada, contém 2 grandes grupos de moléculas que possuem potencial para causar sintomas gastrointestinais, a saber: carboidratos não digeríveis e proteínas (Figura 6).

Figura 6- Estrutura e componentes do núcleo do trigo.

O glúten corresponde a cerca de 80% da proteína do trigo. Uma grande parcela das proteínas “não glúten” agem como enzimas ou inibidoras de enzimas. Duas relativamente pequenas glicoproteínas, inibidoras da -amilase/tripsina e a lectina do germe do trigo, são potentes ativadoras de diferentes aspectos do sistema imunológico. Estas atividades têm sido implicadas na patogênese das síndromes de alergia ao trigo, doença celíaca e SII. Recentemente, além das síndromes acima mencionadas, têm sido relatados casos de reações aos grãos contendo glúten que não envolvem mecanismos alérgicos (alergia ao trigo – “asma do padeiro”) nem tampouco autoimunes (doença celíaca – DC)). Esta nova entidade clínica passou a ser denominada Sensibilidade ao Glúten não Celíaca (SGNC). Indivíduos que apresentam manifestações clínicas adversas ao ingerirem produtos contendo glúten e cujos sintomas desaparecem quando submetidos à dieta isenta de glúten podem ser portadores da SGNC ao invés da DC. Os indivíduos que sofrem da SGNC desenvolvem reações adversas quando ingerem alimentos contendo glúten, entretanto, estas manifestações clínicas não acarretam uma enteropatia autoimune, caracterizada por atrofia vilositária e hiperplasia críptica como ocorre na DC.

A SGNC foi primeiramente descrita por Ellis e Linaker, em 1978, em uma paciente que apresentava queixa de diarreia crônica e dor abdominal recorrente durante 2 anos, sem perda de peso. A investigação laboratorial não revelou anormalidades à biópsia do intestino delgado, porém, apesar de não ter sido caracterizada DC a paciente foi submetida a uma dieta isenta de glúten, a qual resultou em total desaparecimento dos sintomas digestivos após 4 dias de dieta (9). A reintrodução do glúten na dieta fez recrudescer os sintomas, porém, nova biópsia jejunal não revelou alterações compatíveis com DC. Submetida novamente a uma dieta isenta de glúten ocorreu desaparecimento dos sintomas digestivos.  Os autores consideraram, na ocasião, que os sintomas da paciente se deviam a uma Sensibilidade ao Glúten.  

Posteriormente, Cooper e cols., em 1980, na Suécia, descreveram a SGNC em um grupo de 8 mulheres adultas que sofriam de dor abdominal e diarreia crônica, as quais eram geralmente incapacitantes e frequentemente noturnas. Estas queixas apresentavam alívio significativo com utilização de dieta isenta de glúten e recrudesciam com a reintrodução do glúten na dieta. Múltiplas biópsias de jejuno foram realizadas e não revelaram alterações compatíveis com DC. Diante destes achados os autores concluíram que estas pacientes apresentavam um quadro diarreico Sensível ao Glúten, porém, sem quaisquer evidências de DC (10). 

A despeito destas descrições, esta entidade clínica permaneceu no esquecimento até 2010, quando Sapone e cols. (11) redescobriram esta enfermidade, cujos sintomas digestivos e extra-digestivos estavam relacionados com a ingestão de alimentos contendo glúten em indivíduos que não sofriam de DC ou alergia ao trigo. Nesta ocasião, os autores investigaram 24 pacientes adultos que apresentavam indistintamente os seguintes sintomas digestivos: diarreia crônica, dor abdominal, constipação, perda de peso, flatulência e esteatorreia. Além disso, apresentavam também os seguintes sintomas extra-digestivos: fraqueza anemia, dores articulares, câimbras, formigamento e/ou adormecimento das pernas, descoloração dentária, glossite e tireoidite autoimune. Um grupo controle foi constituído por 7 pacientes portadores de dispepsia. As manifestações clínicas e os resultados das investigações laboratoriais estão descritos nas Figuras 7 e 8.

Figura 7- Comparação das características clínicas entre os 3 diferentes grupos de pacientes estudados de acordo com o diagnóstico final estabelecido.

Figura 8- Comparação entre os achados histológicos das biópsias duodenais dos 3 grupos de pacientes estudados: a) controles (7); b) SGNC (11); DC (13)
  
A partir desta pesquisa, Sapone e cols. demonstraram que os 11 pacientes portadores da SGNC apresentavam mínimas alterações da mucosa jejunal (Marsh 0-1), enquanto que nos 13 pacientes celíacos ocorreu atrofia vilositária sub-total e hiplerplasia críptica, muito embora a sintomatologia clínica fosse absolutamente similar em ambos os grupos de pacientes.

