quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (6)

Manifestações Clínicas

Tanto as cepas de EPEC como aquelas de ECEA causam diarréia aquosa profusa e embora a enfermidade apresente evolução autolimitada, o processo secretor intestinal pode se prolongar e, mesmo na ausência de intolerâncias alimentares, as perdas hídricas e eletrolíticas podem perdurar por mais de 14 dias, conforme demonstram os estudos de balanço metabólico realizados por Garcia e cols., em 1997 (Rev Ass Med Brasil 43:283-9). Neste estudo realizado com pacientes hospitalizados nos quais os seguintes sorogrupos de Escherichia coli enteropatogênica foram identificados na cultura de fezes: O11, O111, O119, O55 e O127, as perdas hídricas fecais foram monitoradas em cama metabólica, o que permitiu coletar separadamente as perdas fecais das urinárias nos lactentes do sexo masculino, foram em média de 80,6 mL/kg de peso no primeiro dia e de 47,6 mL/kg de peso no décimo primeiro dia de estudo. Dentre os 38 pacientes estudados, 18 (47,4%) mantinham o quadro diarréico após o décimo dia de doença e 7 (18,4%) após o décimo quarto dia (Figura 1).


Figura 1- Foto de um paciente colocado na cama metabólica que permite que as fezes sejam coletadas separadamente da urina.

Vale a pena ressaltar que houve casos em que as perdas fecais diárias chegaram a alcançar a cifra de 220 mL/kg de peso, o que demonstra a importância das cepas de EPEC como causadoras de casos graves de diarréia em lactentes de baixa idade. Os valores dos volumes fecais diários mostraram diferenças significativas de acordo com o tipo de dieta utilizada. Aqueles pacientes que necessitaram receber nutrição parenteral, porque apresentaram intolerâncias alimentares múltiplas, tiveram perdas fecais menores do que aqueles que foram realimentados com fórmulas alimentares por via oral. Assim sendo, os pacientes que foram realimentados com leite de vaca apresentaram perdas fecais médias diárias de 83,2 mL/kg de peso, fórmula à base de caseína isenta de lactose 66,4 mL/kg, fórmula à base de hidrolisado protéico e isenta de lactose 71,4 mL/kg e nutrição parenteral 50,7 mL/kg, respectivamente.
Na vigência de diarréia sanguinolenta deve-se sempre pensar em algum agente enteroinvasor, particularmente as diferentes espécies de Shigella, Salmonella ou mesmo Escherichia coli enteroinvasora. Estes microorganismos têm a capacidade de colonizar o intestino grosso e pela produção de toxinas (Shiga toxina - Shigella e Escherichia coli enteroinvasora) provocam intensa lesão no epitélio colônico gerando perdas sanguíneas fecais de moderada intensidade. Quanto às cepas de Salmonella, este microorganismo tem a propriedade de invadir as camadas mais profundas das mucosas ileal e colônica, provocando importante processo inflamatório (Figura 2).


Figura 2- Desenho esquemático da ação invasora sobre a mucosa colônica dos agentes enteropatogênicos.

Fisiopatologia
A evolução de um episódio de diarréia água para persistente ocorre pelo envolvimento de múltiplos e complexos mecanismos fisiopatológicos que agravam o estado nutricional do paciente.

Dentre os inúmeros fatores que podem estar envolvidos na perpetuação do processo diarréico sem dúvida alguma ocupa lugar de destaque o sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado pela flora colônica. Este fenômeno fisiopatológico, em particular devido às bactérias anaeróbias como Veilonella e Bacteroide, predispõe ao dano da mucosa intestinal. Estas alterações ocorrem pela capacidade das bactérias anaeróbias em provocar a desconjugação e a 7α desidroxilação dos sais biliares primários, ácido cólico e ácido quenodeoxicólico, transformando-os em seus respectivos ácidos biliares secundários, ácido deoxicólico e ácido litocólico, os quais são altamente lesivos à mucosa jejunal. Estes ácidos biliares secundários e desconjugados quando presentes na luz intestinal provocam secreção de água e sódio além de má absorção de glicose. Mais ainda, são capazes de provocar ruptura da barreira de permeabilidade intestinal favorecendo a penetração de macromoléculas intactas, potencialmente alergênicas. Além disso, a presença de sais biliares secundários e desconjugados na luz do jejuno impede a formação da micela mista, posto que a formação desta última é de fundamental importância para a solubilização das gorduras da dieta. Esta ação patológica, portanto, contribui para a ocorrência de má digestão-absorção das gorduras com consequente esteatorréia (Figuras 3 – 4 – 5 – 6 – 7 & 8).

Figura 3- Estrutura química dos sais biliares primários e secundários.
Figura 4- Desenho esquemático da propriedade dos sais biliares de formar solução micelar.

Figura 5- Desenho esquemático da formação da micela mista e da ação da lipase pancreática sobre as gorduras em condições fisiológicas.

Figura 6- Ruptura da barreira de permeabilidade intestinal induzida por sais biliares secundários sobre a mucosa jejunal de ratos submetidos a perfusão intestinal in vivo. Vide legenda das fotos do artigo abaixo.
Figura 7- Vide descrição do gráfico.

Figura 8- Descrição esquemática da 7 alfa desidroxilação de um sal biliar primário por uma bactéria anaeróbia da flora colônica.


Os ácidos graxos não absorvidos alcançam o colon aonde sofrem β-hidroxilação pela flora colônica transformando-se em substâncias catárticas que agravam o processo diarréico (Figura 9).

Figura 9- Descrição esquemática da beta hidroxilação de um ácido graxo por bactéria anaeróbia da flora colônica.

O resultado deste desarranjo é má absorção dos macro e micronutrientes e aumento da permeabilidade intestinal para antígenos bacterianos e/ou proteínas estranhas. Desta forma, podem se desenvolver outras complicações clínicas, tais como, alergia às proteínas da dieta e/ou intolerâncias alimentares múltiplas, em especial à lactose e até mesmo aos monossacarídeos, o que vai contribuir para a perpetuação da lesão intestinal reforçando o ciclo vicioso de diarréia, má absorção de nutrientes e desnutrição energético-protéica, que é o maior determinante do impedimento da recuperação da mucosa jejunal, além das deficiências específicas de micronutrientes.
Confirmando a hipótese acima advogada, Martini-Costa e cols., em 1999 (Rev Paul Pediatria 17:123-34), puderam caracterizar algum tipo de intolerância alimentar, ao estudar 16 pacientes de forma consecutiva e prospectiva, com grande grau de aprofundamento clínico e laboratorial, inclusive com cultura da secreção jejunal e análise ultraestrutural da mucosa do intestino delgado, as quais se manifestaram desde alergia às proteínas heterólogas, tais como do leite de vaca e da soja, intolerância à lactose e até mesmo aos monossacarídeos da dieta. Em todos os pacientes foi caracterizada colite pelo estudo da biópsia retal (Figuras 10 -11 - 12 & 13).

Figura 10- Vide descrição do slide.

Figura 11- Vide descrição da tabela.

Figura 12- Vide descrição da tabela.

Figura 13 - Vide descrição da tabela.

No nosso próximo encontro seguirei discutindo outros tópicos de importância da Diarréia Persistente.

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