terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (8)

Manejo Terapêutico
A Organização Mundial da Saúde, em um relatório publicado em 2009, estima que morrem anualmente cerca de 9.000.000 de crianças, com menos de 5 anos de idade, a cada ano em todo o nosso universo. A doença diarréica é a segunda causa mais importante de morte com 16%, logo a seguir da pneumonia com 17% das mortes, excluindo as diversas causas neonatais que são responsáveis por 37% delas. A pergunta que se impõe é por que uma enfermidade de fácil prevenção causa a morte de cerca de 1.500.000 de crianças menores de 5 anos de idade? A redução destes índices de mortalidade depende, por um lado, da intervenção terapêutica tornando universal a distribuição da solução de reidratação oral de baixa osmolaridade e da prescrição de Zinco. Por outro lado, medidas preventivas também são necessárias serem implementadas as quais serão posteriormente abordadas.

Do ponto de vista do manejo terapêutico está bem estabelecida a importância da reidratação oral (considerada um dos maiores avanços terapêuticos da Medicina do século XX) e da conduta dietética adequada na fase aguda da diarréia para evitar seu prolongamento. É importante ressaltar que a suspensão prolongada da dieta contribui diretamente para o agravamento do estado nutricional, pois dificulta o reparo da mucosa intestinal, enquanto que o uso abusivo e indiscriminado de antimicrobianos altera a microbiota, o que vem a contribuir para a persistência da diarréia, e, portanto, agravando a evolução do episódio.

Na nossa experiência clínica, consolidada no atendimento de crianças portadoras de DP na Unidade Metabólica "Horácio Toccalino" do Hospital Umberto I, durante toda uma década, nos anos 1980 e 1990, passamos a definir como fatores de risco para má evolução do processo diarréico, a ocorrência em lactentes menores de seis meses de idade ou menores de um ano com desnutrição grave, a presença de desidratação e/ou distúrbios metabólicos, o prolongamento do quadro diarréico com importante agravo do estado nutricional ou freqüentes recidivas de desidratação e/ou acidose (Figuras 1 & 2).

Figura 1- Nosso paciente A no momento da internação recebendo o tratamento do choque hipovolêmico e da acidose metabólica tendo seus sinais vitais devidamente monitorados.

Figura 2- Nosso paciente A em íleo paralítico devido aos distúrbios metabólicos em respiração assistida e recebendo nutrição parenteral por via periférica.

Na vigência desta condição clínica a conduta indicada é realimentar o paciente com fórmula à base de proteínas hidrolisadas extensivamente hidrolisadas, ou mesmo, caso necessário, fórmula à base de mistura de amino-ácidos. Nos casos de anorexia persistente, utilizar alimentação por sonda nasogástrica ou se possível naso-enteral, preferencialmente em gotejamento contínuo, sempre preconizando transição para dieta por via oral o mais rapidamente possível. Caso não se obtenha sucesso, indicar o uso de nutrição parenteral (preferentemente por via periférica para diminuir os riscos de infecção sistêmica devido à contaminação do cateter), sempre objetivando o retorno à dieta por via oral o mais rapidamente possível (Figuras 3).
Figura 3- Nosso paciente A já fora do risco de morte e recebendo dieta por via oral á base de hidrolisado protéico, porém ainda com evacuações semi-pastosas mas em franca recuperação clínica e nutricional.

Diante da gravidade da diarréia, a qual ainda é considerada um importante problema de saúde pública, e que depende da integridade do sistema imunológico para ser solucionada, Rocha e cols., em 2009 (The Electronic J Ped Gastroenterol Nutr), em estudo de metanálise, confirmaram o importante impacto positivo da prescrição de Zinco e da vitamina A sobre a imunidade celular, auxiliando no tratamento da diarréia aguda e persistente. Os autores concluíram que a prescrição de Zinco é não somente essencial como elemento curativo dos episódios de diarréia mas também desempenha especial papel de caráter preventivo contra esta patologia. Para alcançar este objetivo, é necessário que se faça a suplementação diária de Zinco, à dose de 10 mg/dia, por um período de 2 a 3 meses após cessar o episódio de diarréia, e a ingestão permanentemente adequada de fontes alimentares para que seja possível atingir as recomendações de ingestão diária deste micronutriente. Lucacik e cols., em 2008 (Pediatr 121:326-36), comprovaram a eficácia desta conduta no manejo da DP e sugerem que este efeito ocorre pelo aumento da reabsorção de água e eletrólitos pelo intestino e pelo aumento da capacidade de regeneração do epitélio intestinal. Níveis aumentados das dissacaridases na bordadura em escova dos enterócitos indicam um efeito transportador para este eletrólito e uma forte resposta imune auxiliando na defesa intestinal, a qual também tem sido descrita quando o Zinco encontra-se em níveis plasmáticos adequados (Figuras 4 -5 - 6 & 7).