Vale ressaltar que até o presente momento não se conhecem os possíveis mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese desta entidade e nem tampouco encontra-se disponível algum marcador bioquímico ou histopatológico que possibilite estabelecer um diagnóstico definitivo de certeza. Entretanto, considerando-se o elevado interesse despertado pela recentemente reconhecida SGNC, desde 2010 foram realizadas 3 Conferências de Consenso, a última delas foi realizada em dezembro de 2012, em Munique, sob a denominação de Encontro de Experts para avaliar e discutir os maiores avanços e as atuais tendências da SGNC, cujas principais conclusões estão descritas, a seguir: “A SGNC é uma entidade clínica na qual os sintomas são desencadeados pela ingestão do glúten, na ausência de anticorpos celíacos específicos e da clássica atrofia vilositária do intestino delgado observada na DC, com condição variável do HLA e possível positividade da primeira geração de anticorpos antigliadina IgG (AGA) (56,4%). Por outro lado, a prevalência de IgA AGA nos pacientes com SGNC tem se revelado muito baixa (7,7%). É importante salientar que os marcadores sorológicos mais confiáveis (anticorpo antitransglutaminase e antiendomisio) para DC têm sempre se revelado negativos nos pacientes com SGNC”. No entanto, deve-se fazer a ressalva que este painel de experts concordou que a nomenclatura SGNC deve ser provisória e que muito provavelmente haverá um refinamento da mesma em breve futuro (12).

Prevalência

A prevalência da SGNC na população geral ainda é desconhecida, principalmente em decorrência dos elevados “autodiagnósticos” e da consequente utilização de dieta isenta de glúten, de forma indiscriminada, sem comprovação diagnóstica a partir da necessária investigação clínica e laboratorial.

De qualquer maneira, a SGNC não parece ser uma enfermidade rara, pois um estudo realizado nos Estados Unidos, em 2009, por Digiacomo e cols. entrevistando aleatoriamente 7762 pessoas com idades a partir dos 6 anos revelou que 0,55% dos indivíduos haviam aderido à dieta isenta de glúten de forma espontânea. Vale ressaltar que esta investigação foi realizada em data anterior aos novos conhecimentos disponíveis sobre a SGNC (13).

Embora os fatores de risco para a SGNC ainda não estejam definitivamente identificados tudo indica que ela é mais comum em mulheres jovens ou de meia-idade.

Manifestações Clínicas

A SGNC caracteriza-se pela ocorrência de sintomas digestivos e extra digestivos relacionados à ingestão de alimentos contendo glúten, nas pessoas não afetadas por DC, nem tampouco por AT.

A apresentação “clássica” da SGNC caracteriza-se por sintomas que usualmente aparecem logo após a ingestão de glúten, desaparecem com a retirada do glúten da dieta e reaparecem nas próximas horas ou nos poucos dias subsequentes, após um teste de provocação com glúten. A manifestação clínica típica da SGNC é uma combinação de sintomas incluindo dor abdominal, flatulência, alterações do hábito intestinal (diarreia ou constipação), e manifestações sistêmicas tais como, confusão mental, cefaleia, cansaço, dores musculares e nas articulações, dermatite, depressão e anemia. Quando os pacientes são atendidos em uma clínica especializada, muitos deles espontaneamente relatam uma relação causal entre a ingestão de alimentos contendo glúten e o agravamento dos sintomas. Nas crianças, a SGNC manifesta-se tipicamente por meio de sintomas gastrointestinais, tais como, dor abdominal e diarreia crônica; manifestações extra intestinais parecem ser menos frequentes nas crianças, e quando elas surgem o sintoma mais comum tem sido cansaço (14).


Fisiopatologia

A ausência de autoanticorpos e de lesões intestinais não exclui a toxicidade intrínseca do glúten, cuja ingestão, mesmo em pacientes não-celíacos, tem sido associada a danos a outros tecidos e órgãos, além do intestino.

Estudos mais recentes sugerem que, além do glúten, os inibidores da amilase–tripsina do trigo e os carboidratos pouco fermentáveis (frutanos), de baixa absorção e de cadeia curta, podem contribuir para a ocorrência dos sintomas vivenciados pelos pacientes com SGNC.

