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quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Esofagite Eosinofílica uma atualização: epidemiologia, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento (Parte 1)


Traduzido e Editado por Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto

A revista Gastroenterology do mês de janeiro de 2018, publicou três artigos independentes de atualização a respeito dos mais importantes aspectos sobre Esofagite Eosinofílica (EEo), cujos resumos e suas respectivas figuras e tabelas, passo a transcrever abaixo.

Epidemiologia e História Natural da EEo


A EEo tem se apresentado ao longo das últimas duas décadas como a maior causa de morbidade do trato gastrointestinal superior. Considerando-se este período de tempo, os conhecimentos sobre a epidemiologia da EEo evoluíram rapidamente. De fato, a EEo transformou-se, em uma enfermidade que até há pouco tempo era considerada uma condição que consistia em tão somente a descrição de raros “Relatos de Casos”, para uma enfermidade que se tornou frequentemente encontrada nas publicações pertinentes à Gastroenterologia clínica e ao Centro endoscópico. A incidência e a prevalência da EEo têm aumentado a taxas que sobrepujam o aumento do reconhecimento da enfermidade. Estimativas da sua incidência atual variam de 5 a 10 casos por 100 mil indivíduos e as estimativas atuais de prevalência variam de 0,5 a 1 caso por mil indivíduos. Nesta revisão, são analisados os dados e as razões potenciais que estão por traz desse aumento, são examinados os fatores de risco e são, também, identificadas as importantes áreas para pesquisa da etiologia da EEo. Além disso, propõe-se a discutir a progressão da EEo, a partir de um fenótipo inicialmente inflamatório, para uma potencial evolução para um fenótipo fibro-estenótico. Uma visão acurada da história natural da EEo torna-se um pilar básico para as discussões com os pacientes, tendo em vista o prognóstico da enfermidade e as decisões de longo prazo a respeito das terapias medicamentosa, endoscópica e dietética. A remodelação progressiva da mucosa esofágica parece ser um processo gradual, mas não necessariamente universal, e a duração da enfermidade não tratada é o melhor fator preditivo para o risco de estenose. Finalmente, estudos prospectivos de desfecho de longo prazo, que devem levar em consideração os múltiplos aspectos da atividade da enfermidade, são necessários para a total compreensão da história natural da EEo.


Figura 1- (A) Tendência do tempo na incidência da EEo a partir de estimativas de estudos baseados na população. (B) Tendência do tempo da prevalência da EEo a partir de estimativas de estudos baseados na população.      



Figura 2- Estimativa da prevalência mundial da EEo em estudos baseados na população.


Figura 3- Prevalência da EEo em populações especiais, incluindo pacientes que foram submetidos à endoscopia por razão não especificada, por disfagia, por impactação alimentar, ou sintomas refratários de refluxo.

Tabela 1- Fatores de risco da EEo e os transtornos associados à EEo.

Potencial da evolução natural da EEo.

 Fisiopatologia da EEo

A EEo distingue-se do Refluxo Gastroesofágico Esofágico (RGE) pela existência de um transcriptoma esofágico exclusivo, bem como pela interrelação de fatores ambientais precoces na vida do indivíduo com elementos específicos de susceptibilidade genética, a saber: 5Q22 e 2P23. Síndromes genéticas raras têm dificultado a contribuição a respeito da ruptura da barreira de permeabilidade esofágica, a qual é parcialmente mediada por desmosomas defeituosos e irregulares, que transformam a produção do fator de crescimento beta e sua sinalização na fisiopatologia da EEo. Modelos experimentais têm definido um papel de cooperação de eosinófilos ativados, mastócitos e citocinas IL-5 e IL-13, mediados por sensibilização alérgica por múltiplos alimentos. A compreensão desses processos tem aberto o caminho para se obter o melhor tratamento, o qual deve ser baseado nas respostas de um processo alérgico-inflamatório e mediado pela citocina tipo II, e que, portanto, deve incluir terapêutica anticitocina e a dietoterapia.



Figura 1- Visão geral da fisiopatologia da EEo. Fatores ambientais, incluindo alimentos e o microbioma, interagem com o epitélio esofágico para provocar a produção de citocinas pró-atopias IL-33 e TSLP. Células T reguladoras e células T helper tipo 2 secretam citocinas bioativas incluindo TGF-b, IL-4, IL-13 e IL-5, as quais provocam ruptura da barreira de permeabilidade, remodelação tecidual e inflamação eosinofílica.


