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quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Distúrbios da deglutição: diagnóstico e tratamento (Parte 1)

Ana Catarina Gadelha de Andrade e 
Ulysses Fagundes Neto


Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica – Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo

Corte axial da face e parte do pescoço, regiões anatômicas envolvidas no processo da deglutição.

Introdução

Para a maioria das pessoas, a deglutição é um ato normal e espontâneo, porém, apesar da sua facilidade, este processo consiste em uma atividade sensório-motora complexa e dinâmica, que envolve 26 pares de músculos e cinco nervos cranianos.

A  complexidade da deglutição se deve  a uma via comum entre os tratos respiratório e gastrointestinal, o que permite o fornecimento seguro do alimento ingerido desde a boca até o estômago, assegurando a proteção das vias respiratórias.

O reflexo da deglutição já se encontra presente na 17ª semana de gestação (líquido amniótico) e o reflexo da sucção na 20ª semana. Somente entre a 34ª e 35ª semanas de vida, o feto apresenta condições de coordenar sucção, deglutição e respiração.

As modificações da anatomia e fisiologia da cavidade oral e faringe iniciam-se entre o terceiro e o sexto mês de vida, e a deglutição na infância está constantemente se adaptando às mudanças ocorridas acompanhando o desenvolvimento.

Tradicionalmente, a deglutição é dividida em três fases convencionais sob os controles voluntário e reflexo.  Distúrbios da deglutição podem acometer uma ou mais fases. Na Figura 1 estão detalhados os diferentes estágios fisiológicos da deglutição.

Figura 1- Estágios fisiológicos da deglutição.

A avaliação e o manejo dos problemas da alimentação e da deglutição em Pediatria – Disfagia – raramente são caracterizados precocemente.

Cerca de 37% a 40% dos lactentes e crianças com distúrbios da alimentação e da deglutição nasceram prematuramente e têm risco aumentado para doenças respiratórias e neurológicas, além de atraso no desenvolvimento, o que contribui para a ocorrência das dificuldades na alimentação e deglutição.

A incidência de disfagia, um transtorno da deglutição, é desconhecida, embora tudo indique que esteja em constante aumento. Uma explicação parcial para este fenômeno é o aumento da sobrevida de crianças com antecedentes de prematuridade, baixo peso ao nascer ou condições médicas complexas.

Os dados sobre a prevalência e a incidência dos distúrbios da deglutição na população pediátrica são limitados, devido a escassez de protocolos diagnósticos padronizados, os diferentes métodos de avaliação, a difícil distinção entre os padrões alimentares variantes do normal e os distúrbios, e a supervalorização da patologia subjacente. Na Tabela 1 estão listados os diagnósticos mais frequentes associados a disfagia em crianças.

Tabela 1- Condições mais comuns associadas à disfagia em Pediatria.

Em algumas crianças, os sintomas de disfagia podem ser o primeiro sinal de outras condições subjacentes. Problemas na alimentação durante a infância podem ser preditivos de doenças graves. Apesar do aumento do risco de disfagia associada com diferentes condições médicas ou de desenvolvimento, a disfunção da deglutição isoladamente tem sido documentada em crianças neurologicamente normais, sem causas identificáveis ​​no momento da apresentação. Disfagia também pode ocorrer após estados agudos de infecções respiratórias em crianças saudáveis.

Diagnóstico

As manifestações clínicas dos distúrbios da deglutição não são específicas para cada etiologia, e, na verdade, constituem uma síndrome, a qual pode cursar com recusa alimentar, fadiga e tosse durante a alimentação, escape oral, regurgitação nasal, engasgos, asfixia, cianose e alteração da qualidade vocal, além de problemas pulmonares e de aspiração, podendo levar a déficits nutricionais e desidratação, resultando em perda de peso, pneumonia e morte.

Na Tabela 2 estão descritas as frequências relativas dos critérios clínicos utilizados pelos neonatologistas para a indicação da avaliação diagnóstica de disfagia em lactentes.