Carroccio e cols. demonstraram que os HLA DQ2 e DQ8, que predispõem à DC, são encontrados em 53% dos pacientes com SGNC, uma prevalência bem mais baixa do que a descrita na DC, que é de 95%, porém um pouco mais elevada do que na população em geral, que é de 30% (15).

Sapone et cols., em 2011, comparando a SGNC com a DC, demonstraram que na primeira a mucosa do intestino delgado apresenta-se praticamente normal ou apenas levemente inflamada (Marsh 0-1), enquanto que na DC houve algum grau significativo de atrofia. A contagem dos Linfócitos Intra-Epiteliais (LIE) CD3+ foi mais alta na DC do que na SGNC, porém, por sua vez nesta foi mais elevada do que na população geral. No caso dos LIE gama-delta, estes foram mais numerosos na DC, enquanto que na SGNC não houve diferença em relação aos controles. Além disso, estes autores também demonstraram que há uma nítida diferença quanto ao comportamento da barreira de permeabilidade intestinal entre a DC e a SGNC. Na primeira ocorre um aumento da permeabilidade enquanto que na segunda este fenômeno não é observado. Segundo eles estes dois transtornos induzidos pelo glúten se constituem em entidades clínicas diversas. A SGNC estaria associada a uma ativação do mecanismo imunológico inato, enquanto que a DC estaria associada a ativação do mecanismo imunológico adaptativo (16). 

O gatilho dos eventos na mucosa do intestino delgado que leva à SGNC não é representado pela mesma matriz de peptídeos do glúten responsáveis pelo desenvolvimento da DC. Diferentemente da mucosa dos pacientes celíacos, a mucosa daqueles com SGNC, ao ser incubada com gliadina, não expressa os marcadores de inflamação e também não provoca ativação dos basófilos. Todavia, vários estudos sugerem um aumento nos LIE, sem aquela característica atrofia das vilosidades (Marsh 1) observada na DC, o que levaria a pensar em uma reação inflamatória leve, de provável ativação imunológica, já que também se tem visto uma relação positiva na SGNC com o AGA e o HLA DQ2/DQ8.

Em resumo, diante dos inúmeros aspectos fisiopatológicos ainda não elucidados na gênese deste transtorno digestivo provocado pelo glúten, poderia se especular que pelo fato da maioria dos pacientes com SGNC apresentarem HLA DQ2/DQ8 positivos (53% no estudo de Carrocio e cols.), a DC latente não estaria totalmente excluída nos pacientes com SGNC. 

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Síndrome do Intestino Irritável e Sensibilidade ao Glúten não Celíaca: uma complexa relação e possível sobreposição de duas entidades clínicas (Parte 1)

Síndrome do Intestino Irritável (SII) 

A SII constitui-se no transtorno funcional gastrointestinal mais frequente. A prevalência da SII varia de 10% a 25% no mundo ocidental afetando indistintamente crianças, adolescentes e adultos de ambos os sexos. Estima-se que a prevalência alcance entre 5 e 14% das crianças em idade escolar e de 12 a 45% entre os adolescentes e adultos, cifras estas identificadas em clínicas de referência terciária, aplicando-se os critérios de Roma III. Há também variações geográficas na prevalência da SII alcançando 7% na Ásia até 21% na América do Sul (1). 

Manifestações Clínicas e Diagnóstico

As manifestações clínicas e o diagnóstico da SII baseiam-se essencialmente nas definições estabelecidas pelos critérios de Roma III, os quais foram elaborados em 2006 por um grupo de experts na especialidade (2). 

A SII é um transtorno funcional cujas manifestações clínicas devem ser recorrentes, com a frequência de pelo menos uma vez por semana, durante pelo menos os últimos 2 meses anteriores ao diagnóstico, caracterizada pelos seguintes sintomas:

1- Desconforto e/ou dor abdominal associada a 2 ou mais dos seguintes sintomas, durante pelo menos 25% do tempo: 
- Alívio com a evacuação;
- Início associado com alteração na frequência das       evacuações;
- Início associado com alteração no formato das fezes.

2- Ausência de processo inflamatório, anatômico, metabólico ou neoplásico que possa justificar os sintomas.

Além disso, a SII pode estar associada a manifestações extra digestivas, tais como: fadiga cefaleia, depressão, dor musculoesquelética, formigamento e/ou adormecimento das mãos e dos pés.

