sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (5)

Escherichia coli enteroagregativa: mecanismos de patogenicidade

Escherichia coli enteroagregativa (ECEA) constitui um conjunto de bactérias que abrange sorogrupos de Escherichia coli que aderem a linhagens celulares “in vitro”, tais como células HeLa e HEp-2, formando agregados bacterianos, localizados na superfície celular e em regiões da lamínula isenta de células, em um arranjo semelhante a “tijolos empilhados”. A configuração “em pilha de tijolos” (stacked bricks) é considerada condição obrigatória para o padrão típico de aderência agregativa (AA).
Nataro e cols., em 1987 (Pediatr Infect Dis J 6:829-31), investigou as propriedades de adesão em células HEp-2 de determinadas cepas de Escherichia coli que foram isoladas das fezes de 154 crianças com diarréia e 66 controles em Santiago, Chile. No desenrolar da pesquisa, os autores puderam subdividir os fenótipos de adesão em duas categorias, a saber: agregativa e difusa (AD) (Figuras 1 & 2).

Figura 1- Cepa de Escherichia coli em cultura de célula HeLa evidenciando adesão agregativa, tipicamente "em pilha de tijolos".


Figura 2- Cepa de Escherichia coli em cultura de célula HeLa evidenciando Adesão Difusa.

A AA se distinguia devido a uma proeminente autoaglutinação das células bacterianas quando cultivadas com células HEp-2, em uma forma característica que foi denominada “stacked brick”. Na AD as bactérias eram visualizadas de forma dispersa sobre a superfície das células HEp-2. Dentre as 253 cepas bacterianas de Escherichia coli, dos pacientes chilenos com diarréia, que não se hibridizavam quando submetidas ao estudo com a sonda EAF (padrão clássico do fator de adesão localizada) 84 (33%) delas exibiam o padrão AA de adesão, enquanto que das 134 cepas de Escherichia coli, sondas negativas para o fator EAF do grupo controle, somente 20 (15%) revelaram-se AA positivas. Esta diferença entre pacientes e controles mostrou-se altamente significativa (p<0>Escherichia coli
causadoras de diarréia receberam inicialmente o termo Escherichia coli enteroaderente-agregativa, o qual posteriormente, por questões de simplificação, foi encurtado para Escherichia coli enteroagregativa (ECEA).
Evidências experimentais concluíram que a infecção por cepas de ECEA vem acompanhada por efeitos citotóxicos sobre a mucosa intestinal. Análises histopatológicas do intestino de pacientes infectados por ECEA e modelos animais têm trazido importantes contribuições para um melhor entendimento da patogênese desta enfermidade. Nataro & Sears, em 1996 (Infect Immun 64:4761-68) demonstraram que a cepa O42 de ECEA tem a capacidade de produzir efeitos citotóxicos sobre as células T84 (células de carcinoma intestinal humano) (Figura 3).

Figura 3- Efeito citotóxico da cepa de Escherichia coli agregativa O42 sobre células carcinomatosas intestinais humanas.

Recentemente, Andrade, Happalainen & Fagundes-Neto, em 2010 (Arquivos de Gastroenterologia 47: 306-12), investigaram a interação de 3 cepas de ECEA isoladas das fezes de crianças com diarréia persistente com as mucosas ileal e colônica de seres humanos, in vitro, utilizando as microscopias eletrônicas de transmissão e varredura. Foram estudadas as seguintes cepas de ECEA: 171-1, 101-1 e 71-1; o protótipo O42 foi utilizado como controle positivo e como controle negativo foram utilizados fragmentos intestinais desprovidos de infecção. A análise dos fragmentos intestinais à microscopia eletrônica de transmissão revelou destruição da superfície epitelial e adesão das bactérias aos enterócitos com todas as cepas investigadas (Figuras 4 -5 & 6).

Figura 4- Vide texto no slide.



Figura 5- Vide texto no slide.

Figura 6- Vide texto no slide.