Figura 2- Aspectos clínicos, patológicos e terapêuticos da EEo. Alergenos comandam a EEo: intervenções atuais (corticoides) e futuras poderão tratar a enfermidade. Os sintomas presentes são evidenciados, acarretando inflamação, remodelação rígida e disfunção esofágica.


Figura 3- Fatores que contribuem para o desenvolvimento da EEo.





quarta-feira, 22 de junho de 2011

Um Consenso Global Baseado em Evidências a respeito da Definição da Doença do Refluxo Esofágico na população Pediátrica (5)

35. Esofagite de refluxo em Pediatria é definida endoscopicamente por meio de lesões visíveis na mucosa esofágica distal.
Concordância: 62.5% (A+, 50 %; A−, 12,5 %; D, 12.5 %; D+, 25%:Grau: não aplicável).

Em adultos existe uma forte evidência de que lesões visíveis na mucosa são as mais confiáveis evidências de esofagite (1). Globalmente considerou-se que os elementos de prova em adultos podem ser suficientes para recomendar que esta afirmação também se aplique às crianças. Erosões também são um parâmetro bem estabelecido de esofagite em crianças (51,72,93). O termo "esofagite de refluxo," em vez de "esofagite erosiva," enfatiza que esta afirmação aborda esofagite causada pelo refluxo e não por outras causas, como vômito forçado, doença de Crohn, infecção, pílulas e ingestão de cáusticos. Não foi alcançado consenso para esta afirmação porque alguns participantes entenderam que esofagite também deve ser definida pela histologia. No entanto, o Comitê posteriormente reexaminou as evidências histológicas e considerou que, tal como é atualmente realizada a análise histológica, esta não tem utilidade para diagnosticar ou para afastar esofagite de refluxo (afirmações 33 e 34 acima).

36. Quando as erosões relacionadas ao refluxo estão presentes à endoscopia, o grau deveria ser descrito de acordo com uma das reconhecidas classificações de esofagite erosiva.
Concordância: 100% (A+, 50%; A, 50%; Grau: não aplicável).

A presença e a gravidade da esofagite de refluxo caracterizadas no momento da endoscopia digestiva alta determinam a tomada de decisões a respeito da conduta clínica, e permitem avaliar os resultados do tratamento. Classificações endoscópicas são usadas para definir a gravidade da doença erosiva, pela presença e extensão das erosões da mucosa. Achados endoscópicos devem ser descritos em termos bem definidos e reprodutíveis, para que comparações entre observadores possam ser feitas. Embora validada para adultos, a classificação endoscópica de Hetzel e Dent (94) foi a mais usada em estudos pediátricos (51, 93, 95). A classificação de Los Angeles é amplamente utilizada em adultos (96) e também é empregada na prática pediátrica.

Figura 1- Membros do Grupo d0 Consenso Global na reunião presencial em Toronto, em setembro, de 7 a 9 de 2007: (da esquerda para a direita) Eric Hassall (CA), Yvan Vandenplas (BEL), Benjamin Gold (EUA), Sibylle Koletzko (ALE), Philip Sherman (CAN), Ulysses Fagundes Neto (BR), Seiichi Kato (JA), Susan Orenstein (EUA) e Colin Rudolph (EUA).

37. Em pacientes pediátricos saudáveis até o momento de apresentarem sintomas do RGE, esofagite de refluxo pode não se tornar crônica ou recorrente após o tratamento.
Concordância: 100% (A+, 12,5%; A, 75%; A−, 12,5% ; Grau: baixo).

38. Refluxo gastroesofágico, em pacientes com deficiências neurológicas, atresia de esôfago corrigida, hérnia hiatal e doenças respiratórias crônicas, é usualmente crônico e recorrente.
Concordância: 87,5% (A+, 12,5%; A, 62,5%; A-, 12,5%; D, 12,5%; Grau: moderado).