Tabela 2- Frequência relativa dos critérios clínicos para indicação de avaliação do diagnóstico de disfagia em lactentes.

Na Tabela 3 estão abordados os pontos chave que devem ser considerados na história clínica para o diagnóstico de disfagia.

     
Tabela 3- Pontos chave da história clínica.

Disfagia Orofaríngea (DO)

A DO pode também ser denominada disfagia "alta" em virtude da sua localização, e, pode haver disfagia individualizada (oral, faríngea) ou ambas. Geralmente há uma disfunção neuromuscular associada.

Oral: neste caso ocorre dificuldade para iniciar a deglutição; há derramamento dos alimentos através dos lábios; incapacidade de mastigar ou impulsionar os alimentos para a faringe; sialorréia ou xerostomia.

Faríngea: sensação de bolo no pescoço; regurgitação nasal; são necessários vários movimentos de deglutições para esvaziar a faringe; voz anasalada e disfonia; no caso de surgir tosse ou asfixia pode sugerir aspiração.

A Tabela 4 apresenta as principais causas de disfagia orofaríngea.

Tabela 4- Principais causas de disfagia orofaríngea.

Disfagia Esofágica (DE)

A DE pode também ser denominada “disfagia baixa”. A disfagia que ocorre igualmente para sólidos e líquidos geralmente está relacionada a dismotilidade esofágica. A suspeita é reforçada quando a ocorrência de disfagia intermitente para sólidos e líquidos estiver associada a dor torácica.

A disfagia que ocorre apenas para sólidos, mas nunca para líquidos, sugere a possibilidade de obstrução mecânica, como por exemplo, estenose da luz esofágica. Caso seja progressiva deve-se considerar particularmente as hipóteses de estenose péptica, esofagite eosinofílica ou carcinoma. Na Tabela 5 estão listadas as principais causas de DE.

Tabela 5- Principais causas de DE.

Anéis Esofágicos (AE)

AEs são geralmente vistos no terço inferior do esôfago. Podem ser dos seguintes tipos, a saber: anel muscular (tipo A) ou anel da mucosa (Schatzki - tipo B). Anéis musculares são pouco frequentes e raramente causam disfagia. Estão localizados em até 2 centímetros da junção escamo-colunar do esôfago e ocorrem devido a hipertrofia muscular.

Em contraste, o anel de Schatzki está localizado na junção escamo-colunar. É observado em 6% a 14% dos pacientes assintomáticos durante os estudos rotineiros com bário. Pode ser visto em associação nos pacientes que sofrem de esofagite eosinofílica. É mais comum em pacientes acima dos 40 anos de idade, mas também pode ser visto em pacientes mais jovens.

A etiologia dos anéis do esôfago não está clara. Há evidências inconclusivas implicando doença do refluxo gastro esofágico (DRGE) na patogênese dos anéis de Schatzki. Geralmente os anéis de Schatzki estão presentes nos pacientes que apresentam disfagia episódica para alimentos sólidos. O diagnóstico é realizado utilizando-se o esofagograma com bário e, também, pela endoscopia digestiva alta.

A dilatação mecânica é o tratamento de escolha para pacientes sintomáticos, bem como deve-se dar atenção ao tratamento da condição médica subjacente.

Estenose Péptica (EP)

A EP é uma complicação vista em 10% dos pacientes com DRGE, mais comumente em pacientes com idade avançada e do sexo masculino, com pirose prolongada e uso crônico de antiácido. Nesta circunstância ocorre disfagia para sólidos e, eventualmente, para líquidos. A endoscopia digestiva alta é o padrão ouro para o diagnóstico e o esofagograma com bário  complementa o diagnóstico.

O tratamento é feito por meio da dilatação esofágica.

Acalásia

Acalásia trata-se de um distúrbio motor primário do esôfago, relativamente incomum, envolvendo o segmento de músculo liso do esôfago. Caracteriza-se pela ausência de relaxamento ou relaxamento incompleto do esfíncter esofágico inferior, e perda do peristaltismo do esofágico.