É importante enfatizar que a SII pode também cursar com alguns sintomas subjacentes cuja presença pode auxiliar como suporte diagnóstico, na dependência do subtipo da sua apresentação, ou seja, Diarreia (D), Constipação (C) ou Mista (M), tais como:

1- Frequência aumentada das evacuações, podendo alcançar 4 ou mais evacuações por dia.
2- Frequência diminuída das evacuações de apenas 1 ou menos por semana.
3- Formato anormal das fezes, líquidas (D) ou endurecidas (C).
4- Evacuação anormal com esforço, urgência e sensação de evacuação incompleta (D).
5- Eliminação de muco.
6- Flatulência: sensação subjetiva de inchaço abdominal.
7- Distensão abdominal: aumento objetivo da circunferência abdominal.

É de fundamental importância, além dos critérios de Roma III, também levar em consideração os sintomas subjacentes acima relacionados, pois eles são de extrema valia para auxiliar na confirmação diagnóstica, visto que não se encontra disponível, até o presente momento, a existência de algum marcador específico, seja sorológico ou histopatológico, portanto, a SII trata-se de um transtorno cujo diagnóstico se estabelece por meio da análise detalhada dos sintomas referidos associado ao exame físico, que não deve revelar alterações dignas de nota.

Fisiopatologia

Os mecanismos fisiopatológicos envolvidos na SII ainda não estão totalmente esclarecidos, porém, admite-se a ocorrência da interação de múltiplos fatores biológicos, psicológicos e sociais na sua gênese, os quais são responsáveis pelas alterações da motilidade, em especial a indução do trânsito colônico acelerado (subtipo Diarreia) ou espástico (subtipo Constipação) e da sensibilidade do intestino (hipersensibilidade visceral).

Deve-se também levar em consideração que pesquisas realizadas nos últimos anos têm identificado outros fatores contribuintes para o surgimento da SII. Entre estes fatores devem ser incluídos os que se seguem, atuando de forma independente ou em associação, a saber: episódio prévio de gastroenterite, genética, irritantes intraluminais (má absorção de sais biliares), alterações na microbiota intestinal (sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado), transtornos na eliminação de gases, inflamação da mucosa colônica (alteração da barreira de permeabilidade), hipersensibilidade retal, bem como a ação não fisiológica de alguns mediadores químicos, tais como a serotonina. Admite-se que respostas imunológicas anormais desencadeadas por estímulos de alguns componentes da dieta possam estar presentes como geradores dos sintomas da SII. Além disso, considera-se também que a persistência de um baixo grau de inflamação possa favorecer o surgimento dos sintomas da SII (3).

Dentre os sintomas da SII destacam-se a flatulência e a distensão abdominal. Estudos realizados utilizando-se a tomografia computadorizada têm claramente demonstrado que a distensão abdominal é um fenômeno real e que pode alcançar até 12 cm em determinados pacientes. Por outro lado, aqueles pacientes que se queixam de flatulência, embora tenham a sensação de distensão abdominal, em apenas cerca de metade deles pode-se objetivamente demonstrar tal transtorno. Vale salientar que no grupo de pacientes que apresenta uma real distensão abdominal, constipação e hiposensibilidade visceral são os mais frequentemente observados, enquanto que o grupo que apresenta flatulência, sem distensão abdominal, predomina o subtipo diarreia e hipersensibilidade visceral. Tem sido demonstrado que a causa da flatulência e/ou da distensão abdominal se deve a retenção de gás e/ou a uma percepção aumentada de sobrecarga de gás exógeno, devido a uma combinação de deficiência no trânsito e aumento da sensibilidade visceral (4).   

Enfim, há um consenso geral para considerar a etiopatogenia da SII como um processo multifatorial em que estão envolvidos inúmeros aspectos da economia interna do indivíduo associados a fatores externos, na gênese dos sintomas, conforme encontra-se ilustrado na Figura 1 (5).  

 
Figura 1- Representação esquemática dos múltiplos fatores envolvidos na gênese da SII.

Dentre os aspectos psicossociais está bem estabelecida a existência de um eixo cérebro-trato digestivo, sendo este último metaforicamente denominado de “segundo cérebro”, pois trata-se do órgão de choque das tensões emocionais, responsável pela somatização visceral das situações de estresse, ansiedade e depressão. As comunicações bidirecionais envolvendo as regiões neuroanatômicas, entre o cérebro e o trato digestivo conforme ilustradas na Figura 2, são as responsáveis pelas diversas síndromes de dor abdominal (6).

Figura 2- Representação esquemática do eixo Cérebro-Trato digestivo.