Figura 4- Nosso paciente A totalmente recuperado clínica e nutricionalmente.

Figura 5- Nosso paciente A em vias de receber alta hospitalar totalmente curado.

Com relação aos antimicrobianos em pacientes com DP, em algumas circunstâncias existem evidências que seu uso pode diminuir o tempo de duração dos sintomas e em alguns casos diminuir a probabilidade de transmissão da doença. No entanto, sabendo-se que o isolamento de enteropatógenos nas fezes de crianças predispostas a este tipo de patologia não é maior do que nos controles e que a relação do patógeno isolado com o processo vigente é discutível, o emprego de antimicrobianos não é recomendado como rotina. Indica-se antibioticoterapia quando há comprovação bem estabelecida nos casos de infecção prolongada por Salmonella, Giardia, Cyclospora, Strongyloides e Escherichia coli enteroagregativa (neste último caso especialmente se a criança for menor de 3 meses de vida ou desnutrida, imunodeprimida ou apresentar sinais de doença invasiva). Na presença de sangue nas fezes está indicada antibioticoterapia nos casos comprovados de infecção por Shigella e Entamoeba hystolitica, ou seja, quando o patógeno é isolado nas fezes. A decisão de prescrever antibióticos deve ser considerada, portanto, à comprovação laboratorial do agente enteropatogênico nas fezes e ao tipo de resistência microbiana.

Profilaxia

No relatório apresentado pela Organização Mundial da Saúde de 2009, são propostas, além das 2 medidas terapêuticas acima mencionadas, para o controle da doença diarréica, 5 medidas preventivas, a saber: 1- vacinação contra o Rotavirus e o Sarampo; 2- promoção do aleitamento natural exclusivo e suplementação com vitamina A; 3- promoção da lavagem das mãos com sabão; 4- melhoria em qualidade e quantidade do suprimento de água, incluindo o tratamento da água estocada em casa; 5- universalização do saneamento básico.
As intervenções indicadas para diminuição da incidência da DP incluem aleitamento materno exclusivo e prolongado e estratégias seguras de alimentação para garantir adequado desenvolvimento pondero-estatural considerando-se que a desnutrição protéico-calórica é fator de risco para esta síndrome. Durante o episódio agudo são necessárias medidas para garantir a hidratação, suplementação de Zinco e a não interrupção da alimentação. Quando o episódio agudo se prolonga além de 7 dias, está-se frente ao que se denomina diarréia prolongada (Pro-D, com duração entre 7 e 13 dias), cuja epidemiologia ainda tem sido pouco estudada. Recentemente, no nordeste do Brasil (Fortaleza/Ceará), Moore e cols., em 2010 (Gastroenterology 139:1156-64), demonstraram que crianças que apresentam episódios prolongados de diarréia apresentam 2,2 vezes maior probabilidade de desenvolverem DP na sua infância tardia. Este risco aumentado ocorre pelo efeito da patologia sobre o estado nutricional, o sistema imunológico e pela indução de alterações na barreira intestinal ou alterações da flora intestinal.

No Brasil, várias medidas de caráter universal e que se tornaram consistentes desde o início dos anos 1990, tais como campanhas bem sucedidas de promoção da terapia de reidratação oral, a criação e consolidação do Sistema Único de Saúde, e, em particular a implantação do Programa de Saúde da Família, em 1994, possibilitaram alcançar uma considerável diminuição nas taxas de mortalidade associadas à diarréia nas crianças menores de 5 anos de idade.

Assim termino este fascinante capítulo da minha especialidade e logo mais iniciarei mais um excitante e importante tema, qual seja as manifestações digestivas causadas pela Síndrome da Imnodeficiência Adquirida (Sida) ou AIDS sigla em inglês que se consagrou em nosso meio da Syndrome of the Acquired Immune Deficiency.

