segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Fibrose Cística do Pâncreas: a abordagem para o século XXI (4)



TRATAMENTO DA DEFICIÊNCIA PANCREÁTICA

A deficiência dos enzimas pancreáticos na FC é tratada por meio da reposição de suplementos orais de enzimas pancreáticos originários de pâncreas porcino. O objetivo desta terapia para os pacientes com FC é prevenir a má digestão e consequente má absorção das gorduras e outros nutrientes, sintomas gastrointestinais e possíveis deficiências nutricionais em virtude da potencial ocorrência de uma síndrome de má absorção. Entretanto, não se deve esperar total recuperação da perda da função pancreática nos pacientes com FC, com a utilização da terapia de reposição enzimática.

A terapia enzimática deve ser iniciada nos lactentes (pacientes até 12 meses de idade) com 2 a 4 mil unidades de lipase para cada 120ml de formula láctea ou em cada mamada, considerando-se que o paciente esteja em aleitamento natural. Para as crianças menores de 4 anos de idade a dose enzimática deve iniciar-se com 1000 unidades de lipase/kg de peso/refeição. A dose enzimática para crianças maiores de 4 anos e avançando até a vida adulta deve ser iniciada com 500 unidades de lipase/kilo de peso/refeição (Tabela 1).


A reposição enzimática deve ser feita durante ou após a refeição e a dose total deve ser dada nas refeições maiores, enquanto que nas refeições menores deve ser utilizada a metade da dose. A dose diária total deve refletir aproximadamente 3 grandes refeições e 2 ou 3 merendas por dia. As doses típicas para crianças maiores de 4 anos e também para adultos variam desde 500 até o máximo de 2.500 unidades de lipase/kilo de peso/refeição (ou até 10.000 unidades de lipase/kilo de peso/dia). No caso de haver persistência dos sintomas de má absorção a dose da reposição enzimática pode ser aumentada até o máximo de 2.500 unidades de lipase/kilo de peso/refeição. Por outro lado, doses superiores a 2.500 unidades de lipase/kilo de peso/refeição não são recomendadas, posto que a segurança de doses maiores ainda é desconhecida (Figura 1).




Considerando-se que a maioria dos produtos de reposição de enzimas pancreáticos já estavam disponíveis nos EUA antes da existência do FDA, em 1.938, eles não foram submetidos a uma avaliação da relação dose-eficácia. Entretanto, presentemente estudos de segurança são requeridos pelo FDA e o lançamento de novos produtos deve ser submetidos a avaliação do FDA. Para que novos produtos sejam lançados no mercado exige-se que as companhias farmacêuticas realizem ensaios clínicos apropriados, em seres humanos, para caracterizar a segurança, o perfil de eficácia, a atividade e a pureza biológica dos enzimas pancreáticas. Além disso, em virtude de que altas doses de enzimas pancreáticos têm sido associadas com problemas de efeitos colaterais indesejáveis, tais como estenose colônica, o super-preenchimento das cápsulas de enzimas pancreáticos pode ser um fator de risco adicional por expor os pacientes a doses enzimáticas mais altas do que o necessário. Estas normas de conduta tem por finalidade desestimular a superdosagem das cápsulas e recomendar que o produto final realmente contenha 100% da atividade lipásica declarada na etiqueta da embalagem do produto (Tabela 2).




As doses dos enzimas pancreáticos devem ser individualmente tituladas, baseadas na resposta do paciente e podem ser influenciadas pela idade, grau de insuficiência pancreática, quantidade de gordura ingerida e na preparação comercial utilizada. Deve-se considerar uma resposta insuficiente se for possível reconhecer que as queixas digestivas ainda estejam presentes, tais como, eliminação de fezes volumosas, oleosas, que caracterizam esteatorréia e/ou na ocorrência de crescimento deficiente a despeito da terapia de reposição com enzimas pancreáticos. Entretanto, antes de se propor o aumento da dose de reposição enzimática deve-se considerar que uma série de outros fatores podem afetar uma ótima resposta à reposição enzimática. Tais problemas incluem a falta de adesão ao tratamento, fatores dietéticos (por exemplo, ingestão de alimentos extremamente gordurosos), fatores enzimáticos (por exemplo, prescrições vencidas, estocagem inapropriada dos enzimas), um meio intestinal ácido que resulta em dissolução deficiente da cobertura entérica da cápsula, neutralização inadequada do ácido gástrico o que acarreta subsequente destruição enzimática naqueles produtos cuja formulação não contém a cobertura entérica, ou ainda outros transtornos gastrointestinais concomitantes causadores de síndrome de má absorção (Figura 2).



Quando se consegue atingir uma otimização da dose dos enzimas pancreáticos para alcançar uma eficaz absorção das gorduras da dieta pode-se obter a normalização do estado nutricional dos pacientes com insuficiência pancreática. E, sem dúvida alguma, este é um objetivo sempre desejado e que deve ser insistentemente buscado através da reposição de enzimas pancreáticos.     

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Fibrose Cística do Pâncreas: a abordagem para o século XXI (3)



FIBROSE CÍSTICA ASSOCIADA A ENFERMIDADE PANCREÁTICA


Embora a doença pulmonar permaneça sendo a causa mais frequente de morbidade e mortalidade nos pacientes com FC, todos eles apresentam algum grau de enfermidade pancreática. Na verdade, considerando-se o papel central do gene CFTR na fisiologia pancreática, o pâncreas é usualmente um dos primeiros órgãos a apresentar insuficiência na FC (Figura 1).