Em um estudo duplo-cego controlado randomizado com 48 crianças saudáveis até o momento de apresentarem sintomas do RGE com esofagite erosiva curada por uso de IBPs, Bocchia e cols. (93) verificaram que uma recaída da esofagite de refluxo, até 3 meses após a suspensão do tratamento de manutenção, ocorreu em apenas uma criança. Recorrência de sintomas relevantes também foi incomum (<15%) durante o período de acompanhamento de 30 meses. Além deste estudo, há poucos dados disponíveis sobre as taxas de recaída em crianças saudáveis. Por outro lado, as crianças com transtornos subjacentes que predispõem à DRGE grave (afirmações de 13 a 15) têm graus superiores de esofagite erosiva do que no estudo realizado por Bocchia e cols., e são mais propensas a ter esofagite erosiva crônica recidivante (40,95).

39. Embora a intensidade e a frequência dos sintomas do RGE em pacientes pediátricos se correlacionem com a gravidade das lesões da mucosa, não há possibilidade de se prever com acurácia a gravidade das lesões da mucosa em um paciente isoladamente.
Concordância: 100% (A+, 12,5%; A, 62,5%; A−, 25%, Grau: baixo).

Em adultos, a freqüência e a gravidade dos sintomas da DRGE têm uma moderada correlação com a gravidade da lesão da mucosa (1). Em um estudo com 129 pacientes (1-17 anos de idade) com a DRGE, que foram submetidos a endoscopia e avaliação dos sintomas (10), a prevalência e a gravidade dos sintomas de anorexia e recusa alimentar foram significativamente maiores em crianças com esofagite erosiva do que naquelas com a DRNE.

Por outro lado, em lactentes, os sintomas não predizem confiavelmente a presença de esofagite (31,78). Atualmente não é possível prever com acurácia a gravidade das lesões mucosas em pacientes pediátricos com base em sintomas isolados. É importante assinalar e diferenciar que a lesão da mucosa tenha sido definida por endoscopia em um estudo (10) e pela histologia nos demais (31,78). Esta discrepância ilustra a necessidade de uma maior precisão na definição da DRGE na prática pediátrica.

Figura 2- Membros do Grupo do Consenso Global em atividade de trabalho.

Estenose de refluxo

40. A estenose de refluxo é definida como um estreitamento luminal do esôfago causado pela DRGE em pacientes pediátricos.
Concordância: 100% (A+, 75%; A, 25%; Grau: não aplicável).


41. O sintoma característico da estenose em pacientes pediátricos é a presença de disfagia persistente
Concordância: 100% (A+, 37,5%; A, 50%; A-, 12,5%; Grau: alto).


42. Disfagia em crianças escolares e adolescentes é a dificuldade perceptível da passagem do alimento da boca para o estômago.
Concordância: 100% (A+, 37,5%; A, 50%; A−, 12,5%; Grau: alto).


43. Disfagia grave está presente quando crianças escolares e adolescentes necessitam alterar os padrões alimentares ou relatam impactação dos alimentos.
Concordância: 100% (A+, 25%; A, 62,5%; A-, 12,5%; D, 12,5%; Grau: não aplicável).


Em uma minoria de pacientes pediátricos, a DRGE leva ao estreitamento do lúmen esofágico. Este estreitamento, por causa do edema ou fibrose, impede a passagem dos alimentos causando disfagia persistente. Consequentemente, disfagia persistente e/ou progressiva é um sintoma de alarme de estreitamento do esôfago e mandatório de investigação adicional. Devem ser diferenciados de outras causas de estreitamento esofágico, em pacientes pediátricos, as quais estão relacionadas com a faixa etária (97). Pacientes pediátricos com esofagite eosinofílica também se apresentam com disfagia. A endoscopia com biópsias esofágicas está indicada para determinar a causa do estreitamento (56).


Esôfago de Barret


44. No grupo pediátrico, esôfago de Barret ocorre principalmente em pacientes com hérnia hiatal e naqueles com outros transtornos associados que predispõem à DRGE grave.
Concordância: 100% (A+, 25%; A, 62,5% ; A-, 12,5%; Grau: baixo).


45. O termo metaplasia esofágica endoscopicamente suspeita (MEES) descreve achados endoscópicos consistentes com esôfago de Barret que aguardam confirmação histológica.
Concordância: 100% (A+, 25%; A, 75%; Grau: não aplicável).