A etiologia da acalásia é desconhecida e em cerca de 98% dos casos é idiopática. Seu pico de incidência varia entre os 25 e os 60 anos de idade.

Os pacientes usualmente apresentam disfagia progressiva para sólidos e líquidos, pirose, dor no peito, soluços e perda de peso. A avaliação diagnóstica deve incluir radiografia de tórax, que pode mostrar ausência da bolha gástrica e nível hidroaéreo no esôfago. O esofagograma baritado, pode mostrar esôfago dilatado, atônico com o clássico '‘bird peak’', que é um suave estreitamento da junção esofagogástrica.

A endoscopia digestiva alta permite descartar acalásia secundária, como por exemplo, carcinoma do cárdia. A manometria esofágica deve ser realizada para confirmar o diagnóstico de acalásia, mostrando aperistalse, pressão intraesofágica aumentada, relaxamento do esfíncter esofágico inferior incompleto e esfíncter hipertenso.

O tratamento da acalasia inclui o uso de nitratos, bloqueadores dos canais de cálcio e sildenafil. Quanto à abordagem endoscópica, esta envolve injeção de toxina botulínica no esfíncter esofágico inferior e dilatação pneumática.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Esofagite Eosinofílica: uma enfermidade emergente (Parte 1)

Ana Beatriz Rocha Gabriel & Ulysses Fagundes Neto

Introdução   
      
Nas duas últimas décadas tem se constatado um aumento crescente no número de pacientes que apresentam eosinofilia esofágica e que não respondem ao tratamento convencional da DRGE. Vários trabalhos passaram a ser publicados demonstrando o surgimento de uma “nova doença”, que recebeu a denominação de Esofagite Eosinofilica (EEo).

Os transtornos digestivos eosinofílicos constituem-se em enfermidades inflamatórias caracterizadas pela presença de eosinófilos ao longo do tubo digestivo, na ausência de doenças que cursam com eosinofilia secundária. Atualmente a EEo é considerada a enfermidade mais comum tanto em crianças quanto em adultos. A etiologia e a fisiopatologia da EEo ainda não estão completamente elucidadas, porém, é sabido que ocorre uma nítida associação com atopia, devido a participação de aeroalergenos e antígenos alimentares em sua patogênese. Dados da literatura apontam que 80% dos pacientes apresentam doenças atópicas, sendo 62% por sensibilização a alimentos e, além disso, 16% dos pacientes apresentam casos semelhantes na família.

Definição

A EEo caracteriza-se por importante infiltrado eosinofílico no esôfago, associado a sintomas semelhantes aos da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), mas que não respondem ao tratamento com bloqueadores da secreção ácida gástrica de modo isolado. Segundo Markowitz et al. 8-10% dos casos pediátricos que não respondem ao tratamento clássico para DRGE apresentam EEo. Na Tabela 1 estão relacionados os critérios diagnósticos da EEo.

Tabela 1- Critérios Diagnósticos
A- Sintomas clínicos de disfunção esofágica
B- Ausência de resposta a elevadas doses de inibidores da bomba de Hidrogênio
C- Presença de ≥15 eosinófilos em campo de grande aumento (CGA) na mucosa esofágica
D- Estudo de pHmetria do esôfago distal normal 

É importante ressaltar que a eosinofilia esofágica não é característica exclusiva da EEo, podendo estar também presente em outras patologias do trato digestivo discriminadas na Tabela 2, abaixo.

Tabela 2- Diagnóstico diferencial das eosinofilias esofágicas
Doença do Refluxo gastro-esofágico
Gastroenterite eosinofílica
Doença de Crohn
Doença do tecido conetivo
Síndrome hipereosinofílica
Infecção
Resposta de hipersensibilidade a drogas
  
Em condições normais eosinófilos caracteristicamente não devem estar presentes no esôfago, entretanto, tem sido observado que a presença de eosinófilos no trato digestivo pode ocorrer em algumas circunstâncias. Nestes casos, os eosinófilos estão presentes em baixa concentração principalmente na lâmina própria, bem menores na superfície epitelial e no epitélio das criptas e das glândulas.