Aproveito também o momento para agradecer aos meus leitores espalhados em mais 70 países do globo terrestre pela confiança em mim depositada e pelas palavras de apoio e estímulo. Desejo a todos vocês um Feliz Natal e um Ano Novo repleto de realizações com muita paz, saúde e amor. Que seus mais almejados e longínquos sonhos se transformem em doce realidade são os meus mais sinceros desejos.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (7)

Investigação Diagnóstica

Considerando que a Diarréia Persistente (DP) trata-se de uma síndrome de presumível etiologia infecciosa e que se perpetua devido a complicações de características multifatoriais, para que se possa estabelecer um diagnóstico, com precisão da etiologia e suas respectivas potenciais complicações clínicas secundárias ao processo nosológico original, devem ser obtidas detalhadas informações a respeito dos seguintes tópicos, a saber: história clínica desde o início do processo diarréico, história alimentar pregressa, existência ou não da prática do aleitamento materno, condições sócio-econômicas e de moradia, antecedentes pessoais, incluindo o histórico de episódios infecciosos anteriores, e os antecedentes familiares. O exame clínico poderá evidenciar sinais de desnutrição e a determinação do peso e da estatura irão permitir a avaliação do estado nutricional.
Com relação à investigação laboratorial deve-se sempre incluir a cultura de fezes para detectar os principais agentes enteropatogênicos bacterianos, virais e protozoários, bem como a pesquisa de ovos e parasitas em fezes recém emitidas. A investigação laboratorial deve incluir a detecção do pH fecal e a pesquisa de substâncias redutoras nas fezes, pesquisa de leucócitos e sangue oculto nas fezes, determinação da α1 anti-tripsina fecal e do esteatócrito.
Quanto à avaliação da função digestivo-absortiva, considerando-se a elevada prevalência das intolerâncias aos carboidratos da dieta descrita em pacientes com DP como fator perpetuador da diarréia, a abordagem laboratorial utilizando os testes de sobrecarga com os diversos carboidratos comumente utilizados na dieta, tais como, Lactose, Glicose e Frutose devem ser prioritariamente realizadas (Figura 1).