A análise dos fragmentos intestinais á microscopia eletrônica de varredura revelou a formação de agregados bacterianos, “em pilha de tijolos”, firmemente aderidos à uma camada de muco recobrindo a mucosa acarretando destruição das microvilosidades. Além disto, também foram observadas formações de fimbrias que emergiram a partir do corpo das bactérias interagindo com as células intestinais (Figuras 7 - 8 - 9 -10 & 11).

Figura 7- Vide texto no slide.

Figura 8- Vide texto no slide.

Figura 9- Vide texto no slide.


Figura 10- Vide texto no slide.

Figura 11- Vide texto no slide.

Os autores confirmaram que as cepas de ECEA têm a capacidade de colonizar tanto o intestino delgado quanto a mucosa colônica e que a infecção causada por estas cepas têm a propriedade de provocar lesão ao epitélio absortivo do intestino delgado dando lugar à perpetuação da diarréia.
Vale ressaltar que esta categoria de Escherichia coli tem apresentado comportamento bastante heterogêneo em vários aspectos fenotípicos e genotípicos, e não se sabe, até o presente momento, se esta diversidade ocorre em cada tipo de variante ou se ela pode ser atribuída ao fato de se realizar uma análise conjunta da patogenicidade de amostras típicas e variantes. Portanto, este grupo de bactérias apresenta tanto cepas patogênicas quanto cepas não patogênicas, daí o porquê também terem sido isoladas nas fezes de indivíduos assintomáticos. Estudos realizados em diferentes locais do mundo têm revelado associação de ECEA com diarréia persistente em percentuais que variam desde 10% até mesmo a 68%. Este por exemplo é o caso do estudo de Fang e cols., em 1995 (J Pediatr Gastroenterol Nutr 21:137-44), realizado no nordeste do Brasil, em que os autores revisaram 4800 casos de doença diarréica e selecionaram 56 crianças com diarréia persistente, 52 com diarréia aguda e 42 controles. Neste grupo de estudo cepas de ECEA foram isoladas em 68% dos casos de diarréia persistente, 46% dos casos de diarréia aguda e 31% dos controles. Por outro lado Bardhan e cols., em 1998 (J Pediatr Gastroenterol Nutr 26:9-15), em Bangladesh, Índia, estudaram 195 crianças, das quais 135 com diarréia persistente, 42 com diarréia aguda e 15 controles. ECEA foi isolada nas fezes de 25,4% das crianças com diarréia persistente, e os autores concluíram que ECEA é um importante agente enteropatogênico associado à diarréia persistente.

No nosso próximo encontro continuarei a discorrer sobre a etiopatogenia da diarréia persistente.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (4)

Escherichia coli enteropatogênica: mecanismos de patogenicidade

Cravioto e cols., em 1979 (Curr Microbiol 3:95-9), descreveram uma propriedade característica das EPEC a qual se manifesta por uma adesão localizada quando estes microorganismos são expostos em cultura de tecido às células Hep-2 ou HeLa (Figura 1).

Figura 1- Típica adesão localizada de uma cepa de Escherichia coli enteropatogênica em cultura de células HeLa.

Este padrão de adesão localizada é determinado por um plasmídeo que foi denominado EAF (Escherichia coli adherence factor). Vale ressaltar que plasmídeo é um material genético extra-cromossômico e como tal pode ser transferido de bactéria a bactéria através da conjugação sexual, e, portanto, esta propriedade pode ser adquirida por um novo microorganismo até então desprovido da capacidade de provocar adesão localizada. Giron e cols., em 1991 (Science 254:710-13), identificaram o fator responsável pela mediação da adesão localizada; estes autores descreveram fímbrias de 7nm de diâmetro produzidas pelas cepas de EPEC, as quais têm a tendência de se agregar e formar bandas, e por isso foram denominadas “bundle-forming pilus” (BFP) (Figura 2).

Figura 2- Ultramicrofotografia de uma Escherichia coli enteropatogênica e suas fímbrias.

Além destas propriedades específicas das cepas de EPEC deve-se agregar outro mais, a que representa a marca histopatológica característica sobre o epitélio do intestino delgado das infecções por EPEC, ou seja, a lesão denominada “attaching-and-effacing” (AE) (aderência e desaparecimento) (Figura 3) que foi pela primeira vez descrita em crianças portadoras de diarréia persistente por Rothbaum e cols., em 1982 (Gastroenterology 83:441-54).