Consenso Internacional sobre EEo: First International Gastrointestinal Eosinophil Research Symposium (FINGERS)

Em 2007, nos EUA, um grupo de experts se reuniu para discutir as peculiaridades da EEo que resultou na publicação de um documento baseado nas revisões sistemáticas da literatura. Naquele encontro ficou estabelecido que a EEo é uma doença caracterizada por:
A- Recusa alimentar e sintomas semelhantes à DRGE na criança menor, disfagia e impactação alimentar nas crianças maiores e adultos
B- Contagem de eosinófilos igual ou superior a 15 eosinófilos por CGA na biopsia esofágica
C- Eosinofilia mantida após uso de Inibidor de Bomba de Protons
D- Exclusão de outras doenças que cursam com eosinofilia secundária

Epidemiologia

Atualmente está bem estabelecido que a prevalência da EEo tem aumentado nas últimas décadas, acomete prioritariamente indivíduos da raça branca, e o sexo masculino é o mais afetado (80%).

A EEo acomete pacientes de todas as faixas etárias, mas principalmente aqueles da idade escolar, com pico de diagnóstico aos 10 anos.

Na Austrália observou-se que entre 1995 e 2004 ocorreu aumento de 18 vezes no número de casos diagnosticados. Nos EUA, Noel et al. demonstraram que a incidência de EEo é de 1/10.000 crianças por ano e a prevalência de 4/10.000 crianças, sendo que 90% dos casos foram diagnosticados após o ano 2000.

Este vertiginoso aumento no número de casos provavelmente reflete alguns aspectos que devem ser levados em consideração, tais como, um aumento real da incidência, aumento da ocorrência das doenças atópicas, um melhor reconhecimento dessa entidade devido a maior conscientização de sua existência, pela maior valorização dos sintomas e pela realização de um maior número de endoscopias digestivas com biópsia esofágica.

Etiopatogenia

Eosinofilia, associada com alergia alimentar e outras condições atópicas, além dos testes cutâneos e patch test positivos para diferentes alergenos demonstram que há reação de hipersensibilidade IgE mediada, e, também, não IgE mediada, devendo ser incluída no espectro das doenças atópicas. Os principais alergenos alimentares mais envolvidos são: leite de vaca, soja, trigo, peixe, frutos do mar, frutos secos e ovo. Entre os aerolergenos, o pólen é o principal deles.

A exposição da mucosa do esôfago aos alergenos promove uma resposta imunológica Th2, levando à produção de interleucinas (IL-4, IL-5, IL-13), que irá estimular a produção de eosinófilos e IgE. A IL-5 regula a produção, diferenciação, recrutamento, ativação e sobrevida dos esinófilos, a IL-13 promove infiltração eosinofílica, pelo aumento da expressão da eotaxina-3, mediador envolvido na quimiotaxia de eosinófilos.

Há dúvidas se o uso de medicamentos supressores da produção de HCl poderia predispor ao desenvolvimento da EEo, visto que o aumento do pH gástrico pode alterar a digestão das proteínas e como consequência promoveria maior absorção de proteínas intactas com potencial de indução de resposta imune. Além disso, poderia induzir o aumento da permeabilidade da mucosa do tubo digestivo em pacientes em uso de supressão ácida.
Eosinófilos produzem o Fator de transformação do Crescimento (TGF) beta, o qual ativa as células epiteliais, acarreta hiperplasia, fibrose e dismotilidade, tudo em conjunto levando ao remodelamento esofágico.