Figura 1- Representação esquemática do metabolismo da Lactose pela flora colônica quando ocorre má-absorção deste dissacarídeo.
O teste de sobrecarga com Lactulose deve também ser realizado visando à detecção de possível sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Todos estes testes de sobrecarga devem preferentemente ser realizados por meio da técnica do H2 no ar expirado, posto tratar-se de um método não invasivo e com alto valor de sensibilidade e especificidade.
Princípio teórico dos testes respiratórios com Hidrogênio
No passado, acreditava-se que o pulmão fosse um órgão apenas responsável pela respiração, e, portanto, tinha-se o conceito de que somente Oxigênio (O2) e Dióxido de Carbono (CO2) pudessem ser dosados no ar expirado. Atualmente, porém, sabe-se que o ar expirado dos pulmões contém mais de 2000 substâncias distintas, e que, além da respiração, os pulmões apresentam uma função adicional, qual seja a excreção de substâncias voláteis, o que tornou os pulmões reconhecidamente como “órgãos excretores” de gases que se encontram dissolvidos no sangue. Uma destas inúmeras substâncias voláteis excretadas pelos pulmões é o Hidrogênio (H2), o qual pode ser facilmente medido com a utilização de um equipamento manual de teste respiratório.
O ser humano sadio em jejum e em repouso não elimina H2 porque o seu metabolismo não produz este gás, o qual somente é gerado durante o metabolismo anaeróbio. Considerando que o organismo humano em repouso não possui metabolismo anaeróbio, o H2 produzido e excretado pelos pulmões deve ter origem nas bactérias anaeróbias, e, como se sabe, o trato digestivo alberga um número elevado de bactérias, que são predominantemente anaeróbias e que produzem grandes quantidades de H2. Portanto, pode-se assumir, com boa margem de segurança, que o H2 expirado pelos pulmões dos seres humanos em repouso é produzido, quase que exclusivamente, pelo metabolismo bacteriano dos anaeróbios que colonizam o íleo e o intestino grosso. Desta forma, pode-se afirmar que o H2 mensurado no ar expirado diz respeito à quantidade da atividade metabólica das bactérias anaeróbias presentes no trato digestivo, em particular, em condições normais, no íleo e no intestino grosso. As bactérias anaeróbias têm preferência para metabolizar os carboidratos, os quais, como parte da reação de fermentação, são “quebrados” dando a formação de ácidos graxos de cadeia pequena, CO2 e H2 (Figura 1). Uma grande parte do CO2 permanece na luz do intestino e é responsável pela sensação de flatulência, enquanto que os ácidos graxos de cadeia pequena exercem efeito osmótico atraindo água para o interior do lúmen intestinal, causando diarréia. O H2 produzido no intestino atravessa a parede intestinal, cai na circulação sanguínea, é transportado até os pulmões e, finalmente, é eliminado pela respiração como parte do ar expirado, podendo, portanto, ser facilmente mensurado. A concentração do H2 mensurado na expiração é sempre um reflexo da massa de bactérias e da atividade metabólica bacteriana no trato digestivo. O momento no qual a concentração de H2 no ar expirado se eleva durante a realização do teste respiratório fornece a indicação em qual região do intestino se deu a fermentação.
Normas para a realização do teste do H2 no ar expirado
Cada teste deve sempre se iniciar obtendo-se a amostra de jejum para a mensuração do H2 no ar expirado. Vale ressaltar que o paciente deve estar em jejum pelo período de ao menos 8 horas. Após a mensuração do valor basal de jejum que deve na imensa maioria dos casos ser inferior a 5 partes por milhão (ppm) o teste respiratório pode começar. O paciente deve ingerir o conteúdo de uma solução aquosa diluída a 10% do carboidrato que se deseja testar a tolerância e/ou absorção à dose de 2 gramas/kg de peso para os dissacarídeos e à dose de 1 grama/kg de peso para os monossacarídeos. A dose máxima do carboidrato a ser testado não deve ultrapassar 25 gramas. Após a obtenção da amostra de jejum e da ingestão da solução aquosa contendo o carboidrato a ser testado amostras de ar expirado devem ser obtidas aos 15, 30, 60, 90 e 120 minutos. Caso o teste seja realizado com Lactulose (a dose é fixa de 20 gramas diluída a 10% em água), para pesquisa de Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado, deve-se acrescentar uma coleta de amostra do ar expirado aos 45 minutos após a amostra de jejum. Vale salientar que a Lactulose é um dissacarídeo sintético (frutose-galactose) não absorvível que exerce efeito osmótico e, portanto, pode provocar sintomas após sua ingestão, tais como, flatulência, cólicas e diarréia, os quais costumam desaparecer pouco tempo depois do término do teste.
Interpretação do Teste do H2 no ar expirado
1- Teste Normal
No caso de haver suficiência de Lactase, não deverá ocorrer aumento significativo da concentração de H2 no ar expirado (elevação inferior a 20 ppm sobre o nível de jejum) e nem tampouco referência a manifestações clínicas. Desta forma o teste deve ser considerado Normal (Figura 2).
Figura 2- Teste de Sobrecarga com Lactose: não houve elevação da concentração do H2 no ar expirado após a sobrecarga em nenhum momento do teste.

Caso surjam sintomas clínicos e a concentração de H2 no ar expirado for inferior a 20 ppm, trata-se de um não produtor de H2, o que pode ocorrer em até 5% dos indivíduos testados. Nesta circunstância para se estabelecer um diagnóstico de segurança deve ser realizado o teste com Lactulose, posto que este dissacarídeo é sempre fermentado, e, se ainda assim não houver elevação da concentração de H2 no ar expirado pode-se assumir com segurança tratar-se de um não produtor de H2.

2- Teste Anormal
Uma elevação da concentração de H2 acima de 20 ppm sobre o nível de jejum é considerado um teste Anormal (Figura 3).


Figura 3- Teste anormal de sobrecarga com Lactose: elevação tardia (fermentação colônica) da concentração do H2 no ar expirado acima de 20 ppm sobre o valor de jejum.

Além disso, um outro fator também deve ser levado em consideração, pois se houver uma elevação da concentração de H2 acima de 10 ppm sobre o nível de jejum dentro dos primeiros 30 minutos do teste, este valor é indicativo de Sobrecrescimento Bacteriano no Intestino Delgado (Figura 4).