Uma grande proporção de pacientes associa o surgimento dos sintomas abdominais a alguns alimentos da dieta, porém, torna-se difícil estabelecer uma relação direta entre um determinado alimento específico com os sintomas relatados. Esta dificuldade se deve à complexidade da composição dos alimentos e, também, aos supostos múltiplos mecanismos pelos quais os alimentos e/ou seus componentes afetam o trato digestivo na gênese dos sintomas. Dentre os inúmeros mecanismos potencialmente envolvendo os alimentos e consequentemente o surgimento dos sintomas digestivos, o primeiro deles é a fase cefálica. Na fase cefálica os efeitos sobre as secreções e a motilidade gastrointestinais são influenciados pelo visual, odor, imaginação e o sabor dos alimentos; tais efeitos ocorrem por meio de sinais neurológicos enviados desde o córtex cerebral e o centro do apetite localizado no cérebro ao trato digestivo. Os sintomas também podem ser induzidos pela estimulação química de receptores intestinais. Estes receptores localizam-se ao longo de todo o trato digestivo e podem ser ativados por moléculas bioativas dos alimentos ou por produtos da sua digestão, como por exemplo peptídeos, ou ainda por subprodutos do seu metabolismo, tais como os ácidos graxos de cadeia curta. A ativação destes receptores pode levar a liberação de múltiplos neurotransmissores e hormônios, incluindo a 5-hidroxitriptamina, colecistoquinina, peptídeo-1 similar ao glucagon, peptídeo YY, motilina, incretina e cefalina, sendo esta ativação um potencial mecanismo dos sintomas digestivos referidos pelos pacientes.    

Recentemente, um novo aspecto de significativa importância quanto a etiopatogenia da SII se agrega, aos outros já conhecidos, e diz respeito à intolerância a determinados carboidratos da dieta, os quais são lentamente digeridos ou não são digeridos no intestino delgado. Estes carboidratos podem ser agrupados de acordo com o comprimento da cadeia (grau de polimerização) em 3 diferentes categorias funcionais de importância relevante na SII, a saber: fibras, prebióticos e o complexo de carboidratos que recebeu a denominação de FODMAPs (fermentable oligo-, di-, monosaccharides and polyols). Estes últimos se constituem em um grupo de oligossacarídeos não digeríveis, e que, portanto, não são devidamente absorvidos no intestino delgado por falta de hidrolases específicas (7). Além disso, aí também devem ser incluídos alguns monossacarídeos, como por exemplo a frutose, pois este monossacarídeo para sofrer absorção ótima necessita estar presente no lúmen intestinal em uma concentração equimolar de glicose, condição que facilita sua absorção pelo mecanismo da draga do solvente. No entanto, no caso de haver excesso de frutose em relação a glicose pode ocorrer intolerância à mesma, quando esta fração excedente não é totalmente absorvida de forma passiva pelo transportador GLUT5. Caso uma proporção significativa destes FODMAPs não venha a ser absorvida no intestino delgado, por efeito osmótico aumenta a concentração intra-luminal de água no intestino delgado, cuja sobrecarga é levada ao intestino grosso. No cólon ocorre o processo de fermentação por ação das bactérias da microflora colônica o que leva à produção aumentada de gás e ácidos graxos de cadeia curta. Estes fatores provocam distensão abdominal a qual induz a sensação de dor, flatulência e alteração da motilidade, com consequente diarreia pelo excesso de água gerada no intestino delgado. Estes mecanismos estão exemplificados nas Figuras 3 e 4 (8).

Figura 3- Representação esquemática da ação dos FODMAPs sobre o trato digestivo.

Figura 4- Mecanismo fisiopatológico da má absorção da frutose e dos frutanos.

A associação entre os FODMAPs e os sintomas apresentados pelos pacientes portadores da SII tornou-se evidente a partir de várias observações bem documentadas. A administração oral de FODMAPs individualmente foi capaz de provocar sintomas similares à SII baseada no princípio da dose dependência, e, tais sintomas, ao que tudo indica, surgem devido a hipersensibilidade visceral, fenômeno similar ao que se observa nos pacientes portadores de intolerância à lactose. Os sintomas se agravam quando estes carboidratos são consumidos em combinação entre si, como por exemplo, frutanos com lactose, frutose com sorbitol, frutose com frutanos, indicando a existência de um efeito aditivo (Figuras 5-6).

Figura 6- Manifestações clínicas da má absorção dos carboidratos da dieta.

Figura 6- Representação esquemática da ação fisiopatológica dos diferentes carboidratos da dieta.