46. Documentação das áreas limítrofes esofagogástricas juntamente com múltiplas biópsias é necessária para caracterizar a MEES.
Concordância: 87,5% (A+, 12,5%; A, 62,5%; A-, 12,5%; D-, 12,5%; Grau: moderado).


47. Quando biópsias da MEES mostram epitélio colunar, isto deve ser chamado de Esôfago de Barret e a presença ou ausência de metaplasia intestinal deve ser especificada.
Concordância: 100% (A+, 50%; A, 37,5%; A-, 12,5%; Grau: não aplicável).


A afirmação 44 é sustentada pelos comentários sobre as afirmações de 13 a 15. Apesar da prevalência do Esôfago de Barret ser muito menor em crianças do que em adultos, ela ocorre. Por exemplo, em um estudo, metaplasia esofágica mostrou-se presente em 10% das crianças com RGE crônico grave, aonde metade das quais, apresentava metaplasia de células caliciformes (40).

Da mesma forma que em adultos (1), em pacientes pediátricos o termo "Esôfago de Barrett" apresenta uma ampla gama de variações (98,99) e, portanto, atualmente não existe a clareza necessária para uma comunicação clínica e científica. O termo "metaplasia esofágica endoscopicamente suspeita" reconhece que a aparência endoscópica pode não ser diagnóstica e requer confirmação histológica (1,100).

Para se identificar com precisão a MEES, os principais limites endoscópicos da junção gastro-esofágica devem estar documentados (101) em centímetros desde os dentes e, idealmente, fotografados (98,102). Quando uma intensa inflamação ou pus prejudicarem a identificação dos limites, a endoscopia deve ser repetida após aproximadamente 12 semanas de tratamento com altas doses dos IBPs. Esta conduta terapêutica auxilia a remoção da camuflagem exsudativa, permitindo, assim, uma identificação mais precisa dos limites desejados (103,104).

Múltiplas biópsias espaçadas são necessárias para minimizar o erro de amostragem, para permitir a caracterização da mucosa como puramente gástrica colunar, ou seja, tipo cardia, ou colunar com metaplasia intestinal e para detectar displasia (1,99). Biópsias dos quatro quadrantes a cada centímetro para segmentos circunferenciais metaplásticos é a abordagem prática mais sensível (1,105). Isso deve incluir tantas biópsias quanto possíveis da linha Z, e imediatamente acima da mesma, porque a probabilidade de se encontrar um número mais elevado da metaplasia de células caliciformes é mais proximal, tanto em crianças quanto em adultos (99,104,106,107).

Tem sido amplamente confirmado que a condição sine qua non para o diagnóstico do esôfago de Barrett é a presença de metaplasia intestinal, ou seja, mucosa colunar contendo células caliciformes que se coram pela mucina ácida com azul de Alcian em pH 2.5 (98,104,108,109). Até o presente momento, nenhuma criança com idade inferior a 5 anos foi descrita com metaplasia de células caliciformes e sabe-se que o aumento do número de células caliciformes se dá ao longo do tempo (107,110). Assim sendo, é mais provável que este tipo de metaplasia avançada leva anos para se desenvolver. Em contraste com a abordagem de "apenas células caliciformes", relatos recentes em adultos (111) e em crianças (99) mostraram que a metaplasia do esôfago pode ocorrer na forma de metaplasia colunar tipo cárdia sem a presença de células caliciformes. Inclusive este conceito foi considerado o tema mais controverso do grupo de Montreal (1). Técnicas de coloração e interpretação de biópsias também influenciam a sensibilidade da detecção da metaplasia intestinal (100,101). Ademais existem atualmente certas dúvidas se somente mucosas contendo metaplasia de células caliciformes representam uma lesão pré-maligna (1). Com a nova terminologia, quando o termo “Esôfago de Barret” é usado, é essencial especificar se a metaplasia intestinal especializada está presente ou ausente.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Diarréia Persistente: uma guerra cujo campo de batalha é o lúmen intestinal (3)

Fatores de Risco para a ocorrência de Diarréia Persistente (DP)

