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quarta-feira, 20 de maio de 2020

SARS-COVID-19 também causa infecção gastrointestinal


Prof Dr Ulysses Fagundes Neto



O número de maio de 2020 da tradicional revista Gastroenterology, traz um artigo altamente impactante intitulado “Evidence for Gastrointestinal Infection of SARS-CoV-2” de autoria de Fei Xiao e cols., que abaixo passo a resumir.
 
Introdução

Recentemente foi publicado pela revista New England Journal of Medicine (2), o relato de um caso a respeito da detecção na amostra de fezes do RNA do SARS-CoV-2, e que traz à luz a possibilidade de a transmissão da infecção gastrointestinal ocorrer pela via fecal-oral. Foi comprovado que o SARS-CoV-2 utiliza a enzima de conversão da angiotensina (ECA)2 como um receptor para a penetração viral. O RNA mensageiro do ECA2 encontra-se altamente representado e estabilizado pelo transportador do aminoácido neutro BoAT1 no sistema gastrointestinal, que funciona como um provedor de pré requisito para a infecção do SARS-CoV-2. Com a intenção de investigar com maiores detalhes o significado clínico do RNA do SARS-CoV-2 nas fezes, os autores examinaram o RNA viral nas fezes de 71 pacientes com infecção por SARS-CoV-2 durante suas hospitalizações. O RNA viral e a proteína do núcleo do capsídeo viral foram examinados nos tecidos de um dos pacientes.

Métodos

A partir de 01 a 14 de fevereiro de 2020, amostras clínicas, incluindo soro e swabs orofaríngeos e nasofaringeos, urina, fezes e tecidos de 73 pacientes hospitalizados, infectados com SARS-CoV-2, foram obtidos de acordo com as guias de conduta determinados pela “ China Disease Control and Prevention” e testados para o RNA do SARS-CoV-2 utilizando o padrão estabelecido pelo “Chinese Center for Disease Control and Prevention” para o ensaio quantitativo da reação de polimerase em cadeia. Amostras teciduais do esôfago, estômago, duodeno e reto foram obtidas de um paciente por meio da endoscopia digestiva.  A coloração histológica bem como o receptor viral ECA2 e a coloração do núcleo do capsídeo viral foram realizadas de acordo com os métodos tradicionais. As imagens de coloração fluorescente foram obtidas utilizando-se um microscópio confocal de varredura a laser e que estão demonstradas na Figura 1.

 
Figura 1- Imagens histológicas com coloração pela imunofluorescência dos tecidos gastrointestinais. São mostradas imagens do esôfago, estômago, duodeno e reto. A barra da escala das imagens histológicas representa 100 um e a barra da escala das imagens de imunofluorescência representam 20 um.

Resultados

Neste período de estudo entre os 73 pacientes hospitalizados com infecção pelo SARS-CoV-2, 39 (53,42%), incluindo 25 homens e 14 mulheres, testaram positivo para o RNA do SARS-CoV-2 nas fezes. As idades dos pacientes que apresentaram resultados positivos nas fezes para o RNA do SARS-CoV-2 variaram de 10 meses a 78 anos. A duração da positividade nas fezes desses pacientes variou de 1 a 12 dias. Vale ressaltar que 17 (23,29%) pacientes continuaram a ter resultados positivos nas fezes, após terem negativado os resultados das amostras respiratórias. A endoscopia digestiva realizada em um paciente não evidenciou, pela coloração da hematoxilina-eosina, alterações significativas na mucosa epitelial do esôfago, estômago, duodeno e reto. Infiltrado linfocitário ocasional foi observado no epitélio escamoso esofágico. Na lâmina própria do duodeno e reto foram observadas intensa infiltração de plasmócitos e linfócitos associadas a edema intersticial.

É importante salientar que houve a caracterização positiva do receptor viral ECA2 no citoplasma das células epiteliais gastrointestinais. O ECA2 raramente se expressou no epitélio esofágico, porém, mostrou-se abundantemente presente nos cílios do epitélio glandular. A coloração da proteína do núcleo do capsídeo viral foi visualizada no citoplasma das células epiteliais glandulares do estômago, duodeno e reto, mas não no epitélio esofágico. 

Discussão

Este artigo proporciona franca evidência da infecção gastrointestinal causada pelo SARS-CoV-2 e sua possível via de transmissão fecal-oral. Considerando-se que os vírus se disseminam de células infectadas a células não infectadas, as células alvo vírus-específicas ou órgãos são determinantes como vias de transmissão viral. O receptor responsável pela mediação da entrada do vírus na célula do hospedeiro é o primeiro passo na infecção viral. Os dados da imunofluorescência demostraram que a proteína ECA2, a qual foi comprovada ser um receptor celular para SARS-CoV-2, está altamente expressa nas células glandulares do estômago, duodeno e reto corroborando a entrada do SARS-CoV-2 no interior das células dos hospedeiros. A coloração do ECA2 foi raramente vista na mucosa esofágica, provavelmente porque o epitélio esofágico é majoritariamente composto por células epiteliais escamosas, que apresentam uma menor expressão para o ECA2 do que as células epiteliais glandulares. A detecção do RNA do SARS-CoV-2 e a coloração intracelular do núcleo do capsídeo proteico viral nos epitélios gástrico, duodenal e retal, demostram que o SARS-CoV-2 infecta essas células epiteliais glandulares gastrointestinais. Embora o RNA viral tenha sido também detectado no tecido mucoso esofágico, a ausência da coloração do núcleo proteico do capsídeo viral na mucosa esofágica indica a baixa carga de infecção viral da mucosa esofágica.   
     
