sexta-feira, 20 de março de 2009

A experiência de vida pessoal e profissional de um jovem médico no exterior: a especialização em Gastroenterologia Pediátrica em Buenos Aires (3)

Os acontecimentos políticos que afetaram a vida do país e da população, inclusive a minha pessoal e profissional

O ano de 1973 reservou grandes transformações e surpresas que modificaram de forma dramática o modelo político da Argentina, o que afetou diretamente a vida da população inclusive a minha profissional e pessoal. Naquele ano o país teve três Presidentes da República, inicialmente saiu de uma ditadura militar, em seguida elegeu um novo Presidente da ala moderada da esquerda peronista e finalmente teve de volta o velho caudilho, Juan Domingo Perón, já completamente decadente física e mentalmente.
Quando cheguei, em janeiro, governava o país o general Lanusse que havia se comprometido a entregar a nação de volta à normalidade democrática, e para tal, foi marcada a data da eleição para a presidência da república, a qual foi vencida por Hector Campora, um tradicional e fiel peronista da ala moderada da esquerda, mas que imediatamente se tornou refém dos radicais de esquerda, em especial do grupo denominado os Montoneros. Assim que Campora assumiu o governo, no meio do ano, os Montoneros desencadearam uma série de invasões em propriedades públicas destituindo diretorias em nome do povo e de uma pretensa revolução de libertação do jugo militar. Isto também ocorreu no Posadas, e toda a direção foi sumariamente demitida em uma assembléia geral convocada de última hora, na qual todos os funcionários do hospital tinham direito a voz e voto. Esta convocação incluía desde os trabalhadores de apoio até os profissionais da saúde, inclusive eu, que aparentemente não tinha nada que ver com os acontecimentos, ainda por cima sendo estrangeiro e temporário no país. Foi uma reunião extremamente tensa e interminável, assustadora mesmo, porque em determinado momento parecia que iria descambar para uma pancadaria generalizada, tão intensamente alterados estavam os ânimos entre os participantes que se digladiavam verbalmente, com violência e insultos recíprocos. Finalmente, o Diretor Superintendente foi destituído por meio de uma votação, praticamente simbólica, totalmente manipulada pelos Montoneros, os quais dirigiam a sessão. Quando a reunião terminou conversei com Dr. Toccalino que externou todo seu desânimo quanto ao destino futuro, pelo menos em breve prazo, do hospital; a sensação por ele transmitida era de que uma catástrofe havia se abatido sobre a instituição, e, tudo que pudesse existir de pior, corria-se o risco de vir a ocorrer daí em diante. Isto me afetou profundamente, fiquei tremendamente preocupado com a minha vida e a da minha família, afinal de contas eu tinha uma enorme responsabilidade com o bem estar dos meus entes queridos e também um compromisso moral de realizar a especialização. Estava no meio do caminho, havia aprendido muita coisa, porém havia muito mais conhecimento a ser incorporado, ainda mais em um momento crescente da minha formação. A angustia que em mim se abateu foi intensa, não tinha a menor idéia de como nem quando essa desordem iria terminar. De fato, durante as duas semanas seguintes pouco se fez em matéria de trabalho, éramos sistematicamente convocados para assembléias gerais para discutirmos os destinos do hospital, reuniões tensas, intermináveis e sem quaisquer soluções práticas. Felizmente, dia após dia as coisas foram se acalmando, os Montoneros se retiraram do hospital, e a vida foi paulatinamente voltando à rotina anterior, e assim registrei em meu diário:

“Parece mentira, mas já se passaram 5 meses da minha especialização e fazendo um balanço das coisas penso que o saldo tem sido bastante positivo apesar de todas as intercorrências políticas que praticamente paralisaram o serviço durante uns quinze dias, somando-se ainda a greve dos Residentes que, por falta de pagamento dos seus salários, paralisaram suas atividades durante dez dias. Eu, em solidariedade, os acompanhei e deixei de cumprir com as minhas atividades assistenciais rotineiras. Agora, felizmente, tudo já voltou ao normal.

Do ponto de vista das minhas atividades assistenciais tenho aproveitado bastante, visto uma série grande de doenças com as quais ainda não havia tido experiência prévia, tais como hepatite tóxica, hepatite crônica, pólipo juvenil, cavernomatose da veia porta com hipertensão portal (Figura 1),


Figura 1- Da esquerda para a direita Dr. Mairon Lima, médico brasileiro, radicado em Brasília, que chegou no segundo semestre para realizar a especialização, Dra. Sonia Malowiski, residente de terceiro ano do Posadas, Dr. Ricardo Licastro, médico senior e Chefe da Hepatologia, e a paciente AC, natural de Tucuman, portadora de cavernomatose da porta. Foi minha paciente durante o tempo em que esteve internada, fui seu padrinho de crisma juntamente com Sonia. Apresentava hematêmese devido a presença de varizes esofágicas, e, na época, foi submetida a uma cirurgia bastante delicada, uma derivação porto-esplênica; sobreviveu, voltou para Tucuman, e em 1998, quando lá estive, ela veio me visitar no hotel, já tinha mais de trinta anos, totalmente assintomática, e trazia consigo sua filhinha, foi um momento de enorme emoção, nunca mais eu tinha tido conhecimento da sua evolução. Mairon voltou a Brasília e lá montou o serviço de Gastropediatria no hospital de Base, nos tornamos amigos íntimos, amizade que perdura até os dias atuais. Sonia se casou com "Chango" Córdoba e foi com êle viver em La Pampa. Licastro depois de alguns anos abandonou a Medicina para se dedicar a outra atividade profissional.
cirrose, alergia ao leite de vaca e à soja, intolerância aos carboidratos, várias formas de apresentação da doença celíaca, inclusive com constipação, glicogenose, divertículo de Meckel, doença inflamatória intestinal, linfangiectasia intestinal, úlcera duodenal, estenose hipertrófica do piloro, afora aquelas comumente vistas no nosso meio, tais como, diarréia aguda e diarréia prolongada. Inclusive no que diz respeito à doença celíaca vale a pena frisar a espetacular recuperação clínica e nutricional que os pacientes apresentam quando são colocados em dieta isenta de glúten, ou seja, com restrição de trigo, aveia e centeio (Figuras 2-3-4 & 5).
Figura 2- Paciente portadora de doença celíaca por ocasião do diagnóstico com grau intenso de desnutrição.


