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quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A história da realização de um Pós-Doutorado na Cornell University, Nova Iorque (10)

Projeto de Pesquisa Experimental: “Absorção de Macromoléculas Intactas Pelo Jejuno De Ratos in vivo: Influência Dos Sais Biliares Taurocolato, Colato e Deoxicolato”
Introdução

A- Absorção de Macromoléculas pelo Intestino e sua Relação com Alergia Alimentar
A despeito da noção geral de que o intestino se constitui em uma barreira impermeável à penetração dos antígenos intra-luminais, evidências clínicas e experimentais demonstram que esta barreira da mucosa intestinal pode ser eventualmente ultrapassada mesmo em determinadas circunstâncias não patológicas. Desta forma, a absorção de macromoléculas pode ocorrer, ainda que seja em quantidades ínfimas para que tenha algum valor nutricional, mas que seja em quantidades de tal monta que possam ser suficientes para desenvolver estímulo antigênico.

A absorção aumentada de macromoléculas intactas pelo intestino pode acarretar uma série de conseqüências indesejáveis para o hospedeiro. Por exemplo, está plenamente reconhecida que a absorção de macromoléculas pode desempenhar papel de fundamental importância em algumas situações patológicas nas quais se incluem as reações alérgicas aos alimentos, diarréia crônica, processos toxigênicos, enfermidades inflamatórias intestinais, doença celíaca, enfermidades auto-imunes, etc.

Para impedir a penetração antigênica para a corrente sanguínea através da barreira mucosa intestinal, a natureza criou um sofisticado sistema de defesa, imunológico e não imunológico (físico e químico), que atua desde o estômago avançando para o lúmen intestinal e até mesmo recobrindo a superfície mucosa (glicocálix), provendo, assim, o trato digestivo como a primeira linha de defesa contra este tipo de invasão (Figuras 1 – 2 – 3 – 4 – 5 & 6) (Tabela 1).

Figura 1- Desenho esquemático da distribuição da microflora bacteriana ao longo do trato digestivo em condições fisiológicas.

Figura 2- Desenho esquemático da distribuição do muco na superfície do enterócito.

Figura 3- Ultramicrofotografia de uma célula caliciforme repleta de muco em seu interior.

Figura 4- Desenho esquemático da barreira de permeabilidade interposta pelo poro intercelular, pela junção firme e pelos desmosomas.

Figura 5- Ultramicrofotografia de dois enterócitos adjacentes evidenciando a região das microvilosidades no polo apical das células e o espaço intercelular mostrando em seu terço médio um desmosoma (mancha enegrecida).

Figura 6- Desenho esquemático dos diversos componentes da barreira de permeabilidade em condições normais e da deficiência de um ou mais destes componentes.


Tabela 1- Componentes da Barreira de Permeabilidade Intestinal.
Entretanto, apesar da existência desta eficiente barreira de permeabilidade, nem sempre, porém, o organismo consegue depurar completamente os antígenos ingeridos com a dieta. Nestas últimas décadas inúmeros estudos experimentais combinados, morfológicos e funcionais, revelaram que o enterócito possui a capacidade de absorver macromoléculas intactas que por quaisquer motivos conseguiram alcançar a porção mais apical na região das microvilosidades. Por meio de um sistema de vesículas, inicialmente ocorre uma interação entre as macromoléculas e os componentes da membrana das microvilosidades (Figura 7), processo denominado “adsorção”.

FIgura 7- Desenho esquemático do processo de endocitose e o estímulo de produção de lisosomas pelo complexo de Golgi com a respectiva formação do corpo mulivescular.

Quando uma concentração suficientemente significativa de macromoléculas entra em contato com a membrana celular ocorre uma invaginação da mesma (endocitose) e, desta forma, pequenas vesículas endocitóticas são formadas na base apical das microvilosidades, as quais, posteriormente, dirigem-se para o polo basal do enterócito. Uma fração destas vesículas endocitóticas funde-se com os lisosomas produzidos pelo complexo de Golgi dando lugar a formação dos corpos multivesiculares, os quais já não mais possuem efeito antigênico (Figura 8).

Figura 8- Ultramicrofotografia de um corpo multivesicular que foi fagocitado e destruido pelo lisosoma no interior do enterócito.

Este complexo é eliminado no espaço intercelular através do pólo baso-lateral do enterócito por meio de um processo denominado exocitose (Figura 9), o qual já está suficientemente degradado, portanto, sem capacidade de desenvolver qualquer estímulo antigênico, e representa a primeira linha de defesa celular.