Manifestações Clínicas

As manifestações clínicas da EEo são inespecíficas e usualmente variam conforme a idade:
1- Menores de 2 anos: recusa alimentar e baixo ganho de peso
<2 alimentar="" anos:="" baixo="" de="" e="" ganho="" peso="" recusa="" span="">2- Até 12 anos: vômitos, dor abdominal, sintomas de refluxo gastroesofágico
3- Adolescentes e adultos: disfagia e impactação alimentar. Estas complicações podem ser decorrentes de transtornos da motilidade esofágica.


A Tabela 3, abaixo, apresenta os principais sintomas sugestivos de EEo em crianças e adultos.


Estudos sugerem que EEo é uma condição crônica, de curso persistente ou recorrente em mais de 90% dos casos, que podem evoluir com complicações importantes como estenose do esôfago e menos comumente perfuração esofágica. 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Esofagite Eosinofílica e Esofagite por Refluxo: fibrose sub-epitelial, um aspecto histológico de diferenciação entre elas.

A Esofagite Eosinofílica (EE) foi descrita pela primeira vez na literatura médica em 1977 em um paciente adulto que apresentava disfagia e apenas alguns mínimos sintomas da Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRG), e, além disso, foi demonstrada intensa eosinofilia na biópsia esofágica. Em 1993, Attwod e cols. (Dig Dis Sci 1993;38:109-16) relataram 11 adultos que sofriam de disfagia e apresentavam pHmetria esofágica normal, mas referiam >20 eosinófilos por campo de grande aumento (cga), enquanto que um grupo controle de pacientes com DRG apresentava 3,3 eosinófilos/cga. Em 1995, Kelly e cols. (Gastroenterology 1995;109:1503-12) sugeriram a etiologia alérgica para a EE em um relato de 10 crianças com eosinofilia esofágica que não responderam ao tratamento anti-refluxo, mas sim, apresentaram resposta favorável ao uso de fórmulas à base de mistura de aminoácidos.

Nas crianças, particularmente nos lactentes, a EE costuma se manifestar com sintomas que podem ser similares à DRG, incluindo vômitos, irritabilidade, recusa alimentar e dor. As crianças maiores e os adolescentes, além dessas manifestações podem também queixar-se de disfagia ou impactação alimentar, sintomas esses que se tornam mais típicos do que aqueles vivenciados por adultos. O tratamento destes pacientes com drogas inibidoras da bomba de próton não costuma ser exitoso ao menos que a DRG seja coexistente. Estes fatos fazem com que o diagnóstico de EE seja geralmente retardado e o intervalo médio entre o início dos sintomas e a realização da primeira endoscopia tem sido verificado ser de 3 anos.

Histologicamente, o diagnóstico da EE também pode apresentar dificuldades. A hiperplasia das células basais e o prolongamento do tecido conetivo das papilas são observados em ambas as patologias, EE e DRG. Eosinófilos podem estar presentes na mucosa esofagiana na DRG embora geralmente em número <5 eos/cga. Por outro lado, o limiar de eosinófilos intra-epiteliais utilizados para definir a EE tem apresentado um variação de 5 a 30 eos/cga. Por estes motivos tem ocorrido uma preocupação a respeito de uma possível sobreposição no diagnóstico entre EE e DRG nos casos em que os números de eosinófilos estão mais reduzidos. Outro fator de confusão tem sido a variabilidade dos números de eosinófilos entre os locais das biópsias realizadas. Estas potenciais dúvidas levaram os experts a definir EE como uma enfermidade clínico-patológica caracterizada por sintomas clínicos e rotulada pela existência de eosinofilia esofágica isolada a despeito do uso dos inibidores da bomba de próton. Um recente consenso internacional, baseado na revisão da literatura, recomenda o limiar de 15 eos/cga para caracterizar o diagnóstico de EE.

No número de Fevereiro de 2011 do Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition (JPGN 2011; 52: 147-153) foi publicado um interessante trabalho realizado por Jean P. Li-Kim-Moy e cols. de Sydney, Austrália, intitulado “Esophageal Subepithelial Fibrosis and Hyalinization Are Features of Eosinophilic Esophagitiis”, o qual busca oferecer mais uma evidência para proporcionar a diferenciação entre EE e DRG. A seguir, transcrevo os principais tópicos do referido artigo.