A evolução de um episódio de diarréia aguda para persistente depende fundamentalmente de circunstâncias que envolvem a interação entre o hospedeiro, o agente agressor e seu meio ambiente. No que diz respeito ao hospedeiro os principais fatores predisponentes para a perpetuação da diarréia estão ligados à ausência da prática do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, função imunológica deficiente, desnutrição protéico-calórica e idade precoce. Com relação ao agente agressor, alguns microorganismos enteropatogênicos apresentam maior capacidade de provocar danos funcionais e morfológicos à mucosa intestinal e, portanto, são potencialmente mais predisponentes a causar o prolongamento do processo diarréico. Do ponto de vista do meio ambiente os baixos níveis sócio-econômico-educacionais dos pais ou cuidadores, hábitos de higiene alimentar precários, insalubridade da água e deficiência, ou mesmo ausência, da rede de esgotos, são fatores extremamente importantes que contribuem para a ocorrência da DP.

Etiopatogenia

Vários agentes etiológicos causadores de Diarréia Aguda têm sido envolvidos na gênese da DP, tais como: Escherichia coli enteropatogênica (EPEC), Escherichia coli enteroagregativa (EAEC), Salmonella, Shigella, Campylobacter, Cryptosporidium, Giárdia, Norovirus e Rotavirus, dependendo das características geográficas, sasonais, ambientais e das especificidades das populações estudadas. No nosso meio os agentes etiológicos mais frequentemente descritos como causadores de DP são as diversas cepas de EPEC e EAEC. Por este motivo, no presente manuscrito dedicarei particular atenção a estes 2 tipos de microorganismos enteropatogênicos (Figura 1).

Figura 1- A importância no nosso meio das cêpas de EPEC como causa de Diarréia Persistente.

EPEC

No nosso meio os sorogrupos de EPEC O111 e O119 representam aproximadamente 80% de todos os sorogrupos (são cerca de 20) isolados em crianças com diarréia. A Escherichia coli foi descoberta, em 1885, pelo Pediatra alemão Theodore Escherich que a denominou Bacterium coli commune, e a razão de utilizar esta terminologia foi para indicar sua ocorrência universal no intestino grosso dos indivíduos saudáveis. Entretanto, o próprio Escherich já suspeitava que a E. coli pudesse agir como agente enteropatogênico para o ser humano, quando por alguma razão estivesse deslocada do seu habitat natural, ou seja fora do intestino grosso. Para confirmar tal suspeita, este pesquisador demonstrou a patogenicidade da E. coli ao injetar um caldo de cultura da mesma em alças intestinais isoladas de coelho, provocando grande acúmulo de secreção de fluidos e eletrólitos. No entanto, o primeiro cientista a comprovar cabalmente a associação de cepas antigenicamente homogêneas de E. coli como causadoras de diarréia foi o Microbiologista John Bray, em 1945, na Inglaterra. Bray, trabalhando em colaboração com o Pediatra Thomas Beaven e com o Biólogo Stevenson, descreveu um surto de diarréia em lactentes internados no Hillingdon Hospital, Uxbridge, provocado por um novo agente enteropatogênico que apresentava elevada capacidade de virulência e que causou altas taxas de mortalidade (Figura 2).

Figura 2- Placa comemorativa a John Bray pela descrição da Escherichia coli enteropatogênica.

Vale a pena recordar que até aquela data somente eram conhecidos 3 agentes enteropatogênicos, a saber: Vibrio cholera, Salmonella e Shigella. Desta forma, o até então denominado Bacterium coli, passou a ser incorporado na lista dos agentes provocadores de diarréia, porém com uma característica especial, afetava crianças de baixa idade e provocava alta taxa de letalidade. Foi Kauffman, em 1947, o responsável pela mudança do nome de Bacterium coli para Escherichia coli, em homenagem ao seu descobridor o Pediatra alemão Theodore Escherich. Kauffman também foi o responsável pela caracterização dos diferentes grupos sorológicos da E. coli por meio da determinação dos antígenos O (somático), K (capsular) e H (flagelar) (Figura 3).

Figura 3- Grupos sorológicos de Escherichia coli.