Figura 9- Desenho esquemático do processo de destruição da macromolécula pelo lisosoma e sua eliminação do enterócito por meio da exocitose, agora já sem possibilidade de desenvolver estímulo antigênico.

Caso, porém, parte do material que sofreu o processo de endocitose não venha a ser totalmente degradado pelos lisosomas e seja liberado intacto pelo enterócito, este material será degradado por macrófagos que estão presentes na lâmina própria da mucosa do intestino delgado, os quais representam a segunda linha de defesa celular. Por outro lado, entretanto, caso ocorra uma penetração significativa de macromoléculas intactas, potencialmente antigênicas, que venham a superar todos os mecanismos de defesa do trato digestivo e haja uma predisposição alérgica geneticamente determinada por parte do hospedeiro, poderão surgir as clássicas manifestações clínicas de Alergia Alimentar.

Objetivos

Está bem estabelecido que em condições fisiológicas os sais biliares primários estão presentes no fluido do intestino delgado como compostos químicos conjugados com glicina ou taurina, e que a produção dos sais biliares secundários se dá pela ação das bactérias da microflora intestinal, as quais se encontram em concentrações elevadas a partir das porções distais do intestino delgado, em particular no íleo terminal. Por outro lado, em situações patológicas em que ocorre sobrecrescimento bacteriano da microflora colônica nas porções altas do intestino delgado, haverá não somente desconjugação dos sais biliares primários, como também produção de sais biliares secundários pela 7α desidroxilação dos sais biliares primários. Tem sido demonstrado que a presença de sais biliares desconjugados e/ou secundários na luz do jejuno resulta em efeitos altamente deletérios sobre a função digestivo-absortiva provocando secreção de água e sódio, má absorção de glicose e alterações morfológicas na mucosa jejunal (Figura 10). Levando-se em consideração estas anormalidades acima descritas, este projeto de pesquisa experimental foi desenvolvido para verificar os potenciais efeitos, sobre a barreira de permeabilidade intestinal, dos seguintes sais biliares: taurocolato (primário e conjugado), cólico (primário e desconjugado) e deoxicólico (secundário e desconjugado).

Figura 10- Ação deletéria dos sais biliares desconjugados sobre a mucosa do intestino delgado.


No nosso próximo encontro darei continuidade a este excitante projeto de pesquisa descrevendo toda a sofisticada metodologia do mesmo.

sexta-feira, 20 de março de 2009

A experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (3)

Os acontecimentos políticos que afetaram a vida do país e da população, inclusive a minha pessoal e profissional

O ano de 1973 reservou grandes transformações e surpresas que modificaram de forma dramática o modelo político da Argentina, o que afetou diretamente a vida da população inclusive a minha profissional e pessoal. Naquele ano o país teve três Presidentes da República, inicialmente saiu de uma ditadura militar, em seguida elegeu um novo Presidente da ala moderada da esquerda peronista e finalmente teve de volta o velho caudilho, Juan Domingo Perón, já completamente decadente física e mentalmente.
Quando cheguei, em janeiro, governava o país o general Lanusse que havia se comprometido a entregar a nação de volta à normalidade democrática, e para tal, foi marcada a data da eleição para a presidência da república, a qual foi vencida por Hector Campora, um tradicional e fiel peronista da ala moderada da esquerda, mas que imediatamente se tornou refém dos radicais de esquerda, em especial do grupo denominado os Montoneros. Assim que Campora assumiu o governo, no meio do ano, os Montoneros desencadearam uma série de invasões em propriedades públicas destituindo diretorias em nome do povo e de uma pretensa revolução de libertação do jugo militar. Isto também ocorreu no Posadas, e toda a direção foi sumariamente demitida em uma assembléia geral convocada de última hora, na qual todos os funcionários do hospital tinham direito a voz e voto. Esta convocação incluía desde os trabalhadores de apoio até os profissionais da saúde, inclusive eu, que aparentemente não tinha nada que ver com os acontecimentos, ainda por cima sendo estrangeiro e temporário no país. Foi uma reunião extremamente tensa e interminável, assustadora mesmo, porque em determinado momento parecia que iria descambar para uma pancadaria generalizada, tão intensamente alterados estavam os ânimos entre os participantes que se digladiavam verbalmente, com violência e insultos recíprocos. Finalmente, o Diretor Superintendente foi destituído por meio de uma votação, praticamente simbólica, totalmente manipulada pelos Montoneros, os quais dirigiam a sessão. Quando a reunião terminou conversei com Dr. Toccalino que externou todo seu desânimo quanto ao destino futuro, pelo menos em breve prazo, do hospital; a sensação por ele transmitida era de que uma catástrofe havia se abatido sobre a instituição, e, tudo que pudesse existir de pior, corria-se o risco de vir a ocorrer daí em diante. Isto me afetou profundamente, fiquei tremendamente preocupado com a minha vida e a da minha família, afinal de contas eu tinha uma enorme responsabilidade com o bem estar dos meus entes queridos e também um compromisso moral de realizar a especialização. Estava no meio do caminho, havia aprendido muita coisa, porém havia muito mais conhecimento a ser incorporado, ainda mais em um momento crescente da minha formação. A angustia que em mim se abateu foi intensa, não tinha a menor idéia de como nem quando essa desordem iria terminar. De fato, durante as duas semanas seguintes pouco se fez em matéria de trabalho, éramos sistematicamente convocados para assembléias gerais para discutirmos os destinos do hospital, reuniões tensas, intermináveis e sem quaisquer soluções práticas. Felizmente, dia após dia as coisas foram se acalmando, os Montoneros se retiraram do hospital, e a vida foi paulatinamente voltando à rotina anterior, e assim registrei em meu diário:

