quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Vômitos Cíclicos: Diagnóstico e Tratamento (Parte 2)

Cristiane Boé e Ulysses Fagundes Neto

Tratamento

Abordagem geral visa:

      Evitar os desencadeantes em potencial
      Profilaxia farmacológica
      Terapia medicamentosa para abortar as crises
      Tratamento de suporte durante o episódio
      Esclarecimento para a família

Os dois pilares básicos para o tratamento da SVC são as medidas profiláticas e medicamentosas entre os ataques, além do suporte agudo durante as crises. Durante a fase de bem-estar, mudanças no estilo de vida podem reduzir a frequência dos episódios, porém, no caso dos episódios serem frequentes e suficientemente intensos que obriguem a hospitalização devido ao fracasso da resposta à terapia abortiva, a profilaxia medicamentosa é recomendada.

Figura 3- Medidas de estilo de vida propostas para melhor qualidade de vida

Antes do início da terapia farmacológica, deve-se considerar a idade do paciente, comorbidades físicas e psicológicas associadas, forma de administração e possíveis efeitos colaterais. As recomendações de terapia farmacológica são baseadas em opinião de experts, que abaixo estão descritas:

Ciproheptadina: antagonista de receptor da serotonina e anti-histamínico, apresenta resposta moderada em crianças pequenas, é a primeira escolha para menores de 5 anos. Apresentou boa resposta em um estudo de caso com 6 pacientes e ensaio com 16 pacientes, placebo-controlado, à dose: 0,25-0,5mg/kg/dia. Foram observados os seguintes efeitos colaterais: aumento do apetite, ganho de peso, sedação.

Amitriptilina: trata-se de um antidepressivo tricíclico, com moderada a alta resposta, é a primeira escolha em crianças maiores que 5 anos, à dose de 1mg/kg/dia, por pelo menos 4 semanas. Deve-se realizar a monitoração do intervalo QT antes e após aumento da dose. Os efeitos colaterais descritos são: constipação, sedação, arritmia, alteração de comportamento.

Propranolol: trata-se de um β-bloqueador, com eficácia moderada, é recomendado como segunda escolha em crianças de todas as idades. Deve-se realizar a monitoração da frequência cardíaca por potencial bradicardia e a suspensão da medicação deve ser feita em 1 a 2 semanas.

Fenobarbital: é uma droga anticonvulsivante, que em virtude de causar prejuízo cognitivo, não é recomendada como primeira linha de tratamento. A dose recomendada é  2mg/kg/dia, e os possíveis efeitos colaterais são: sedação e prejuízo cognitivo.

O tratamento deve durar pelo menos 2 meses ou 2 ciclos de vômitos.

Complementação Terapêutica

A Coenzima Q10 mostrou-se eficaz no controle das crises, sem efeitos colaterais (co-fator mitocondrial), assim como a carnitina. Contraceptivos orais à base de estrogênio têm sido utilizados em meninas no período menstrual. Outras medidas coadjuvantes incluem a Acupuntura e a Psicoterapia.

Tratamento: propostas práticas

A terapia para controle das crises deve levar em consideração a fase da crise: na fase emética, o objetivo é encerrar os episódios de vômitos o mais rapidamente possível, deve-se obter o controle dos distúrbios hidro-eletrolíticos, e para tal é recomendada a infusão de solução fisiológica associada a solução glicosada 10%, visando reduzir os efeitos catabólicos. Durante esta fase, a sobrecarga proteica pode prolongar a crise. Recomenda-se 1,5 g/kg/dia de proteína na dieta do paciente. A terapia medicamentosa inclui antieméticos e medicamentos anti-enxaqueca, tais como, agonistas 5HT, triptanos (não são aprovados para crianças menores que 18 anos, porém há descrição de seu uso nos maiores de 12 anos). Eles podem encerrar a crise, especialmente quando usados na forma intra-nasal (sumatriptano, zolmatriptano). Outros medicamentos também podem ser eficazes, tais como, antagonistas do receptor 5HT3, ondansentrona, bastante seguro para uso em crianças, pois é bem tolerado e eficaz.