A partir do esquema de classificação proposto por Kauffman constatou-se que a bactéria isolada por Bray e a amostra Aberdeen alfa, isolada por Giles em um surto de diarréia em lactentes naquela localidade, na Escócia, eram na realidade a E. coli O111. Estudos realizados por Kauffman e Du Pont em crianças portadoras de diarréia, no período de 1945 a 1950, em várias partes do mundo, mostraram que as E. coli isoladas pertenciam aos sorogrupos O55 e O111. No Brasil, foi o microbiologista Luis Rachid Trabulsi o pioneiro em descrever as cepas de E. coli causadoras de diarréia em crianças. Professor Trabulsi e cols., em 1961 (Ver. Inst. Med. Trop. São Paulo 3, 267) estudaram 80 crianças com diarréia, internadas no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tendo sido isolados em 17 delas colibacilos enteropagênicos, com predomínio das E. coli O119, O126, O26, O55 e O111.

A descoberta de Bray e seus colaboradores foi um avanço científico de enorme importância e, ainda que tardiamente, valeu o reconhecimento dos seus sucessores no Hillingdon Hospital, pois somente em 1968 foi realizado um evento em homenagem aos autores em referência a aquela descoberta. Naquela ocasião foi confeccionada uma placa comemorativa para celebrar a grande descoberta de Bray, que lá esteve presente juntamente com Beaven e Stevenson (Figura 4).

Figura 4- O Microbiologista John Bray (esquerda), o Pediatra Thomas Beavan (centro) e o Biólogo J. Stevenson (direita) no dia da homenagem em 1968.

Bray pode, então, contar com riqueza de detalhes todas as dificuldades, as frustrações e as dramáticas situações com as quais tiveram de conviver durante o período de aproximadamente 5 anos desde sua chegada ao hospital até finalmente poder confirmar cabalmente a existência deste novo agente enteropatogênico. Este relato está publicado na revista Archives of Disease in Childhood 48; 923-26, 1973, e vale a pena ser parcialmente transcrito para que se tenha uma idéia mais precisa do que representa a obstinada luta de um pesquisador para alcançar um determinado objetivo. Com a palavra John Bray: “Quando eu fui contratado pelo Hillingdon Hospital para trabalhar como patologista no Serviço de Emergência, em 1939, no começo da II Guerra Mundial, uma das minhas tarefas era realizar as necrópsias dos pacientes que faleciam no hospital. Eu supus que teria um grande trabalho com os falecimentos em decorrência dos bombardeios que a Inglaterra sofria naquela época. Entretanto, felizmente esta situação não ocorreu, mas logo me dei conta de que havia um grande número de óbitos de lactentes que recebiam aleitamento artificial. Estes lactentes faleciam devido a gastroenterite, os quais apresentavam uma característica que chamava minha atenção. Em um primeiro momento estas crianças aparentemente não apresentavam maior gravidade mas dentro de uma ou horas mais tarde encontravam-se agonizantes. Para minha surpresa os exames bacteriológicos das fezes não revelavam nenhum dos agentes enteropatogênicos conhecidos na época; tudo que era encontrado nas placas de cultura das fezes era Bacterium coli considerado da flora colônica normal, e além disso a necrópsia não revelava qualquer achado de valor diagnóstico que pudesse justificar a morte daquelas crianças. Entretanto, em um determinado dia Dr. Beavan veio ao meu laboratório e fez o seguinte comentário: ”Você sabe, eu consigo identificar estes casos de gastroenterite assim que eles são internados, porque eles exalam um odor característico de esperma”. Não fiz qualquer observação a respeito mas esta era a dica que eu estava esperando, porque desde a primeira placa de cultura, dentre as inúmeras que costumava realizar, que eu havia pego da bancada de um caso de gastroenterite e que evidenciava uma flora aparentemente normal, exalava um forte odor espermático, mas que era rapidamente evanescente. Decidi, então, levar para a enfermaria 2 placas de cultura, uma com Proteus, bactéria pertencente à flora fecal normal, que exala um forte odor caracterísitco, e uma outra de Bacterium coli com odor espermático, como costumávamos designar a E. coli à época. Entreguei as duas placas à enfermeira que cuidava dos pacientes com gastroenterite para que ela as cheirasse; quanto à cultura de Proteus ela disse que tinha um odor parecido a cola, mas quando ela cheirou a outra, imediatamente exclamou: "ela cheira igualzinho ao bebê Wickens”. Então eu retruquei, esta é a cultura de fezes do bebê Wickens, e, naquele exato momento, tive a certeza que havia solucionado o problema e um novo agente enteropatogênico estava sendo descoberto. A partir daí não podia apenas me ater em estabelecer o diagnóstico pelo odor exalado da placa da cultura de fezes, era necessário avançar e para tal era necessário elaborar um anti-soro que aglutinasse com esse tipo de bactéria. Para tal eu injetei a cultura de fezes do bebê Wickens (que infelizmente veio a falecer) na veia da orelha de um coelho, e, assim obtive um anti-soro. A partir daí tive que realizar inúmeros testes de aglutinação com diferentes cepas de Bacterium coli isoladas das fezes de indivíduos normais e com diarréia para poder comprovar minha suspeita. Este trabalho tomou-me muito tempo e estendeu-se por um período de 4 anos, nem sempre com resultados animadores, e, em muitos momentos provocando-me grandes frustrações, porque as aglutinações nem sempre ocorriam como o esperado. Porém, após muita insistência meu anti-soro passou a reagir de forma consistente com os micro-organismos isolados das fezes das crianças com gastroenterite, e eu me permito afirmar que isto foi um verdadeiro triunfo para controlar esta doença potencialmente fatal. O teste passou a ser um meio rapidamente efetivo para diferenciar os casos de diarréia por E. coli daqueles outros de origem irrelevante. Pela primeira vez o médico passou a ser capaz de diferenciar os casos de diarréia infecciosa grave daqueles observados em crianças saudáveis. É possível que nos dias atuais existam melhores métodos diagnósticos, mas naquela época este teste revelou-se algo absolutamente novo. Em conclusão, atualmente o micro-organismo isolado teve sua estrutura antigênica mais detalhadamente examinada e foi denominado Escherichia coli O111:B4. A cepa O111:B4 Wickens original ainda está conosco, e permanece com seu poder de causar gastroenterite em lactentes, mas os dias nos quais milhares de crianças no Reino Unido morriam a cada ano desta enfermidade já não existem mais”.