“Parece mentira, mas já se passaram 5 meses da minha especialização e fazendo um balanço das coisas penso que o saldo tem sido bastante positivo apesar de todas as intercorrências políticas que praticamente paralisaram o serviço durante uns quinze dias, somando-se ainda a greve dos Residentes que, por falta de pagamento dos seus salários, paralisaram suas atividades durante dez dias. Eu, em solidariedade, os acompanhei e deixei de cumprir com as minhas atividades assistenciais rotineiras. Agora, felizmente, tudo já voltou ao normal.

Do ponto de vista das minhas atividades assistenciais tenho aproveitado bastante, visto uma série grande de doenças com as quais ainda não havia tido experiência prévia, tais como hepatite tóxica, hepatite crônica, pólipo juvenil, cavernomatose da veia porta com hipertensão portal (Figura 1),


Figura 1- Da esquerda para a direita Dr. Mairon Lima, médico brasileiro, radicado em Brasília, que chegou no segundo semestre para realizar a especialização, Dra. Sonia Malowiski, residente de terceiro ano do Posadas, Dr. Ricardo Licastro, médico senior e Chefe da Hepatologia, e a paciente AC, natural de Tucuman, portadora de cavernomatose da porta. Foi minha paciente durante o tempo em que esteve internada, fui seu padrinho de crisma juntamente com Sonia. Apresentava hematêmese devido a presença de varizes esofágicas, e, na época, foi submetida a uma cirurgia bastante delicada, uma derivação porto-esplênica; sobreviveu, voltou para Tucuman, e em 1998, quando lá estive, ela veio me visitar no hotel, já tinha mais de trinta anos, totalmente assintomática, e trazia consigo sua filhinha, foi um momento de enorme emoção, nunca mais eu tinha tido conhecimento da sua evolução. Mairon voltou a Brasília e lá montou o serviço de Gastropediatria no hospital de Base, nos tornamos amigos íntimos, amizade que perdura até os dias atuais. Sonia se casou com "Chango" Córdoba e foi com êle viver em La Pampa. Licastro depois de alguns anos abandonou a Medicina para se dedicar a outra atividade profissional.
cirrose, alergia ao leite de vaca e à soja, intolerância aos carboidratos, várias formas de apresentação da doença celíaca, inclusive com constipação, glicogenose, divertículo de Meckel, doença inflamatória intestinal, linfangiectasia intestinal, úlcera duodenal, estenose hipertrófica do piloro, afora aquelas comumente vistas no nosso meio, tais como, diarréia aguda e diarréia prolongada. Inclusive no que diz respeito à doença celíaca vale a pena frisar a espetacular recuperação clínica e nutricional que os pacientes apresentam quando são colocados em dieta isenta de glúten, ou seja, com restrição de trigo, aveia e centeio (Figuras 2-3-4 & 5).
Figura 2- Paciente portadora de doença celíaca por ocasião do diagnóstico com grau intenso de desnutrição.


Figura 3- A mesma paciente vista de perfil.

Figura 4- A mesma paciente depois de algumas semanas em dieta isenta de gluten. Notar a espetacular recuperação clínica e nutricional; a distensão abdominal costuma perdurar por certo tempo em virtude da hipotonia da musculatura abdominal durante o período de desnutrição.