Conclusões

Deve-se fazer um esclarecimento detalhado para o paciente e seus familiares quanto ao diagnóstico e a identificação de fatores desencadeantes dos vômitos. Caso não forem encontrados sinais de alerta e forem preenchidos os critérios diagnósticos, não submeter o paciente a procedimentos desnecessários. Finalmente, deve-se fazer uso de terapia medicamentosa profilática naqueles pacientes que apresentam quadro mais intenso e de difícil controle.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Vômitos Cíclicos: Diagnóstico e Tratamento (Parte 1)

Cristiane Boé e Ulysses Fagundes Neto

Introdução

A Síndrome dos Vômitos Cíclicos (SVC) foi primeiramente descrita por Samuel Gee, em 1882, entretanto, até o presente momento, não há uma certeza absoluta a respeito da sua etiologia e fisiopatologia. A SVC trata-se de um distúrbio funcional caracterizada por episódios recorrentes de náuseas e vômitos com duração de horas ou dias, seguidos de intervalos livres de sintomas.

Desde um ponto de vista de gênero acomete mais meninas que meninos (60:40), usualmente em idade escolar, porém pode haver uma grande gama de faixa etária, variando de lactentes a adultos jovens, mais frequentemente em indivíduos da raça branca.

Ainda que seja uma síndrome cujos sintomas são episódicos, resulta em 24 dias de falta à escola, com um custo anual de até US$17.035,00. Abu-Arafeh et al caracterizaram a SVC em 1,9% dos escolares em Aberdeen, no norte da Escócia.

A patogênese e a etiologia da SVC permanecem desconhecidas, porém, há forte associação entre esta síndrome e enxaqueca, sugerindo que a fisiopatologia pode ser a mesma, pois apresentam similaridades de sintomas, evolução e resposta positiva ao uso de medicamentos anti-enxaqueca. Cerca de 2/3 dos pacientes que são capazes de fornecer informações fidedignas, referem uma associação com a Síndrome do Intestino Irritável, posto que 11% deles apresentam história de enxaqueca. Alterações emocionais ocorrem em 40% dos pacientes e 50% destes têm história familiar positiva para Síndrome do Intestino Irritável ou enxaqueca.

Um conceito recente sobre a fisiopatologia da SVC sugere que a depleção da energia mitocondrial devido a uma mutação, associada à precipitação por estresse ou excitação, podem ser os fatores deflagradores para o aparecimento dos episódios de vômitos em pacientes com SVC.

Características clínicas

Aproximadamente entre 40 a 80% dos pacientes apresentam fatores desencadeantes que estão relacionados aos episódios de vômitos, a saber:

1.  Estresse psicológico
2.  Infecções
3.  Cansaço físico
4.  Alimentos específicos (queijo, chocolate.)
5.  Menstruação
6.  Clima quente
7.  Comer em excesso/jejum

Sintomas prodrômicos soem ocorrer em 1/3 dos episódios, os quais geralmente se iniciam na madrugada ou nas primeiras horas do dia, podem ter a duração de até 2 horas e mesmo se estender por até 10 dias, e se repetem de 4 a 12 vezes por ano. Em geral a média é de 4 vômitos/hora.

Os principais sintomas associados são: dor periumbilical, cefaleia, salivação e fotofobia. Os episódios tendem a ser os mesmos para cada indivíduo, e os pais são capazes de identificar eventos desencadeadores em 76% dos casos, sendo psicológicos e infecciosos em 47% e 31%, respectivamente. Vale enfatizar que emoções positivas são mais frequentemente identificáveis que o estresse negativo.

Diagnóstico

Há grande dificuldade diagnóstica porque não há uma etiologia definida, e, nem tampouco existem marcadores laboratoriais específicos para o diagnóstico de certeza. Por estas razões foram criados critérios para o auxílio diagnóstico, e atualmente existem 2 entidades que desenvolveram tais critérios, a saber: a) ROMA IV (2016); b) NASPGHAN (2008)