Figura 3- Ultramicrofotografia de um enterócito mostrando vários microorganismos "sentados" sobre a superfície epitelial.
A íntima adesão da bactéria com a membrana do enterócito causa uma ruptura da porção apical do citoesqueleto e dá a nítida aparência de que a bactéria encontra-se “sentada” sobre um pedestal da membrana celular (Figura 4).

Figura 4- Ultramicrofotografia de um enterócito demonstrando a característica lesão em pedestal.

Esta íntima adesão AE é codificada por um gene denominado Escherichia coli attaching-effacement” (eae) e efetuada pela produção de uma proteína denominada intimina (Figura 5).
Figura 5- Modelo esquemático do mecanismo de patogenicidade da Escherichia coli enteropatogênica.

Posteriormente, Fagundes-Neto e cols., em 1995 (Acta Paediatr 84:453-5), descreveram a capacidade de uma cepa de Escherichia coli O111:H2 de penetrar o epitélio intestinal de uma criança portadora de diarréia aguda. Tratou-se de um lactente de 11 meses de idade internado no Hospital Universitário de Brasília com diarréia de 5 dias de duração, associada a vômitos e febre; o paciente encontrava-se assintomático até o início de um quadro de diarréia aquosa profusa que acarretou desidratação moderada. Inicialmente o paciente foi tratado na sala de urgência tendo recebido terapia de reidratação oral, porém como o processo diarréico se acentuou associado a acidose metabólica o paciente foi internado na enfermaria para receber hidratação intravenosa e correção do distúrbio metabólico. A cultura de fezes revelou a presença de Escherichia coli O111:H2 e o mesmo agente enteropatogênico foi isolado na cultura da secreção jejunal. No quinto dia de internação devido à má evolução clínica o paciente foi submetido à biópsia jejunal, cuja avaliação à microscopia óptica comum revelou atrofia vilositária sub-total associada a nichos de bactérias Gram – firmemente aderidas à porção apical dos enterócitos. A análise à microscopia eletrônica de transmissão revelou a presença de bactérias aderidas à superfície apical dos enterócitos com formação de pedestal e penetração das mesmas no interior dos enterócitos. O paciente apresentou intolerância alimentar múltipla e necessitou ser alimentado com fórmula à base de hidrolisado protéico, a qual foi bem tolerada. Após 15 dias de internação o paciente recebeu alta hospitalar curado do episódio diarréico (Figuras 6 – 7 – 8 – 9 - 10).
Figura 6- Microfotografia de material de biópsia do intestino delgado revelando atrofia vilositária sub-total.

FIgura 7- Microfotografia em maior aumento de material de biópsia de intestino delgado mostrando nichos de bactéria sobre o epitélio do intestino delgado.

Figura 8- Microfotografia em corte semifino do intestino delgado evidenciando nichos de Escherichia coli O111:H2 firmemente aderidos à superfície epitelial dos enterócitos.


Figura 9- Ultramicrofotografia de um enterócito evidenciando a presença microorganismos de Escherichia coli O111:H2 no seu interior.


Figura 10- Ultramicrofotografia da infecção de uma célula HeLa pela cepa de Escherichia coli O111:H2. Notar a presença de um microorganismo no interior da célula e outro na porção apical da célula HeLa com formação de pedestal.

Em resumo podemos afirmar que a patogenicidade da EPEC se dá em um modelo de 3 estágios, a saber: 1- adesão localizada que representa a interação inicial entre a bactéria e a célula epitelial, a qual é mediada pelas fimbrias mas também envolve lócus cromossômicos e plasmidiais; 2- genes cromossômicos iniciam um sinal de transdução que resultam na liberação intracelular de Cálcio e conseqüente desaparecimento das microvilosidades; 3- a interação da intimina e produtos do gene eae que causarão a firme adesão da bactéria ao enterócito formando a lesão em pedestal.

No nosso próximo encontro passarei a descrever os mecanismos fisiopatológicos da infecção pelas cepas de Escherichia coli enteroagregativa.