Figura 4- Teste anormal de sobrecarga com Lactose: pico precoce (antes dos 60 minutos indicando Sobrecrescimento Bacteriano) e pico tardio concentração do H2 no ar expirado acima de 20 ppm sobre o nível de jejum (fermentação colônica).

Biópsia de Intestino Delgado e Reto
Para complementar a investigação laboratorial, em muitos casos, está indicada a realização da biópsia do intestino delgado para avaliação anátomo-patológica da mucosa jejunal (Figuras 5 - 6 & 7).

Figura 5- Material de biópsia de intestino delgado evidenciando atrofia vilositária sub-total e intenso infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.


Figura 6- Material de biópsia de intestino delgado evidenciando vários trofozoítas de Giardia na luz do jejuno próximos aos enterócitos.


Figura 7- Material de biópsia de intestino delgado evidenciando a presença de uma larva de Strongiloides stercoralis no interior da lâmina própria.

A biópsia retal está indicada quando houver diarréia sanguinolenta para avaliar o grau e o tipo do possível processo inflamatório vigente (Figuras 8 & 9).

Figura 8- Vide legenda da foto.

Figura 9- Vide legenda da foto.

No nosso próximo encontro finalizarei este capítulo sobre DP discutindo seu tratamento e profilaxia.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (6)

Manifestações Clínicas

Tanto as cepas de EPEC como aquelas de ECEA causam diarréia aquosa profusa e embora a enfermidade apresente evolução autolimitada, o processo secretor intestinal pode se prolongar e, mesmo na ausência de intolerâncias alimentares, as perdas hídricas e eletrolíticas podem perdurar por mais de 14 dias, conforme demonstram os estudos de balanço metabólico realizados por Garcia e cols., em 1997 (Rev Ass Med Brasil 43:283-9). Neste estudo realizado com pacientes hospitalizados nos quais os seguintes sorogrupos de Escherichia coli enteropatogênica foram identificados na cultura de fezes: O11, O111, O119, O55 e O127, as perdas hídricas fecais foram monitoradas em cama metabólica, o que permitiu coletar separadamente as perdas fecais das urinárias nos lactentes do sexo masculino, foram em média de 80,6 mL/kg de peso no primeiro dia e de 47,6 mL/kg de peso no décimo primeiro dia de estudo. Dentre os 38 pacientes estudados, 18 (47,4%) mantinham o quadro diarréico após o décimo dia de doença e 7 (18,4%) após o décimo quarto dia (Figura 1).


Figura 1- Foto de um paciente colocado na cama metabólica que permite que as fezes sejam coletadas separadamente da urina.

Vale a pena ressaltar que houve casos em que as perdas fecais diárias chegaram a alcançar a cifra de 220 mL/kg de peso, o que demonstra a importância das cepas de EPEC como causadoras de casos graves de diarréia em lactentes de baixa idade. Os valores dos volumes fecais diários mostraram diferenças significativas de acordo com o tipo de dieta utilizada. Aqueles pacientes que necessitaram receber nutrição parenteral, porque apresentaram intolerâncias alimentares múltiplas, tiveram perdas fecais menores do que aqueles que foram realimentados com fórmulas alimentares por via oral. Assim sendo, os pacientes que foram realimentados com leite de vaca apresentaram perdas fecais médias diárias de 83,2 mL/kg de peso, fórmula à base de caseína isenta de lactose 66,4 mL/kg, fórmula à base de hidrolisado protéico e isenta de lactose 71,4 mL/kg e nutrição parenteral 50,7 mL/kg, respectivamente.
Na vigência de diarréia sanguinolenta deve-se sempre pensar em algum agente enteroinvasor, particularmente as diferentes espécies de Shigella, Salmonella ou mesmo Escherichia coli enteroinvasora. Estes microorganismos têm a capacidade de colonizar o intestino grosso e pela produção de toxinas (Shiga toxina - Shigella e Escherichia coli enteroinvasora) provocam intensa lesão no epitélio colônico gerando perdas sanguíneas fecais de moderada intensidade. Quanto às cepas de Salmonella, este microorganismo tem a propriedade de invadir as camadas mais profundas das mucosas ileal e colônica, provocando importante processo inflamatório (Figura 2).


Figura 2- Desenho esquemático da ação invasora sobre a mucosa colônica dos agentes enteropatogênicos.