Introdução

A fibrose sub-epitelial da lâmina própria tem sido cada vez mais pensada ser parte do processo patogênico relacionada à reparação tecidual consequente ao infiltrado celular inflamatório da submucosa. Assim sendo, a fibrose seria a responsável por alguns aspectos clínicos da EE, tais como, disfagia e formação de estenose. Biópsias endoscópicas esofagianas obtidas rotineiramente somente ocasionalmente contêm suficiente tecido para alcançar a lâmina própria, o que tem sido um fator limitante desta investigação na maioria das vezes. Chehade e cols. (JPGN 2007;45:319-28) pesquisaram especificamente pacientes cujas biópsias continham a lâmina própria e sugeriram que a fibrose sub-epitelial seria um achado específico na EE, estando presente em 57% dos seus 21 pacientes em comparação com 0 de 6 pacientes com DRG e 1 de 17 pacientes controle. O presente estudo teve por objetivo, através de uma revisão retrospectiva dos prontuários médicos, avaliar os dados demográficos, sintomas e achados endoscópicos e histológicos de fibrose sub-epitelial em um grupo de pacientes que sofriam de EE e DRG nos últimos 3 anos cujas biópsias incluíram tecido sub-epitelial. O objetivo primário foi estabelecer as taxas de fibrose sub-epitelial nos grupos de pacientes com EE e DRG, e, também avaliar a utilidade deste marcador como algo específico para o diagnóstico de EE. Outro objetivo foi caracterizar as crianças com EE e avaliar a relação da fibrose aos sintomas, intensidade da enfermidade e os achados endoscópicos.

Pacientes e Métodos

Pacientes

Foram analisadas 358 biópsias esofágicas em todas aquelas cujo relatório diagnóstico havia referencia ao tecido sub-epitelial, tanto em pacientes com EE e como na DRG. Definiu-se EE como a apresentação de no mínimo 15 eos/cga, enquanto que DRG menos de 15 eos/cga. Todos os pacientes apresentaram história de queixa gastrointestinal que necessitaram de diagnóstico endoscópico.

Dados Coletados

As anotações clínicas de todos os pacientes foram revisadas incluindo as seguintes informações: sexo, idade, sintomas presentes incluindo vômitos, irritabilidade, dor, recusa alimentar, disfagia ou impactação alimentar. Achados endoscópicos tais como: estrias longitudinais, placas, eritema, anéis, ulceração e espessamento da parede também foram pesquisados. Os achados histopatológicos incluíram a presença ou ausência de fibrose sub-epitelial. História prévia de alergias e os testes de investigação realizados também foram analisados.

Avaliação histológica

A avaliação foi realizada levando-se em consideração a contagem de eosinófilos na mucosa esofágica para assegurar a correta inclusão dos pacientes em um dos dois grupos estudados, EE e DRG. Outros aspectos histopatológicos, tais como, hiperplasia das células basais paraqueratose e prolongamento do tecido conetivo das papilas, foram estudados. A lâmina própria de todas as biópsias foi examinada para avaliar a presença ou ausência de fibrose e a presença de qualquer tecido linfoide associado.

Resultados

Características dos pacientes

Foram identificados 27 pacientes com EE e 24 com DRG de acordo com os critérios anteriormente propostos. A comparação entre os achados clínicos, endoscópicos e histológicos, entre os grupos investigados, está descrita na Tabela 1.


Achados endoscópicos

Anormalidades endoscópicas foram observadas em 15 (63%) dos 24 pacientes com DRG. Os achados endoscópicos mais comuns foram eritema e espessamento da parede esofágica. Em contraste, anormalidades endoscópicas foram vistas em 26 (96,3%) dos 27 pacientes com EE. Espessamentos da parede esofágica e estrias longitudinais foram vistas em 52% dos pacientes. Placas (29,6%), eritema (25,9%), anéis (14,8%), e estenoses (14,8%) foram os outros achados endoscópicos observados.