Após a penetração viral, vírus RNA-específico e proteínas são sintetizadas no citoplasma para a reprodução de novos virions, os quais podem ser liberados para o trato gastrointestinal. A contínua detecção positiva do RNA viral nas fezes sugere que os virions infeciosos são secretados pelas células gastrointestinais infectadas pelo vírus. Recentemente, os presentes autores, assim como outros, isolaram o SARS-CoV-2 das fezes confirmando a liberação de virions infecciosos para o trato gastrointestinal. Desta forma, vale ressaltar que a transmissão fecal-oral poderia ser uma via adicional para a dispersão viral. Portanto, a prevenção da transmissão fecal-oral deve ser levada em consideração para o controle da propagação do vírus.

Os resultados do presente estudo, enfatizam a importância clínica de testar o RNA viral nas fezes pela técnica do PCR, porque os virions infecciosos liberados no trato gastrointestinal podem ser monitorados por este teste.  De acordo com as atuais guias de conduta chinesas para a alta hospitalar dos pacientes, por medidas de precaução contra a transmissão do SARS-CoV-2, é necessário que os pacientes tenham realizado pelo menos dois testes respiratórios sequenciais negativos coletados com uma diferença de pelo menos 24 horas entre eles. Entretanto, como em mais de 20% dos pacientes com SARS-CoV-2 foi observado que o resultado do teste do RNA viral permaneceu positivo nas fezes dos pacientes, mesmo após os resultados para o RNA viral no trato respiratório tivessem se tornado negativos, este fato indica que a infecção viral gastrointestinal, e sua potencial transmissão fecal-oral, pode perdurar mesmo após o desaparecimento viral do trato respiratório. Por esta razão, recomenda-se fortemente a realização do teste fecal de forma rotineira nos pacientes com SARS-CoV-2, e que precauções quanto a transmissibilidade do vírus, nos pacientes hospitalizados, seja continuada no caso de os testes fecais resultarem positivos.          

Meus Comentários

A incidência de manifestações clínicas menos comuns, tais como, diarreia, vômitos e desconforto abdominal, antes de ocorrerem as típicas manifestações respiratórias, têm sido descritas, as quais variam significativamente entre as diferentes populações estudadas, em especial no período inicial da instalação da infecção.

A despeito do comprometimento das vias respiratórias, já sobejamente conhecido, este trabalho chama a atenção para mais um aspecto de enorme importância, qual seja não somente a presença do RNA viral ao longo do trato digestivo, mas principalmente, a possibilidade de haver a transmissão do vírus pela via fecal-oral.

Esta nova evidência vem a trazer uma grande preocupação para as nossas comunidades desprovidas de saneamento básico, as quais abrangem cerca de 50% delas no nosso país, posto que a transmissão fecal-oral vem a se constituir em mais uma via de propagação do vírus, e que poderá ter consequências catastróficas para as parcelas socialmente vulneráveis da nossa população.

Referências Bibliográficas

1.   Fei Xiao e cols. Gastroenterology 2020; 158:1831-33.
2.   Holshue ML e cols. N Engl J Med 2020;382:929-36.
3.   Zhuo P e cols. Nature 2020; 579:270-73.
4.   Yan R e cols. Science 2020; 367:1444-48.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Síndrome do Intestino Irritável: um distúrbio funcional que pode acarretar importante desconforto aos pacientes (4)

Manejo Terapêutico

Lactentes acima de 6 meses e Pré-Escolares até 3 anos
Um dos pontos mais interessantes a respeito do período em que predominam os episódios de Diarréia Crônica Intermitente, dentro da "Longa Caminhada" da SII, diz respeito à conduta terapêutica, e, é o que passaremos a abordar com riqueza de detalhes, desde os aspectos folclóricos, que são inúmeros, até chegarmos aos conhecimentos com bases científicas.