As células ductais pancreáticas são responsáveis não somente pela secreção de fluidos, mas também como fator de proteção contra a ocorrência de pancreatite aguda recorrente e crônica pela função de excretar os zimogênios (enzimas digestivos inativos) para fora do pâncreas, no lumen duodenal (Figura 2).



A tripsina controla a ativação de todos os zimogênios e acredita-se que ela é essencial no controle da atividade enzimática digestiva. A ativação prematura do tripsinogênio transformando-se em tripsina funciona como um catalizador para a ativação da maioria dos zimogênios, resultando em autodigestão pancreática, inflamação e a inevitável progressão para pancreatite crônica (Figura 3).  




A molécula mais importante envolvida na regulação das funções da célula ductal pancreática é a proteína CFTR, a qual funciona como um canal iônico para permitir que o cloro e o bicabornato sejam secretados para o lumem ductal, e em seguida para a água e o sódio, e também é responsável pela secreção de proteínas para o exterior do pâncreas. Na FC, a perda da função normal da CFTR limita a secreção de fluidos, o que resulta na presença de um fluido ácido e mais viscoso nos ductos pancreáticos. O pH mais baixo (devido à redução da secreção de bicabornato) estimula a ativação do tripsinogênio e a ativação prematura dos zimogênios, os quais não podem ser suficientemente excretados pelo pâncreas, o que resulta em uma injuria recorrente, fibrose pancreática progressiva e formação de pseudocisto (Figura 4).



Na verdade, a alteração anatomopatológica do pâncreas na FC é consistente com destruição associada a inflamação, mais do que atrofia pancreática, como poderia ser esperado pela obstrução ductal devido aos tampões de proteína. Além disso, muitos pacientes com mutações CFTR de moderada intensidade apresentam pancreatite aguda recorrente ou pancreatite crônica, o que acarreta insuficiência exócrina pancreática de intensidade moderada a grave, a qual pode ser considerada “FC atípica”.



Dentre todos os processos fisiológicos que são afetados pela FC, a função pancreática é a que está mais fortemente correlacionada com o genótipo CFTR. As mutações da CFTR classes 1-3, as quais afetam a função CFTR mais intensamente, estão associadas com insuficiência pancreática, o que estima-se estar presente em aproximadamente 85% dos pacientes com FC. Na maioria dos pacientes com FC, a função pancreática já se encontra comprometida ao nascimento enquanto que outros pacientes vão gradualmente perdendo sua função com o passar do tempo. A insuficiência pancreática ou a falência do pâncreas para fornecer uma quantidade suficiente de enzimas pancreáticos para digerir os complexos nutrientes de uma refeição, ocorre quando menos de 10% da função pancreática normal é remanescente. O resultado final da incapacidade do pâncreas para digerir os nutrientes de uma refeição (particularmente as gorduras) leva os pacientes a desenvolver desnutrição e sintomas gastrointestinais, tais como distensão abdominal, flatulência, dor abdominal e diarreia (Figura 5).




A insuficiência pancreática pode ser diagnosticada através da avaliação direta ou indireta da sua função. Os testes de maior acurácia são realizados por meio da estimulação direta do pâncreas com hormônios exógenos (secretina/colecistoquinina) ou por meio de nutrientes endógenos e a consequente coleta das secreções por meio da intubação duodenal. Embora o melhor método seja a estimulação direta das secreções pancreáticas, a invasividade e o alto custo desta técnica limitam sua utilidade na prática clínica. A insuficiência pancreática pode também ser mensurada por meios menos invasivos e indiretos, tais como a dosagem quantitativa da gordura fecal durante 72 horas ou a detecção dos níveis das enzimas pancreáticas presentes em amostras fecais (por exemplo, ensaio com elastase fecal humana).  A determinação da eliminação da gordura fecal ou a detecção dos níveis de enzimas pancreáticos nas fezes são métodos menos acurados, porém, são menos invasivos e mais práticos de serem realizados na rotina clínica. A dosagem quantitativa da gordura fecal de 72 horas é raramente usada para diagnosticar a insuficiência pancreática mas, permanece sendo de utilidade para avaliar a eficácia da terapêutica de reposição enzimática pancreática nos pacientes que apresentam má absorção grave (Figura 6).




Embora 85% dos pacientes com FC sejam considerados insuficientes pancreáticos os 15% remanescestes são considerados pancreáticos sufientes o que significa que estes pacientes ainda retém uma suficiente função residual pancreática para a digestão dos nutrientes da dieta. Os pacientes pancreático-suficientes tendem a ter 1 ou 2 mutações menos graves (classes 4-5) bem como uma doença menos grave, menores níveis de cloro no suor e uma expectativa de vida mais longa do que aqueles com insuficiência pancreática.  Entretanto, deve-se notar que tais pacientes a despeito de reterem alguma função pancreática, não tem uma função pancreática normal, e são susceptíveis de sofrer pancreatite aguda recorrente. Além disso, esses pacientes sofrem o risco de uma progressão para pancreatite crônica.