A descoberta de Bray e Beavan nos deixa inúmeros ensinamentos, além do próprio mérito científico, que por si só se revelou de importância clínica inestimável (Figura 5).

Figura 5- Graças aos achados pioneiros de Bray e Beavan aliados aos novos conhecimentos fisiopatológicos da infecção causada pelas cêpas de EPEC e também aos avanços científicos e tecnológicos da Medicina é que nosso paciente A, diferentemente de Wickens e tantas outras crianças que faleceram e continuam a falecer por esta grave infeccção, já está fora de perigo, e, embora ainda apresente fezes amolecidas está em franco processo de recuperação clínica e nutricional.

Em primeiro lugar, nos ensina o quão importante é levar em consideração a observação acurada dos mínimos detalhes para se alcançar grandes descobertas, no caso além dos conhecimentos de bacteriologia, existentes na época, foi a partir do uso de um órgão do sentido, o olfato, que se abriu todo um novo caminho para o sucesso da pesquisa em questão; em segundo lugar, o trabalho associativo com um colega de outra disciplina, o Pediatra, o profissional da saúde que vive intensamente à beira do leito o drama do seu paciente que sofre de uma enfermidade que aparentemente não pode ser debelada, mas que nem por isso deixa de buscar uma solução para salvar a vida daquele ser gravemente enfermo, mesmo tendo que vivenciar inúmeras frustrações na sua luta entre a doença e a busca incessante da saúde; em terceiro lugar, valorizar a enfermeira acreditando ser ela uma profissional tão envolvida quanto quaisquer outros no cuidado do paciente a ponto de demonstrar sua capacidade de perceber nitidamente as diferenças organolépticas entre os micro-organismos que cresceram na placa de cultura. Infelizmente, o que ainda persiste a ocorrer nos países em desenvolvimento é a realidade que Bray vivenciou nos anos 1940 na Inglaterra, e que continua a ser o desafio enfrentado em muitas frentes de batalha, tanto nos avanços da intimidade do processo infeccioso causado pelas cepas de EPEC quanto na melhor abordagem diagnóstica e terapêutica, como continuaremos a descrever no nosso próximo encontro.