Critérios Diagnósticos     
                  
a) ROMA IV

2 ou mais episódios de intensa náusea e vômitos com duração de horas ou dias; retorno para o estado de saúde habitual com duração de semanas a meses.
* Os dois critérios devem estar presentes
** Mudança de 3 episódios (ROMA II) para 2 visando facilitar o reconhecimento da CVS e diminuição do sofrimento do paciente

b) NASPGHAN

Devem ocorrer pelo menos 5 crises em qualquer intervalo, ou um mínimo de 3 episódios em um período de 6 meses. Episódios de náusea e vômitos intensos durando de 1 hora a 10 dias, separados por pelo menos 1 semana. Deve haver um padrão estereotipado em cada paciente, os vômitos durante os ataques ocorrem no mínimo 4 vezes/hora, por pelo menos 1 hora. Há o retorno ao estado clínico normal entre os episódios e não deve haver atribuição à qualquer outra enfermidade.
* Todos os critérios devem estar presentes

Diagnóstico Diferencial

O desafio que se apresenta é diferenciar os pacientes que apresentam causas bem determinadas para os vômitos (10%), daqueles com causa idiopática (90%). O emprego destes critérios ajuda a diferenciá-los, o que irá evitar submeter os pacientes a procedimentos desnecessários.

Os critérios propostos pela NASPGHAN sugerem alguns sintomas suspeitos que devem ser investigados, tais como:

1-         Vômitos biliosos, dor abdominal intensa, com sinais de peritonite:

Observar possíveis sinais de obstrução intestinal que podem estar presentes na má rotação intestinal e aderências; hepatite, pancreatite, obstrução da junção uretero-pélvica. Deve-se realizar investigação apropriada e específica solicitando os seguintes exames: raio X do abdome, amilase e lipase séricas, hepatograma, ultrassonografia e/ou tomografia do abdome.

Caso ocorra hematêmese não há recomendação imperiosa para realização de endoscopia digestiva alta, a não ser que o paciente apresente sintomas entre os episódios que indiquem patologia específica ou sangramento em grande quantidade.

Ao se suspeitar de porfiria deve-se considerar a gravidade, a intensidade dos vômitos e a dor abdominal recorrente, associadas a ansiedade, depressão, alucinação, convulsão e paresia das extremidades.

2- Ataques precipitados por outra doença, jejum ou refeição com alto teor de proteína:

Deve-se levar em consideração a possibilidade de eventuais transtornos metabólicos (ácidos graxos, ciclo da ureia, aminoácidos, ciclo mitocondrial de energia) seguidos de estado catabólico induzido por jejum, infecção ou refeição com alto teor de proteína. Geralmente as afecções metabólicas aparecem logo após o nascimento, os defeitos no ciclo da ureia são diagnosticados com dosagem de amônia plasmática acima de 150µm/L, as deficiências enzimáticas parciais podem ser silenciosas até que ocorram fatores precipitantes que podem ser detectados nas análises sanguíneas e urinárias.

3. Anormalidades no exame neurológico:

Caso existam sinais localizatórios no exame neurológico, tais como, alteração recente da personalidade e/ou sinais de hipertensão intracraniana deve-se realizar exame de neuroimagem. Nestes casos a maior dificuldade está em diferenciar alteração do estado mental, pois os pacientes com SVC apresentam alteração da consciência durante os episódios de vômitos (letargia, desorientação). Na SVC, a criança está orientada, é capaz de responder a comandos, mas prefere não responder por causa da náusea.  
    
Figura 1- Gráfico esquemático dos critérios diagnósticos para SVC e o guia de conduta a ser seguido



Figura 2- Diagnósticos Diferenciais a serem considerados

Algumas situações tornam difícil a diferenciação de um episódio de SVC com gastroenterite viral, entretanto, deve-se levar em consideração que há necessidade de se empregar uma taxa de reidratação intravenosa 75 vezes maior na SVC do que na gastroenterite por rotavírus.

A dor abdominal pode ser muito intensa a ponto de se considerar a indicação de laparotomia por suspeita da existência de abdome agudo. Dentro do sistema digestório, a má-rotação intestinal com volvo intermitente é a complicação mais grave e comum, que pode resultar em grande ressecção de intestino delgado.

Letargia, dificuldade para falar, andar, ou interagir, pode simular semi-coma e preocupa quanto à presença de choque, meningite ou intoxicações.

Vale enfatizar que devido ao elevado grau de dificuldade em se estabelecer o diagnóstico da SVC o tempo para se comprovar de forma definitiva a ocorrência desta síndrome tarda em média 2,7 anos.