Achados histológicos

Fibrose sub-epitelial da lâmina própria estava presente em 24 (89%) dos 27 pacientes com EE e em apenas 9 (37,5%) dos 24 pacientes com DRG, diferença altamente significativa (p <0,0001).

A fibrose presente no grupo com EE consistiu em um padrão densamente uniforme de fibras colágenas no interior da lâmina própria, geralmente associadas, com aparência hialinizada e com perda da habilidade de diferenciar fibras individualizadas (Figura 1).

Não houve associação entre fibrose e tecido linfoide. Por outro lado, a fibrose demostrada nas biópsias no grupo com DRG mostrou-se marcadamente diferente (Figura 2).


 Em 7 dos 9 pacientes com DRG, que apresentavam fibrose na lâmina própria, esta mostrou-se associada com tecido linfoide (Figura 3).

Sintomas alérgicos

Uma maior proporção dos pacientes com EE relatou problemas atópicos do que aqueles com DRG (Tabela 2).

Comparação entre as crianças com fibrose sub-epitelial e as crianças sem fibrose sub-epitelial

A comparação entre as características clínicas e endoscópicas dos pacientes estão descritas na Tabela 3.

Conclusões

Os autores concluem que a fibrose sub-epitelial é um marcador histológico específico associado à EE, prontamente identificável quando a lâmina própria está presente na biópsia. A fibrose sub-epitelial representaria um processo de reconstrução secundária à infiltração eosinofílica da mucosa e outros possíveis eventos patológicos. Ela está significantemente associada com uma população de pacientes com idades mais avançadas que sofrem de EE, com tendência de duração mais longa dos sintomas e tudo indica estar associada com o desenvolvimento de sintomas futuros de disfagia e impactação alimentar. A presença de fibrose sub-epitelial deve auxiliar na confirmação da EE e alertar o clínico para monitorar rigorosamente os sintomas de progressão da enfermidade ou de suas complicações, tais como dismotilidade esofágica ou estenose.

Meus Comentários

O presente estudo teve como objetivo caracterizar uma população de crianças que sofrem de EE e avaliar a prevalência da fibrose sub-epitelial neste grupo de pacientes e compará-los com um grupo equivalente de crianças que apresentam a DRG, sendo que em ambos os grupos as biópsias obtidas continham tecido sub-epitelial. A fibrose sub-epitelial mostrou-se nitidamente mais frequente no grupo EE do que no grupo DRG (89% vs. 37,5%), sendo que, inclusive, os aspectos da fibrose detectadas no grupo EE apresentaram diferenças acentuadas em comparação com aqueles detectados no grupo DRE. Vale salientar que a presença da fibrose no grupo EE esteve associada com o aumento da idade e também com o tempo de duração dos sintomas, tendo, portanto, uma nítida característica de um processo evolutivo. Admite-se que a EE é o resultado de uma resposta imunológica anormal aos alergenos dietéticos e/ou respiratórios. As citocinas TH2, tais como a interleucina (IL)-5, a eotaxina-3 liberada pelos eosinófilos e o fator de necrose tumoral alfa contribuem de forma decisiva para a fisiopatologia da EE. Admite-se que a fibrose esteja relacionada com a progressão do processo inflamatório, e que este achado pode estar diretamente relacionado com as manifestações de disfagia e impactação alimentar descritos em crianças maiores e adolescentes. O desenvolvimento da fibrose sub-epitelial poderia afetar a motilidade esofágica levando, assim, inicialmente à manifestação de disfagia e mais em longo prazo resultar em estenose esofágica. Tudo isto ainda são temas especulativos que necessitam maior comprovação científica, mas de qualquer maneira já se desenha um caminho a ser trilhado, para melhor se conhecer os mecanismos íntimos da gênese desta enfermidade, cuja prevalência tem aumentado significativamente em todo o globo terrestre.