Figura 3- A mesma paciente vista de perfil.

Figura 4- A mesma paciente depois de algumas semanas em dieta isenta de gluten. Notar a espetacular recuperação clínica e nutricional; a distensão abdominal costuma perdurar por certo tempo em virtude da hipotonia da musculatura abdominal durante o período de desnutrição.

Figura 5- A mesma paciente em visão frontal.

No tocante à parte de procedimentos tenho realizado um bom número de biópsias de intestino delgado, em média 2 a 3 por semana ( por sinal a primeira que realizei foi no final de março), e realmente a coisa não é segredo algum. Tenho também realizado retosigmóidoscopias com biópsia retal uma vez por semana, e já fiz uma biópsia hepática.

Uma vez por semana faço ambulatório com Dr. Toccalino, e isto tem sido de grande utilidade prática, pois além de atender pacientes de consultório também acompanhamos a evolução dos pacientes que estiveram internados. Uma grande experiência, sem dúvida alguma!”

Como se pode depreender do relato acima nesta altura dos acontecimentos os conhecimentos básicos já haviam sido incorporados, mas tudo o que viria depois suplantou totalmente às mais exigentes expectativas, e, pelo menos para mim não fazia parte dos planos iniciais, mesmo porque sequer havia sido imaginado. Refiro-me especificamente à investigação clínica. Entrava, então, naqueles dias, orientado por Dr. Toccalino, na área mais apaixonante da Medicina, a Pesquisa! Este era um novo mundo que se descortinava, quase um sonho, e me absorvia integralmente, mas não conflitava com as atividades clínicas, bem ao contrário, era uma complementação. Em virtude da grande empatia e amizade que foi sendo construída entre nós dois e como o estudo da Bacteriologia do Intestino estava sendo a grande curiosidade da pesquisa clínica e experimental, com muitos artigos sendo publicados na literatura internacional, Dr. Toccalino me propôs o desafio de realizar um projeto de investigação em pacientes portadores de diarréia aguda e crônica. Iríamos estudar a microflora bacteriana do intestino delgado destas crianças com a hipótese de que iríamos encontrar um sobrecrescimento bacteriano da flora fecal anormalmente elevado na secreção jejunal e com isto demonstrar que este achado seria pelo menos mais um fator responsável pela perpetuação da diarréia. Para se conseguir obter amostras da secreção jejunal era necessário fazer com que os pacientes se submetessem a introdução de uma sonda de polietileno radiopaca por via nasal, até que sua extremidade distal alcançasse as primeiras porções do jejuno. A evolução da sonda era acompanhada por radioscopia e quando a mesma atingisse o local desejado era feita aspiração da secreção com uma seringa, todo o procedimento realizado em condições estéreis. Após a obtenção da secreção jejunal, esta era semeada em placas de Agar para cultura e identificação das colônias bacterianas (Figura 6-7-8 & 9).

Figura 6- Foto das sondas de polietileno de tripla via usadas para obter sescreção jejunal. Ao fundo Guimaray e mais atrás o bosque na parte posterior do hospital.

Figura 7- Fotografia de uma chapa de raio X mostrando a localização do trajeto da sonda ao longo do tubo digestivo.

Figura 8- Realização do procedimento de coleta da secreção jejunal.


Figura 9- Dra. Norma (Bacteriologista) semeando na placa de agar o líquido jejunal.
A partir desta proposta que imediatamente aceitei, passei a fazer um vastíssimo levantamento da literatura a respeito do tema e que possibilitou publicar meu primeiro trabalho na literatura médica, um artigo de revisão publicado em 1973 na revista Acta Gastroenterologica Latino Americana, em espanhol. Os dois outros trabalhos realizados foram escritos e publicados em inglês na literatura médica internacional, em 1976, a saber, Archives of Gastroenterology e Acta Paediatrica Scandinavica. Além disso, anteriormente foram também apresentados oralmente como temas livres no Congresso Mundial de Pediatria, que se realizou em Buenos Aires, em 1974. Estes trabalhos nos colocavam no topo da produção científica a respeito da bacteriologia do intestino, estávamos naquele dado momento nos limites da fronteira do conhecimento. Esta experiência teve uma valia incalculável, porque quando voltei ao Brasil me associei ao grupo do Prof. Luis Rachid Trabulsi, na Escola Paulista de Medicina, um dos maiores pesquisadores de enterobactérias em nível internacional, e inúmeros trabalhos de pesquisa passamos a realizar em conjunto nos anos vindouros. Desde então a pesquisa passou a ser uma das minhas mais importantes prioridades no plano profissional como docente, pois produzir novos conhecimentos é um dos pilares básicos da vida universitária.

No nosso próximo encontro darei continuidade aos aspectos políticos, sociais e científicos da minha experiência argentina.

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