Fisiopatologia
A evolução de um episódio de diarréia água para persistente ocorre pelo envolvimento de múltiplos e complexos mecanismos fisiopatológicos que agravam o estado nutricional do paciente.

Dentre os inúmeros fatores que podem estar envolvidos na perpetuação do processo diarréico sem dúvida alguma ocupa lugar de destaque o sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado pela flora colônica. Este fenômeno fisiopatológico, em particular devido às bactérias anaeróbias como Veilonella e Bacteroide, predispõe ao dano da mucosa intestinal. Estas alterações ocorrem pela capacidade das bactérias anaeróbias em provocar a desconjugação e a 7α desidroxilação dos sais biliares primários, ácido cólico e ácido quenodeoxicólico, transformando-os em seus respectivos ácidos biliares secundários, ácido deoxicólico e ácido litocólico, os quais são altamente lesivos à mucosa jejunal. Estes ácidos biliares secundários e desconjugados quando presentes na luz intestinal provocam secreção de água e sódio além de má absorção de glicose. Mais ainda, são capazes de provocar ruptura da barreira de permeabilidade intestinal favorecendo a penetração de macromoléculas intactas, potencialmente alergênicas. Além disso, a presença de sais biliares secundários e desconjugados na luz do jejuno impede a formação da micela mista, posto que a formação desta última é de fundamental importância para a solubilização das gorduras da dieta. Esta ação patológica, portanto, contribui para a ocorrência de má digestão-absorção das gorduras com consequente esteatorréia (Figuras 3 – 4 – 5 – 6 – 7 & 8).

Figura 3- Estrutura química dos sais biliares primários e secundários.
Figura 4- Desenho esquemático da propriedade dos sais biliares de formar solução micelar.

Figura 5- Desenho esquemático da formação da micela mista e da ação da lipase pancreática sobre as gorduras em condições fisiológicas.

Figura 6- Ruptura da barreira de permeabilidade intestinal induzida por sais biliares secundários sobre a mucosa jejunal de ratos submetidos a perfusão intestinal in vivo. Vide legenda das fotos do artigo abaixo.
Figura 7- Vide descrição do gráfico.

Figura 8- Descrição esquemática da 7 alfa desidroxilação de um sal biliar primário por uma bactéria anaeróbia da flora colônica.


Os ácidos graxos não absorvidos alcançam o colon aonde sofrem β-hidroxilação pela flora colônica transformando-se em substâncias catárticas que agravam o processo diarréico (Figura 9).

Figura 9- Descrição esquemática da beta hidroxilação de um ácido graxo por bactéria anaeróbia da flora colônica.

O resultado deste desarranjo é má absorção dos macro e micronutrientes e aumento da permeabilidade intestinal para antígenos bacterianos e/ou proteínas estranhas. Desta forma, podem se desenvolver outras complicações clínicas, tais como, alergia às proteínas da dieta e/ou intolerâncias alimentares múltiplas, em especial à lactose e até mesmo aos monossacarídeos, o que vai contribuir para a perpetuação da lesão intestinal reforçando o ciclo vicioso de diarréia, má absorção de nutrientes e desnutrição energético-protéica, que é o maior determinante do impedimento da recuperação da mucosa jejunal, além das deficiências específicas de micronutrientes.
Confirmando a hipótese acima advogada, Martini-Costa e cols., em 1999 (Rev Paul Pediatria 17:123-34), puderam caracterizar algum tipo de intolerância alimentar, ao estudar 16 pacientes de forma consecutiva e prospectiva, com grande grau de aprofundamento clínico e laboratorial, inclusive com cultura da secreção jejunal e análise ultraestrutural da mucosa do intestino delgado, as quais se manifestaram desde alergia às proteínas heterólogas, tais como do leite de vaca e da soja, intolerância à lactose e até mesmo aos monossacarídeos da dieta. Em todos os pacientes foi caracterizada colite pelo estudo da biópsia retal (Figuras 10 -11 - 12 & 13).

Figura 10- Vide descrição do slide.

Figura 11- Vide descrição da tabela.

Figura 12- Vide descrição da tabela.

Figura 13 - Vide descrição da tabela.

No nosso próximo encontro seguirei discutindo outros tópicos de importância da Diarréia Persistente.