Figura 5- A mesma paciente em visão frontal.

No tocante à parte de procedimentos tenho realizado um bom número de biópsias de intestino delgado, em média 2 a 3 por semana ( por sinal a primeira que realizei foi no final de março), e realmente a coisa não é segredo algum. Tenho também realizado retosigmóidoscopias com biópsia retal uma vez por semana, e já fiz uma biópsia hepática.

Uma vez por semana faço ambulatório com Dr. Toccalino, e isto tem sido de grande utilidade prática, pois além de atender pacientes de consultório também acompanhamos a evolução dos pacientes que estiveram internados. Uma grande experiência, sem dúvida alguma!”

Como se pode depreender do relato acima nesta altura dos acontecimentos os conhecimentos básicos já haviam sido incorporados, mas tudo o que viria depois suplantou totalmente às mais exigentes expectativas, e, pelo menos para mim não fazia parte dos planos iniciais, mesmo porque sequer havia sido imaginado. Refiro-me especificamente à investigação clínica. Entrava, então, naqueles dias, orientado por Dr. Toccalino, na área mais apaixonante da Medicina, a Pesquisa! Este era um novo mundo que se descortinava, quase um sonho, e me absorvia integralmente, mas não conflitava com as atividades clínicas, bem ao contrário, era uma complementação. Em virtude da grande empatia e amizade que foi sendo construída entre nós dois e como o estudo da Bacteriologia do Intestino estava sendo a grande curiosidade da pesquisa clínica e experimental, com muitos artigos sendo publicados na literatura internacional, Dr. Toccalino me propôs o desafio de realizar um projeto de investigação em pacientes portadores de diarréia aguda e crônica. Iríamos estudar a microflora bacteriana do intestino delgado destas crianças com a hipótese de que iríamos encontrar um sobrecrescimento bacteriano da flora fecal anormalmente elevado na secreção jejunal e com isto demonstrar que este achado seria pelo menos mais um fator responsável pela perpetuação da diarréia. Para se conseguir obter amostras da secreção jejunal era necessário fazer com que os pacientes se submetessem a introdução de uma sonda de polietileno radiopaca por via nasal, até que sua extremidade distal alcançasse as primeiras porções do jejuno. A evolução da sonda era acompanhada por radioscopia e quando a mesma atingisse o local desejado era feita aspiração da secreção com uma seringa, todo o procedimento realizado em condições estéreis. Após a obtenção da secreção jejunal, esta era semeada em placas de Agar para cultura e identificação das colônias bacterianas (Figura 6-7-8 & 9).

Figura 6- Foto das sondas de polietileno de tripla via usadas para obter sescreção jejunal. Ao fundo Guimaray e mais atrás o bosque na parte posterior do hospital.

Figura 7- Fotografia de uma chapa de raio X mostrando a localização do trajeto da sonda ao longo do tubo digestivo.

Figura 8- Realização do procedimento de coleta da secreção jejunal.


Figura 9- Dra. Norma (Bacteriologista) semeando na placa de agar o líquido jejunal.
A partir desta proposta que imediatamente aceitei, passei a fazer um vastíssimo levantamento da literatura a respeito do tema e que possibilitou publicar meu primeiro trabalho na literatura médica, um artigo de revisão publicado em 1973 na revista Acta Gastroenterologica Latino Americana, em espanhol. Os dois outros trabalhos realizados foram escritos e publicados em inglês na literatura médica internacional, em 1976, a saber, Archives of Gastroenterology e Acta Paediatrica Scandinavica. Além disso, anteriormente foram também apresentados oralmente como temas livres no Congresso Mundial de Pediatria, que se realizou em Buenos Aires, em 1974. Estes trabalhos nos colocavam no topo da produção científica a respeito da bacteriologia do intestino, estávamos naquele dado momento nos limites da fronteira do conhecimento. Esta experiência teve uma valia incalculável, porque quando voltei ao Brasil me associei ao grupo do Prof. Luis Rachid Trabulsi, na Escola Paulista de Medicina, um dos maiores pesquisadores de enterobactérias em nível internacional, e inúmeros trabalhos de pesquisa passamos a realizar em conjunto nos anos vindouros. Desde então a pesquisa passou a ser uma das minhas mais importantes prioridades no plano profissional como docente, pois produzir novos conhecimentos é um dos pilares básicos da vida universitária.

No nosso próximo encontro darei continuidade aos aspectos políticos, sociais e científicos da minha experiência argentina.