Como já foi anteriormente mencionado, a primeira preocupação quando do início do episódio diarréico é com o potencial risco de desidratação e sua conseqüência imediata, o choque hipovolêmico. Portanto, a coerente ação terapêutica correspondente, caso a suspeita maior recaia sobre infecção intestinal, seria a utilização de soluções de rehidratação oral. Ocorre, porém, como também já foi referido, na SII as perdas hídricas e salinas não são de monta suficiente para fazer com que a criança tenha tanta necessidade de grandes reposições hidro-eletrolíticas, portanto, o paciente não terá sede intensa. Pequenos volumes hídricos são totalmente suficientes para repor as escassas perdas, e, assim sendo, o paciente costuma recusar a insistência do cuidador em oferecer continuamente maiores quantidades da solução de rehidratação. Além disso, a solução de rehidratação, por conter sal misturado com glicose, tem um sabor que não é bem apreciado por quem não necessita receber este tipo de tratamento, e daí freqüentemente a recusa. Esta situação, muito comumente, gera um conflito entre o cuidador, que tem a preocupação em não ver o paciente correr o risco de sofrer desidratação, e o próprio paciente, que não deseja ingerir maiores quantidades da solução de rehidratação. Esta disputa provoca uma grande tensão ambiental e, conseqüentemente, só agrava o problema. Em passado não muito remoto, um Tratado de Pediatria, altamente conceituado, de fama internacional e praticamente adotado como referência na especialidade, denominado Textbook of Pediatrics editado por Valdo Nelson, originalmente escrito em inglês e traduzido para inúmeros outros idiomas, inclusive português, recomendava explicitamente o uso do refrigerante Coca-cola como uma excelente solução de rehidratação oral, sob a alegação de que este refrigerante possuía em sua composição doses adequadas de Potássio. Como este refrigerante é conhecido mundialmente, e sua palatabilidade largamente aceita, foi rapidamente incorporado no nosso meio, naquela época, dentro do modismo próprio dos copiadores sem um mínimo espírito crítico (se era bom para os Estados Unidos deveria ser bom também aqui) como uma referência de solução de rehidratação oral e, assim, passou a ser receitado de forma quase que rotineira para crianças com diarréia. No entanto, Dr. Edgard Ferro Collares, Professor Titular de Pediatria da UNICAMP, pesquisador dotado de grande espírito crítico e absolutamente cético quanto a esta possível qualidade do refrigerante, realizou, nos anos de 1980, um detalhado estudo sobre a composição química dos refrigerantes disponíveis no mercado e constatou que nenhum deles, inclusive a Coca-cola, apresentava mínimas condições para serem utilizados como solução de rehidratação oral (Revista Paulista de Pediatria 3: 46-9,1985). Na verdade, não possuíam sais de hidratação e sim apenas altas concentrações de carboidratos (sacarose), constituindo-se em verdadeiros xaropes, de altíssima osmolaridade. Ora, sabemos que soluções hiperosmolares com grandes concentrações de carboidratos têm um tempo de esvaziamento gástrico muito rápido, e, conseqüentemente estimulam positivamente o reflexo gastro-cólico, induzindo à evacuação. Por conseguinte, o emprego deste refrigerante, ou de outros quaisquer disponíveis no mercado, em pacientes com diarréia devido à SII, somente irá provocar aumento ainda maior no número de evacuações, gerando, assim, um ciclo vicioso, praticamente irreversível, que elevará ainda mais a tensão ambiental trazendo conseqüências mais dramáticas para a relação paciente e seus familiares, e indubitavelmente mais diarréia. Portanto, em resumo, uma vez que a história detalhadamente obtida nos faz suspeitar que o paciente apresenta diarréia com as características da SII deve-se, em primeiro lugar tranqüilizar a família, em segundo lugar fazer um exame físico detalhado, incluindo a determinação do PESO do paciente (se possível ter uma informação fidedigna recente do PESO) para saber se houve ou não perda acentuada e a partir daí controlá-lo com freqüência, para, então, recomendar que o paciente ingira líquidos não hiperosmolares sob o regime da livre demanda. Como o processo diarréico costuma perdurar por alguns dias deve-se avaliar constantemente o paciente dando especial ênfase para a evolução ponderal. Em havendo preservação do PESO ou mesmo algum ganho ponderal podemos ter a certeza que estamos frente a um episódio de diarréia da SII e com isto transmitir à família a segurança que ela necessita para entender que este processo se autolimitará e não trará maiores repercussões nutricionais para o paciente. Vale a pena ressaltar que a determinação do PESO é o único parâmetro aritmético de que dispomos para avaliarmos com fidelidade os possíveis percentuais de perda ou ganho. Neste sentido, é fundamental que o equipamento de aferição do peso seja absolutamente confiável e sempre o mesmo, que o paciente esteja totalmente despido e que de preferência o paciente seja pesado no mesmo horário do dia anterior sob as mesmas condições dietéticas. Deve-se também, neste momento, alertar a família que outros episódios semelhantes a este deverão ocorrer no futuro e que a conduta deverá ser a mesma, mas sempre após a devida consulta médica.

No nosso próximo encontro continuarei a descrever a "Longa Caminhada" das manifestações clínicas da SII abordando a conduta dietética durante os episódios de diarréia.